• Nenhum resultado encontrado

O exercício do jornalismo significa ao mesmo tempo ter uma parte ativa na construção da opinião pública, liberdade de movimento e abertura para o mundo Michelle Perrot Sempre escrevi para ser publicado no dia

seguinte. Rubem Braga Dias vendendo miolo de cabeça para comprar miolo de pão. Humberto de Campos As crônicas são um meio privilegiado de entender a interação multifacetada entre o escritor e o mundo público em que se movia. John Gledson

A jovem, a senhora

Assinando Rita de Queluz publica, em 1928, o texto “Crônica”,177 que se inicia assim: “Vem de longe data – Narcisa Amália, Francisca Júlia, Júlia Lopes de Almeida bem atestam o pendor das brasileiras para as belas letras (...) Temos de exibir literatura com abundância e qualidade suficiente para desmentir a descolorada forma de escuridão mental de nossas avós, ou relegá-las no canto escuro onde se some todas as pequeninas misérias da humanidade”. Época em que as “mulheres tomam a imprensa de assalto”, é no gênero crônica, palavra de “significação elástica” para a jovem que “tanto exprime as descrições pitorescas e deliciosas de Vaz de Caminha como as lembranças sentimentais de melindrosas românticas” (...). Rachel escreve para criticar as mulheres que insistem em publicar textos cheios de

177

sentimentalismo, versando sobre as desilusões amorosas ou paixão para despertar a atenção de um possível pretendente. Se querem escrever, exorta: “por que não compendiam receitas de doces ou não fazem as traduções das legendas de “ La coquette” ou de “ Ouvrages dês dames”? (...) Os maridos afluirão aos cardumes confiantes.” Finaliza lembrando que estas mulheres que povoam as revistas e magazines congestionam a imprensa para aquelas que têm talento literário.

Trago à cena este escrito de juventude por dois motivos. Primeiro para apontar a sua consciência de uma certa tradição de autoria feminina na imprensa brasileira com a citação da tríada. Narciza Amália (1852- 1924) publicou na imprensa – jornais e revistas –, principalmente carioca, e os livros de poesia Nebulosas (1872) e Nelúmbias (1874) alcançando grande repercussão nos círculos literários. Segundo Sylvia Paixão, “Narcisa Amália foi a primeira mulher a se profissionalizar como jornalista, alcançando projeção em todo o Brasil com seus artigos em favor da Abolição da Escravatura, em defesa da mulher e dos oprimidos em geral”.178 Francisca Júlia (1871-1920), poeta parnasiana, publicou amplamente na imprensa e os livros Mármores (1895), Livro

da Infância (1899), Esphinges (1903), Alma Infantil (1912). Segundo

Zahidé Muzart, a poeta teve uma vida de amor intenso, porém adere a um eu lírico forte e másculo dominante.179 A terceira, Júlia Lopes de Almeida (1862-19340), uma escritora versátil em vários gêneros, publicou romances, contos, teatro, artigos, crônicas. Dedicou-se à atividade na imprensa, notadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, tornando-se o grande nome feminino da literatura brasileira no início do século XX. Publicou em folhetim A família Medeiros (1891), A viúva

Simões (1897), A falência (1901). “Mais que qualquer escritora do seu

tempo – recebeu o reconhecimento público e desempenhou um papel de progressista importante, especialmente no que diz respeito à educação feminina e às transformações do papel da mulher burguesa na mentalidade familista da Primeira República”.180 Enfim, três nomes, três modelos para as jovens cronistas citadas por Rita de Queluz ainda com a visão romântica, na qual a realização feminina passava exclusivamente pelo matrimônio.

178 PAIXÂO, Sylvia. Narcisa Amália. In: MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX . Vol I. Florianópolis: Mulheres, 1999, p. 536.

179MUZART, Zahidé L. Francisca Júlia. In:__________. Escritoras brasileiras do século XIX - Vol II. Florianópolis; Santa Cruz do Sul: Mulheres e Edunisc, 2004, p. 603-625.

180 SHARPE, Peggy. Júlia Lopes de Almeida. In: MUZART, Z. L. Escritoras brasileiras do século XIX - Vol II. Florianópolis; Santa Cruz do Sul: Mulheres e Edunisc, 2004, p.188.

Segundo motivo desta escrita juvenil, de igual relevância, é perceber a sua posição enquanto profissional da imprensa preocupada com o ofício, e distante de mera atividade de diletantismo. Rachel foi uma das poucas escritoras que, desde cedo, conquistou sua independência financeira sendo jornalista, romancista e tradutora. Não aceitou cargos públicos como muitos escritores. Ela era livre para transitar e escrever.

