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A modernidade período histórico que considera o indivíduo como um ser portador da razão, possui como centralizador o mercado e suas características. A percepção de que a razão é parte constituinte do indivíduo, está intrínseca ao ser e proporciona a ele a distinção entre conceitos antagônicos – certo e errado, bem e mal, ético e antiético – é iniciada no século das Luzes (NICOLAS, 2002), sendo reforçada na Revolução Francesa e com o avanço tecnológico “típico” da modernidade.

A este respeito, Martins (2002) afirma que a modernidade possui um modelo dicotômico: a sociedade é fruto da ação planificadora do Estado ou da livre movimentação do mercado. Em ambos os casos e, especialmente na livre movimentação do mercado, a sociedade moderna possui o intuito de promover sua autossustentação, transformando a sociedade em uma estrutura normativa, onde as decisões são técnicas e pragmáticas. Para Guerreiro Ramos (1989, p. 32):

A motivação econômica é considerada o traço supremo da natureza humana e a teoria econômica

formal17 afirma que o mercado é a categoria

fundamental, para a comparação, a avaliação e o desenho dos sistemas sociais.

De acordo com o autor, a busca pela riqueza e prosperidade material tornou-se primordial na sociedade, onde qualquer traço substantivo é excluído para que não influencie no processo econômico. Os indivíduos são orientados ao cálculo utilitário de consequências, que regula todos os aspectos da vida aos interesses práticos. Neste aspecto, Caillé e Graeber (2002, p. 30) afirmam que o mundo sofreu uma “mutação” ao aceitar o modelo econômico como hegemonia na sociedade, formando um “megacapitalismo, um capitalismo que mudou de escala e teve acesso à onipotência, subordinando à lei do mercado tudo que ainda lhe escapava”. Mercado que Max Weber descreve como necessário para o alcance do progresso e o desenvolvimento produtivo de uma nação (GUERREIRO RAMOS, 1989).

Neste diapasão, Nicolas (2002) discorre sobre o comportamento do indivíduo na sociedade moderna e afirma que este é o mesmo em todos os aspectos da vida, sendo ela percebida como um mercado total. Para Guerreiro Ramos (1989), a sociedade é o reflexo do mercado, e, consequentemente, os indivíduos exercitam os mesmos valores dele em todos os enclaves sociais. Os valores baseados nesta racionalidade fundamental à modernidade – racionalidade funcional – transformam o homem em um ser que apenas se comporta buscando a conveniência em suas atitudes e o cálculo utilitário das consequências.

Guerreiro Ramos (1989) se utilizou do conceito de síndrome comportamentalista para tratar da supervalorização da racionalidade instrumental e dos valores econômicos como modelos para todas as áreas da vida humana associada. O autor apresenta esta síndrome como uma das características da sociedade moderna. Inicialmente, Guerreiro Ramos (1989) diferencia comportamento de ação, alegando que comportamento é uma conduta mecanomórfica, sendo o indivíduo influenciado por valores exteriores, e tornando-se reprodutor da lógica organizacional na qual está inserido. O comportamento não possui ética, apenas direciona as atitudes de maneira eficiente. Já a ação, para o autor, é caracterizada

17 Teoria econômica formal é explicada por Guerreiro Ramos (1989) como uma

teoria da vida humana associada orientada para dados sociais, onde a economia é um sistema autorregulado e há dicotomia entre valores e fatos. Esta teoria opõe- se à teoria de vida humana associada substantiva, onde a ordenação da vida é racional, há a regulamentação política da economia e não há dicotomia entre valores e fatos.

como uma maneira de conduta ética. Guerreiro Ramos (1989, p. 51) reflete sobre essa diferenciação na sociedade mercadocêntrica e alega que:

Homens e mulheres já não vivem mais em comunidades onde um senso comum substantivo determina o curso de suas ações. Pertencem, em vez disso, a sociedades em que fazem pouco mais além de responder a persuasões organizadas. O indivíduo tornou-se uma criatura que se comporta. Os indivíduos que se comportam foram afetados pela síndrome comportamentalista18, interiorizada imperceptivelmente através da naturalização e generalização do comportamento mercadológico, a ponto de transformá-lo no tipo de conduta dominante exercida pelo ser humano. Logo, a vida humana associada é baseada nos processos reguladores do mercado e proporciona ao indivíduo uma vida direcionada apenas para seus interesses individuais (GUERREIRO RAMOS, 1989; PAES DE PAULA, 2008).

