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A teoria da ação de Hannah Arendt foi criticada por Habermas em seu texto O Conceito de Poder de Hannah Arendt (1980). Este texto é uma crítica a concepção de poder de Arendt, que está amparado por um modelo de ação que é exatamente onde Habermas concentra suas críticas. Para realizá-la Habermas concentra o texto em três momentos, no primeiro demonstra como Arendt introduziu e fundamentou o conceito de poder. No segundo mostra como ela aplicou o conceito. No terceiro Habermas explora pontos vulneráveis que a seu ver estão ligados a sua vinculação à constelação histórica e conceitual do pensamento aristotélico.

Habermas nos recorda o pensamento de Arendt segundo o qual o aspecto inovador da ação gera instabilidade nos negócios humanos, e exatamente por isso os homens precisam da proteção de instituições que possam estabilizar o reino da ação. Por sua vez, as instituições dependem do poder que é dado pelos cidadãos. Este poder dos cidadãos só pode ser obtido com o apoio e auxílio deles, por isso é necessária uma efetiva participação dos cidadãos em ações e palavras. Habermas chama isto de estruturas intatas da intersubjetividade e é daí que emana o poder. Disto resulta a tese central de Arendt: o poder não pode ser armazenado e não

se confunde com violência, esta sim pode armazenar meios para atingir seus fins. O poder só existe em sua efetivação. Habermas concebe que Arendt descarta a ideia de Weber de um poder concebido como a instrumentalização da vontade, ou seja, a disposição de meios que possibilitem ao ator influenciar a vontade de outrem no cumprimento do comportamento desejado. Para Arendt esta instrumentalização é própria do campo da violência e não do poder.

A aplicação desta hipótese por Arendt se resume a dois tipos extremos: a supressão da liberdade nos regimes totalitários e a tentativa de fundação da liberdade pelos movimentos emancipatórios.

O Estado total

destrói, por um lado, todas as relações intersubjetivas que ainda subsistem depois do desaparecimento da esfera política, e obriga, por outro lado, os indivíduos completamente isolados e abandonados uns pelos outros a executarem novamente ações políticas (embora, é claro, não a genuína ação política... (HABERMAS, 1980, p106).

A dominação nazista totalitária descrita por Arendt brotou de um regime democrático de massas. Isso induz Arendt a realizar uma dura crítica ao privatismo característico das democracias modernas. O que teóricos como Schumpeter veem como positivo, a canalização restritiva da participação política para a representação partidária, Arendt vê como altamente perigosa, pois fornece as condições nas quais pode surgir o governo total.

Quanto aos movimentos emancipatórios descritos por Arendt pode se observar:

a desobediência com relação a instituições que perderam sua força legitimatória; a confrontação do poder, gerado pela livre união dos indivíduos, com os instrumentos coercitivos de um aparelho estatal violento mas impotente; o surgimento de uma nova ordem política e a tentativa de estabilizar o novo começo, a situação revolucionária original, e de perpetuar institucionalmente a gestão comunicativa do poder (idem, p107).

Todos esses fatos relativos aos movimentos emancipatórios de contestação do poder e de tentativa de fundação da liberdade demonstram que ninguém possui verdadeiramente o poder, que o mesmo só pode surgir enquanto os homens agem e desaparece no momento em que os homens se dispersam.

Segundo Arendt o movimento operário que protagonizou esses movimentos emancipatórios falhou em fundar a liberdade a partir do momento em que os seus integrantes

foram incorporados à sociedade. As melhorias nas condições salariais, o sucesso econômico dos sindicatos e dos partidos trabalhistas levaram a esta incorporação. Tornaram-se apenas mais um grupo de pressão.

Segundo Habermas essa constatação não vem de pesquisas equilibradas, mas de uma construção filosófica. Arendt estiliza como essência da política a experiência da polis grega. A divisão rígida que ela efetua entre a política e o social, público e privado, liberdade e bem- estar não podem ser aplicadas à moderna sociedade burguesa e ao Estado moderno. Porém com razão Arendt insiste que a simples eliminação da pobreza e da miséria não significa o estabelecimento da liberdade pública. Apesar do conceito político de Arendt auxiliar nessas constatações ela é praticamente inaplicável nas condições modernas, pois:

um Estado, exonerado da elaboração administrativa de matérias sociais; uma política, depurada das questões relativas à politica social; uma institucionalização da liberdade pública, que independe da organização do bem-estar; um processo radical de formação democrática da vontade, que se abstém em face da repressão social- este não é um caminho viável para

nenhuma sociedade moderna (idem, p110).

O conceito de poder formulado por Arendt só pode ser aproveitado de forma prática se desvinculado da inspiração Aristotélica. Arendt em sua teoria da ação delimita o político à práxis, às atividades da ação e da fala e exclui outras como a produção, o trabalho e o pensamento. Por um lado a concepção do político denuncia a eliminação contemporânea de conteúdos essencialmente práticos do processo político, mas por outro paga com o preço de excluir os elementos estratégicos da ação, denunciando-os como atos de violência.