Em outra crônica – 1954 -, Rachel traz a mesma queixa da banalização do ofício:”O gênero crônica anda ultimamente meio barateado na imprensa nacional. Cada jornal e revista sustentam a sua equipe de pelo menos meia dúzia de cronistas, - pois se descobriu que a crônica é por demais fácil de fazer... E assim, para sentir nas entranhas da alma ou do corpo a mais pequena alteração, a melhor terapêutica é abrir coluna na imprensa e desabafar; explicar que se está com sono, com gripe, com tédio, ou com simples falta de assunto; e em estilo penumbrista, a modo de bolero em prosa sincopa (a chamada “prosa menor”), dividir com o leitor esses peculiares estados – digamos da d´álma.” 181

Assim, com esta crítica, possivelmente tenha gerado alguns desafetos entre os jornalistas de época.

Profissão: cronista / jornalista

Rachel de Queiroz sempre afirmou que não gostava de escrever. Escrever é ganha-pão. Para Antonio Dimas, a vantagem financeira trazida pela utilização do gênero proporciona aos escritores a estabilidade financeira que não seria possível com a comercialização de livros e, neste sentido, é um motivo indiscutível para pouco caso com o gênero, assumido por todos, de Drummond a Paulo Mendes Campos. Por outro lado, considera Antonio Dimas, a escolha de muitos escritores pelo gênero talvez possa ser porque os escritores “imaginem estar cumprindo uma forma de desempenho social”, tendo em vista que as formas de acesso às formas “mais refinadas da literatura estarem restritas a um pequeno número de pessoas”. O estudioso da obra cronística de Olavo Bilac ainda completa que “o argumento que discrimina a crônica, com base na efemeridade do jornal ou da revista que a estampa, não merece muita confiança. Se fosse verdade que o veículo condena-a ao esquecimento rápido ou a uma qualidade 181

necessariamente inferior, nossa história literária não apresentaria tantos cronistas de mérito e nem as editoras ainda investiriam no gênero, publicando coletâneas ou analogias.”182

Segundo Luciana Stegagno-Picchio, a crônica se torna uma espécie de “banca de exame de todo narrador e prosador brasileiro, destinada ao consumo jornalístico” ou “comentário-meditação-notícia de fatos contemporâneos” ou “contraponto em prosa da poesia do quotidiano introduzida pelos crepusculares e reproposta modernisticamente por poetas-cronistas como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.183

Neste percurso nem sempre há consenso quanto às qualidades do gênero. Silviano Santiago, em texto de 1978, ao comentar sobre o público-leitor de ficção, o classifica como “sofisticado e conservador, petulante e cosmopolita e ultimamente apressado”. Público do time is

money que dedica “maior simpatia às narrativas curtas (o conto), ou

mesmo a esta subliteratura desenvolvimentista que é a crônica de revista ou de jornal, reunida posteriormente em livro, servindo de passo para os nossos indigentes alunos de ginásio e as suas deslumbrantes professoras”.184 Anos depois o crítico reconsidera o seu ponto de vista e afirma que a crônica não pode ser “facilmente desprezada, pois serve hoje para tornar popular o nome do autor, podendo ajudá-lo a vender os livros mais densos”.185

Notas breves

Quanto à teoria sobre o gênero crônica, podemos buscá-la no Dicionário Houaiss:186 há, para o verbete crônica, nove acepções: de história a temas do cotidiano. Assim, o caráter generalista está marcado no próprio vocábulo. A palavra grega Chronos significa “tempo”, e em muitas palavras formadas com o radical crono, assim como crônica, está

182 DIMAS, Antônio. A crônica de Carlos Drummond de Andrade. Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, v. 42, n.2, p.7-17 abr./jun.1981, p. 8.

183 STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 543

184 SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa (A ficção brasileira modernista). In:__________. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 27.

185 SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 162.

186 Disponível em:

http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?stype=k&verbete=crônica&x=13&y=4. Acesso em: out. de 2005.

presente a ideia de temporalidade. “Frutinha do tempo”, como afirmou Machado de Assis.