A unificação do comportamento humano às regras do modelo econômico, que Guerreiro Ramos (1989) conceituou como síndrome comportamentalista, é percebida também por Godbout (2002, p. 64), quando afirma que “o indivíduo moderno não consegue pensar no que circula na sociedade sem se referir a essas noções e a esse modelo”.

É válido ressaltar que, assim como a síndrome comportamentalista – considerando-a como característica da sociedade centrada do mercado (GUERREIRO RAMOS, 1989) – a homogeneização dos traços culturais de cada grupo social e os laços existentes nesses grupos também são

18 Guerreiro Ramos (1989) apresenta traços de comportamentos dos indivíduos

considerando a síndrome comportamentalista: fluidez da individualidade, formalismo, perspectivismo e operacionalismo. De acordo com o autor, a fluidez da individualidade baseia-se na representação e legitimação que a sociedade moderna faz de si mesma, tornando o indivíduo em uma criatura calculista e com regras objetivas de conveniência. O perspectivismo é consequência da individualidade fluida, onde a conduta de cada ser humano é afetada por uma perspectiva específica. O formalismo, terceiro traço psicológico da síndrome comportamentalista, é considerado como natural ao homem moderno, que substitui a preocupação com padrões éticos pela observância das regras. O quarto e último traço refere-se ao operacionalismo, quando afirma que para analisar um caráter cognitivo é necessário um método que possa validar e verificar o conhecimento, sendo o operacionalismo necessário para sanar problemas práticos.

considerados por Guerreiro Ramos (1989) como característicos da sociedade mercadocêntrica.

Nos dias de hoje, o mercado tende a transformar-se na força modeladora da sociedade como um todo, e o tipo peculiar de organização que corresponde às suas exigências assumiu o caráter de um paradigma, para a organização de toda a existência humana. Nessas circunstâncias, os padrões de mercado, para pensamento e linguagem, tendem a tornar-se equivalentes aos padrões gerais de pensamento e linguagem (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 92).

Essas características resultam em indivíduos que acreditam que competição, cálculo, interesse em ganho e características econômicas, fazem parte da essência humana, salientando que a organização econômica, espaço propício para o desenvolvimento dessas características, é o ambiente ideal para a atualização do indivíduo (GUERREIRO RAMOS, 1989). Para criar o vínculo organizacional, os indivíduos tornaram-se detentores de empregos, e devem possuir caráter impessoal e despersonalizado, já que é por meio deste que o indivíduo será avaliado. Segundo Guerreiro Ramos (1989), possuir um emprego é a categoria dominante para reconhecer o valor dos propósitos humanos, caso contrário - não ser detentor de um emprego –, o indivíduo não possui valor perante a sociedade e é desprovido de identidade social. Sua relação com as organizações, por meio do vínculo empregatício, suprime a subjetividade inerente à vida humana.

Guerreiro Ramos (1989) afirma que a racionalidade funcional, característica da sociedade de mercado, se tornou sociomórfica. Essa racionalidade é simplificada para uma norma de entendimento: o cálculo utilitário de consequências (GUERREIRO RAMOS, 1989; FRANÇA FILHO, 2010).

Para Guerreiro Ramos (1989, p. 6), a racionalidade funcional é relacionada “a qualquer conduta, acontecimento ou objeto, na medida em que este é reconhecido como sendo apenas um meio de atingir uma determinada meta”. Esta racionalidade foi analisada por Max Weber, considerada por ele como necessária para a ordenação da vida política e social. Serva (1997, p. 19) conceitua a racionalidade instrumental, ou funcional, como “lógica subjacente às ações, determinando o padrão de ‘sucesso’ a ser atingido, um sucesso orientado pelas ‘leis’ do mercado e egocêntrico por natureza”. O homem é motivado a utilizar o cálculo utilitário de consequências em todas as áreas da vida e seus valores são

minimizados e resumidos àqueles atrelados aos valores econômicos, sendo estes, supervalorizados em relação aos demais.

Segundo Godbout (2002), a racionalidade instrumental é baseada na otimização e preferência, sendo a primeira dependente da segunda. A preferência ordena as prioridades e auxilia nas decisões dos indivíduos. Ora, se o indivíduo apenas se comporta e as características mercadológicas orientam todos os enclaves sociais e áreas da vida, a as escolhas do sujeito será de acordo com a racionalidade instrumental.

Neste tocante, duas teorias foram propostas para que as características citadas anteriormente sejam superadas: a teoria da delimitação dos sistemas sociais de Guerreiro Ramos e a sociologia da dádiva do M.A.U.S.S. Essas teorias serão apresentadas nos próximos tópicos.

2.2 TEORIA DE DELIMITAÇÃO DOS SISTEMAS SOCIAIS.