Habermas acusa Arendt de excluir o elemento estratégico da ação de suas ponderações políticas. A condução da guerra é o modelo clássico da ação estratégica. A atividade bélica envolve a utilização de meios calculados de violência, seja para intimidar ou para destruir o adversário. Pela semelhança que esta ação possui com a instrumentalização dos meios para a produção de objetos, Arendt equipara a ação estratégica à instrumental. E a situa fora do âmbito político. Entretanto a ação estratégica se manifesta com frequência no âmbito político, pois se formos reparar na luta pelo poder, nas concorrências por posições vinculadas ao exercício do poder legítimo iremos nos deparar com protagonistas que competem entre si, numa interação social que não visa a um entendimento mútuo mas sim ao êxito.

sistêmica sobre o poder político em Hannah Arendt. Para Habermas Arendt limita seu sistema conceitual a teoria da ação. Porém o poder legítimo não se limita as estruturas da ação. Processos históricos e sociais se dão mesmo sem a participação dos seus interessados. Arendt não nega que eles ocorram, mas os situam foram do âmbito do poder legítimo. Na diferenciação entre trabalho e fabricação2, o trabalho diferencia-se pela sua integração no processo sistêmico de produção, consumo e reprodução. O poder político em Arendt surge das ações dos homens, de baixo para cima. Parsons que possui uma visão sistêmica do poder diferencia-se da visão de Arendt exatamente quando trata do alargamento do poder. Apesar de concordar com ela que a aquisição de poder por parte de um grupo não quer dizer perda de poder de outro grupo (jogo de soma zero), a concordância para por aqui. O alargamento do poder para Parsons significa um aumento do raio de influência administrativa, e para este aumento os líderes políticos podem suscitar em seus eleitores carências que serão por sua vez atendidas pelas atividades estatais. É exatamente essa tentativa por parte da liderança política de exercer influência sobre as vontades da população, as vezes por via de coação física ou manipulação das convicções, que Arendt rejeita. Pois o poder só pode surgir de estruturas de comunicação não-coercitiva.

A conclusão de Habermas é de que o poder político não pode ser limitado a práxis, é necessário abranger a competição estratégica pelo poder político e a aplicação deste poder ao sistema político. Entretanto as teorias da concorrência pelo poder e da alocação do poder não fazem jus a gestação do poder.

Em Arendt o poder preexiste à disputa da liderança política. Eis aqui a impotência dos governantes, que só podem exercer seu poder com o apoio espontâneo de seus governados. E exatamente por exigir uma atualização constante deste apoio é que o poder não pode ser armazenado para tempos de crises. Porém Habermas contrapõe um fato a essa alegação de Arendt: A existência de dominação política duradoura mesmo não estando fundada sobre um consenso legitimador. O que acontece nesses casos é o que Habermas chama de violência estrutural, que na verdade não se manifesta como violência, mas bloqueia os processos comunicativos Este bloqueio explica a formação da ideologia, que é definida como ilusões dotadas de poder das convicções comuns. Habermas dá uma explicação como ele se dá:

Em processos comunicativos sistematicamente limitados, os participantes formam convicções subjetivamente não-coercitivas, mas ilusórias;com isso, 2 O tradutor da edição utilizada faz uso do termo produção em vez de fabricação, porém para dar mais

geram comunicativamente um poder que pode ser usado contra esses mesmos participantes, no momento em que se institucionaliza (idem, p115- 116).

A questão que se coloca após aceitar esta proposta é a de qual critério adotarmos para diferenciar as convicções ilusórias das não-ilusórias. E é exatamente a existência deste critério que Arendt rejeita em sua teoria. Para Arendt vale a divisão clássica entre teoria e prática, sendo que a prática só pode ser baseada em opiniões, que por natureza não são nem verdadeiras e nem falsas.

Esse abismo que Arendt interpõe entre opinião e conhecimento pode ser preenchido segundo Habermas por um fundamento cognitivo para as convicções comuns. Ele descreve este fundamento da seguinte forma: “Nesse caso, o poder estaria radicado no reconhecimento fatual de expectativas de validade, concretizáveis de forma discursiva, fundamentalmente criticáveis.” (idem, p.117).

Mas sobre qual fundamento Arendt assenta o poder da opinião? Habermas responde que ela recorre a uma solução tradicional da teoria política, que é o contrato, ou seja, a capacidade que os indivíduos tem de fazerem promessas e as cumprirem, e assim retrocede até a tradição do Direito Natural.

Podemos concluir que as principais críticas de Habermas giram em torno do não desvencilhamento de Arendt de uma tradição que não pode mais ser aplicada à política, como o resgate da práxis aristotélica, e sua distinção entre atividades que possuem um fim em si mesmo e aquelas sob os ditames da instrumentalidade, e ainda a intransponível divisão entre teoria e prática, manifesta no abismo entre conhecimento e opinião.