Na década de 50, quando a crônica está fazendo muito sucesso na imprensa, Eduardo Portela investiga as peculiaridades deste gênero nos ensaios “A cidade e a letra”187 e “Agora e sempre Rachel de Queiroz”.188 Ressaltando o caráter urbano da crônica, o crítico considera que a crônica permanece pela qualidade do escritor.189

Em 1964 José Aderaldo Castelo,190 um dos grandes críticos e estudioso da literatura brasileira, publica ensaios sobre os cronistas Ernani Silva Bruno, Vivaldo Coracy e Rubem Braga. Sobre este último, na sua crônica a poesia brota da “prosa espontânea, ao mesmo tempo reflexiva, expressão da maturidade de quem viveu e aceitou plenamente a vida”. Para o crítico, “pequenas páginas em prosa, não raro prosa poética, flagrantes da vida quase sempre apanhados em instantes” são as crônicas de Braga. 191

Para Afrânio Coutinho,192 em seu estudo “Ensaio e crônica”, publicado em 1971, os gêneros literários se dividem pela relação direta ou indireta entre autor e leitor. Possuem relação direta com o leitor os autores que escrevem ensaios, crônicas, discursos, cartas, apólogos, máximas, diálogos e memórias. A relação indireta é estabelecida nos contos, novelas, epopeias, romances, gêneros narrativos, líricos e dramáticos.

Em 1974, Antonio Dimas193 se reporta sobre má vontade para com a crônica, que “sempre conheceu o desprestígio e sempre foi tratada de maneira irrelevante e pouco objetiva”. Fala de uma “crítica 187 PORTELA, Eduardo. A cidade e a letra. In:__________. Dimensões, I, crítica literária. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1958, p 111-117.

188 I PORTELA, Eduardo. “Agora e sempre Rachel de Queiroz”. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro: 11 jan. 1959.

189

Infelizmente não tivemos acesso aos textos e somente resumo via Boletim bibliográfico -

Biblioteca Mário de Andrade. v. 46, n. 1 /4, jan. a dez. de 1985, dedicado à crônica no Brasil,

coordenado por Nádia Batella Gotlib .

190 CASTELO. José Aderaldo. História e crônica. In: Método e interpretação. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1964, p. 123-141.

191 Sobre Rubem Braga Davi Arrigucci escreveu alguns ensaios, tais como: Móbile da memória. In. __________. Enigma e comentário. Ensaio sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 67-111 e “ Onde andará o Velho Braga?”. In:__________. Perdidos e achados. Ensaios de crítica. São Paulo: Polis, 1979, p. 159-166. 192 COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, p. 117.

193DIMAS, Antônio. Ambiguidade da Crônica: Literatura ou Jornalismo? Revista Littera. Rio de Janeiro, 4(12): 46-51, dez. 1974. Depois, publicou “A crônica de Carlos Drummond de Andrade.” Boletim Bibliográfico - Biblioteca Mário de Andrade. v. 42, n. 2. São Paulo, abr./jun.1985, p. 7-17.

arrogante” que desconhece a sua matéria e tem hábito de simplesmente desvalorizá-la. Exceção para as crônicas de José de Alencar e Machado de Assis (parte de uma “constelação maior”), pouco se sabe sobre demais autores. As razões para o descaso seriam duas. Primeira, a sua “feição financeiramente imediatista e utilitária” e, segundo, o caráter efêmero ( “adesão estreita ao objeto ao Tempo”). Para o estudioso, a crônica é tecida pelas “vicissitudes temporais” e “interpretação parcial de um fato, enfim é matéria breve, carregada de um “urgência da elaboração”.

Antonio Candido, no seu clássico ensaio “A vida ao rés-do-

chão”,194 de 1981, afirma que não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que possam dar o “brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas”. Ou mesmo que nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse; contudo, por ser menor é que ela fica perto da gente, o leitor. Por estar tão perto do dia a dia, ajustada à “sensibilidade de todo dia”, rompe com o monumental, falando perto do nosso modo de ser mais natural, a crônica se consolidou enquanto gênero “nosso” nos anos 30, cultivado por um grande número de escritores e jornalistas. O mesmo ensaio foi publicado em A crônica – o gênero, sua fixação e suas transformações no

Brasil,195 em 1992, como introdução de um amplo painel de estudos histórico-teórico e analíticos do gênero.

Nádia Batella Gotlib196 organiza, em 1985, para a Biblioteca Mário de Andrade, um boletim especial sobre o gênero crônica. O livro está dividido em quatro partes: teoria e história, leituras, documentação e pesquisa bibliográfica. Luiz Roncari197 define o cronista como o “sujeito que retrata o tempo, canta a imagem do turbilhão que remexe a ordem do mundo e não deixa nada fixo no lugar”. Marlyse Meyer198 investiga o folhetim (feuilleton em Francês), um espaço (rodapé) do jornal para entreter o leitor e dar uma pausa em meio às notícias. Segundo a estudiosa, “traduzir o Folhetim, traduzir folhetins-variedades, publicar romance em folhetim e escrever nos folhetins constitui para os jovens brasileiros candidatos a escritores do primeiro terço do século 194 CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: ANDRADE, Carlos Drummond de et. al. Para gostar de ler. v. 5. São Paulo: Ática, 1981.

195 A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

196

Boletim bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. v. 46, n. 1 /4, jan. a dez. de 1985. 197 RONCARI, Luiz. A estampa rotativa na crônica literária. Boletim bibliográfico - Biblioteca Mário de Andrade. v. 46, n. 1 /4, jan. a dez. de 1985, p. 9-16.

198 Cf. MEYER, Marlyse. Voláteis e versáteis, de variedades e folhetins se fez a chronica. Boletim bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. v. 46, n. 1 /4, jan. a dez. de 1985, p.17-41.

XIX um verdadeiro laboratório”. Alguns anos depois, Marlise Meyer escreve um longo estudo sobre o folhetim francês e a importação desta modalidade discursiva para o Brasil.199 O assunto “folhetim” é matéria para muitas páginas. O que me interessa neste momento é tão somente delinear o desenrolar do espaço folhetim-variedades para o que se passou a chamar de crônica. Comum a todos, e importantíssimo, era o suspense e o coração na mão, um lencinho não muito longe, o ritmo ágil de escrita que sustentasse uma leitura às vezes ainda soletrante, e a adequada utilização dos macetes diversos que amarrassem o público e garantissem sua fidelidade ao jornal, ao fascículo e, finalmente, ao livro.200

Em 1844, no “rodapé” do Jornal do Comércio, Joaquim Manoel de Macedo publica A Moreninha, primeiro romance brasileiro a alcançar significativo êxito de público, um dos marcos do Romantismo e da história da nossa literatura, enquanto romance de costumes, fixação de tipos e concepção do que se poderia chamar "a cena romanesca”.

José de Alencar, com Guarani, publicado entre fevereiro e abril de 1857, e A viuvinha, em 1860, é exemplo da popularidade do produto. A leitura do folhetim transforma-se em hábito familiar não somente na Corte como também nos serões das províncias. Momento da leitura oral com a presença das mulheres – público consumidor ávido por aventuras românticas – e a participação dos analfabetos, que eram a maioria.201 Outro folhetinista foi Machado de Assis. Escreveu A mão e a luva em O

Globo, em 1874, e Iaiá Garcia em O Cruzeiro, em 1878. Tornar-se-ia

nosso cronista maior. Neste sentido, diante das dificuldades de impressão de livros, muitos literatos tinham no jornal a opção para cair no gosto popular.

Mais uma vez,

considerando-se o nível de analfabetismo no Brasil fica uma pergunta: até que ponto as classes populares podiam consumir os romances ditos populares que lhes eram destinados “naturalmente”? É verdade que, neste país formado pelos padrões da oralidade, onde, nos primórdios

199 Cf. __________. Folhetim. Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 200 Meyer, Marlise. Op. cit., p. 303.

201 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1976, p. 279.

do folhetim, dominavam as famílias extensas e casas recheadas de serviçais e, mais tarde, as habitações populares coletivas, cortiços e vilas operárias, há de se levar em conta o efeito multiplicador de uma oitiva coletiva durante os serões.202

Para Davi Arrigucci, a crônica é “difícil de definir como tantas coisas simples”. Em seguida arrisca uma definição. “Lembrar e esquecer: trata-se de um relato em permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido”. Na crônica, o tempo é o ponto mais importante da narração dos fatos, encadeados segundo as lembranças, recordações do cronista. Sendo assim, para o crítico, o cronista é um “hábil artesão da experiência”, pois transforma acontecimentos em texto ficcional e ressignifica os fatos mediados pelas impressões obtidas. Ainda de modo mais poético, o crítico considera que o cronista é “um artesão ilhado no meio da indústria da informação”.203

Em 1993, Flora Bender e Ilka Laurito lançam o livro Crônica,

teoria e prática.204 Visto como “equilibrista do cotidiano”, o cronista é livre e preso. “Livre para escrever o que quiser e escravo de um papel a ser preenchido. E dessa dualidade, dessa tensão é que emanamos grandes textos, não mais puramente jornalísticos, mas de melhor qualidade literária”.

Com o crescimento dos estudos sobre mulher e literatura e da crítica feminista, Constância Lima Duarte é uma das pesquisadoras que se interessa pelo gênero crônica. Publicou alguns estudos, dentre eles

Considerações sobre a crônica feminina no Brasil (1995),205 no qual comenta a atuação das escritoras Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Dinah Silveira de Queirós e Adalgiza Nery como cronistas, ressaltando o caráter moderno de seus textos, bem como a contribuição dessas mulheres ao jornalismo literário brasileiro.206

202 Meyer, Marlise. Op. cit., p. 382.

203 JÚNIOR, Davi Arricucci. Fragmentos sobre a crônica. Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. v. 46, n. 1 /4, jan. a dez. de 1985, p. 44-53.

204 Cf. BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

205 Cf. DUARTE, Constância Lima. Considerações sobre a crônica feminina no Brasil. In: Anais do IV Congresso ABRALIC. São Paulo: ABRALIC, 1995, p. 213-220.

206 Atualmente desenvolve a pesquisa “Mulher e escritura: produção letrada e emancipação feminina no Brasil’ na UFMG.

Dois anos depois foi lançado Cronista do Rio, organizado por Beatriz Resende.207 Reunião de textos de vários autores sobre o Rio de Janeiro, o livro é parcela dos estudos de um Seminário do mesmo nome, do qual participaram Margarida de Souza Neves, Ângela Maria Dias, Gilda Salem Szklo, Sylvia Paixão, Vera Lins, Victor Adler, Renato Cordeiro Gomes e Beatriz Resende. Em meio às contribuições de Machado de Assis, Antônio Maria, Nelson Rodrigues, Marques Rabelo, Sylvia Paixão se dedica a Clarice Lispector e Marina Colassanti. Afirma que as crônicas de Clarice são uma forma de relacionar o ‘eu’ com o mundo. Escritas em primeira pessoa, revelam um sujeito que, por mais que se queira um mero observador do espetáculo da vida, não escapa de uma participação integral com a realidade, reconstituindo a sua história pessoal a partir do que percebe exteriormente.208 A Marina cronista “busca o fato, o acontecimento, para então transformá-lo através de uma linguagem muitas vezes poética, mas também humorística, com saborosas pitadas de ironia”, enfatiza a crítica.

Em outro estudo, Sylvia Paixão,209 ao comentar sobre a adaptação da crônica à realidade brasileira, afirma que este gênero literário torna- se o

veículo ideal no sentido de levar a literatura a um povo que não costuma ler, despertando-lhe a consciência crítica e também emotividade. Por sua relação com a imprensa, a crônica virou uma seção do jornal ou da revista, tornando-se um reflexo da vida moderna onde imperam a fugacidade, a rapidez, o descartável. E é justamente aí, na sua aparente fragilidade, que nasce, imperceptível, a sua força.

Neste estudo introdutório de A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida, Sylvia Paixão caracteriza a crônica como leve, amena, de leitura mais fácil, “traz quase sempre a interpretação de um fato conhecido por todos, investido pela subjetividade de quem comenta o assunto, dando um sabor novo ao acontecido”. Marcada pela “despretensão”, este gênero “quebra o monumental, o extraordinário, 207 Cf. RESENDE, Beatriz (org). Cronistas do Rio. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. 208

PAIXÂO, Sylvia. Clarice Lispector e Marina Colassanti – Mulheres no jornal. In: Cf. RESENDE, Beatriz (org). Cronistas do Rio. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001, p. 97- 116.

209 Cf. ALMEIDA, Júlia Lopes. A Silveirinha. Crônica de verão. Intr. Sylvia Paixão. Florianópolis: Mulheres, 1997, p. 09-10.

celebrando o cotidiano, o dia a dia, mostrando belezas insuspeitáveis através da argúcia, de graça e do humor de quem escreve”.

Lembro aqui que o crítico, tradutor e ensaísta inglês John Gledson,210 ao estudar a prosa ficcional de Machado de Assis, dedica um capítulo ao tratar com a série de crônicas “Bons dias!”. Considera de suma importância que se estude os gêneros ditos “menores” do grande romancista brasileiro. Se "as crônicas são um meio privilegiado de entender a interação multifacetada entre o escritor e o mundo público em que se movia", escreve no ensaio sobre "Bons dias!", é com espanto

Documentos relacionados