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As crônicas da natureza amazônica

4.1 À MARGEM DA HISTÓRIA (1909): da realidade amazônica às crônicas da

4.1.2 As crônicas da natureza amazônica

Analisando o conjunto da obra euclidiana, observa-se a extensa produção literária referente aos sertões amazônicos. A produção que trata dos sertões nordestinos, em comparação àqueles é de pequena monta. Como ressalta Melo, Euclides da Cunha foi “o primeiro brasileiro a ler, com profundidade, a Amazônia”179. Entretanto, qual a motivação de tal prevalência de estudos em relação destas e em detrimento daquelas?

Talvez isso seja evidenciado pelo sucesso editorial alcançado pela primeira obra euclidiana, Os Sertões (1902) e que, mesmo de forma involuntária, veio a sombrear os demais escritos do autor. Vários episódios garantiram o sucesso repentino da sua obra inaugural: a) em menos de dois meses de lançamento a “primeira edição estava esgotada” 180; b) com o sucesso atingido com o lançamento, em seguida foi providenciada a segunda edição, precisamente dentro de seis meses181. O mercado editorial da época via um acontecimento nunca visto. Estudiosos da obra euclidiana calculam que a soma das três

179 MELO, Arquilau de Castro. Euclides e a Amazônia. In: PIZA, Daniel. Amazônia de Euclides: viagem

de volta a um paraíso perdido. São Paulo: Leya, 2010, p. 187.

180 CUNHA, Euclides da. 115 A Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra

Completa. Vol. 02. Org. Paulo Roberto Pereira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009, p. 877-878.

181 CUNHA, Euclides da. 133 A Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra

84 | P á g i n a edições iniciais da obra atinge números próximos de seis mil exemplares182, o que reafirma o prestígio e a visibilidade que Euclides da Cunha detinha a partir da sua primeira e já obra-prima.

Com o passar do tempo, a marca euclidiana foi apenas aprimorada, mantendo a influência da ciência da época e acrescida das visões pessoais do próprio autor. O mesmo primor estético revelado em Os Sertões (1902) permanece em À Margem da História (1909). Os recursos imagéticos, como assevera Barros183, correspondem ao meio mais usual imposto por Euclides da Cunha para narrar a vivência naquele novo mundo, que antes conhecia apenas por meio dos mapas e textos. Percebe-se que diante do impacto inicial que tem ao defrontar-se com a natureza real, o escritor reproduz, nos moldes europeus, a perspetiva de colonização em relação a Amazônia. Entretanto, com o passar dos dias, novas concepções acerca daquele novo mundo vão sendo concebidas por Euclides da Cunha, e assim, a sua análise acerca daquela natureza virgem, ainda intocada por um brasileiro vai se modificando. E é nesse sentido que trata Barros através dos seguintes dizeres:

Com Euclides, a ciência alheia, passando pelo crisol dos trópicos, é submetida à transmutação: os antigos chamaram isto “a vertigem do Atlântico” – a marca da violência do transplantamento. O discurso amazônico de Euclides ganha outra direção, toma um sentido norteador. Muita coisa escapa à nomeação taxonómica, perde os limites de segurança científica. O afã fáustico, a grande apetência de ciência, ali se alia ao vigor do verbo culto, florido, de quem responde à impactação da descoberta, com o atrevimento da adjetivação.

O discurso historiográfico que resulta daí sai singularizado e cria, assim, uma percepção particular do objeto. Cria uma visão nova; não um reconhecimento.

O discurso científico, referencial e transitivo, informa o leitor; o discurso literário (e há o estatuto literário da história) prolonga sua pulsão escópica, toca o imaginário por aquela “feitiçaria” – a sorcellerie baudelairiana – de quem maneja sagazmente a linguagem na construção do fato histórico184.

182 GALVÃO, Walnice Nogueira. Apresentação. In: CUNHA, Euclides. Os Sertões. Edição crítica. São

Paulo: Brasiliense, 1985, (p. 21).

183 BARROS, Lourival Holanda. Historiografia a tintas nada neutras. Revista USP, n. 13, 1992, (p 45). 184 BARROS, Lourival Holanda. Historiografia a tintas nada neutras. Revista USP, n. 13, 1992, p 46.

85 | P á g i n a Todo esse pensamento de Barros vem apenas justificar e endossar tudo aquilo que estamos construindo acerca do pensamento euclidiano sobre os sertões amazônicos. A ciência aplicada por Euclides da Cunha nos seus textos sofre sequenciada mutação, pois o ambiente no qual ele está investigando diverge de forma total do ambiente europeu vivido por Comte, Kant, Spencer e tantos outros. Dessa feita, o discurso euclidiano sobre a Amazônia é de um tom inaugural, pois também rompe de modo permanente com os críticos brasileiros de seu tempo. Euclides da Cunha inicia um novo pensamento sobre o Brasil, um pensamento de descoberta sobre o Brasil e os seus confins. Toda essa novidade se deu, claro pela experiência pioneira obtida na expedição de Canudos. Lá Euclides da Cunha pôde perceber a sociedade a partir de um organismo dinâmico, como verdadeiramente se “constitui a natureza – ondulante e diversa do homem”185

A partir dessa nova vivência, e de atualizar as perspectivas que defendia, Euclides da Cunha inaugura um novo discurso, o de efetivar a nacionalização da Amazônia ao país, isto é notório frente as frequentes denuncias por ele feitas no que tange ao abandono que a localidade está imersa. O povoamento era algo urgente, bem como a representação do Estado por meio de seus órgãos. A efetivação de “tais processos visaram, efetivamente, tornar aquele território, concebido como abandonado e desértico (ou seja, sem marcas de civilização), familiar à nação, integrado a ela e voltado ao seu desenvolvimento e ao seu progresso, tanto econômico como social”186. Desse modo, foi necessária a presença institucional, governamental, para a efetivação de uma viagem com o escopo de narrar a Amazônia na sua amplitude, por meio de critérios científicos187. Com a precariedade que a ele foi oferecida, Euclides da Cunha alertou o Brasil para uma vivência amazônica até então desconhecida. Com a grandeza e relevância dos escritos euclidianos que nos dão até hoje importantes diretrizes acerca da Amazônia, fica a certeza que caso o governo brasileiro tivesse colaborado efetivamente, poderíamos ter uma análise bem mais apurada e total.

185 BARROS, Lourival Holanda. Historiografia a tintas nada neutras. Revista USP, n. 13, 1992, p 47. 186 GUIMARÃES, Leandro Belinaso. O sertão amazônico como deserto. Revista de Estudos

Universitárias (Sorocaba), v. 36, 2010, p. 130.

187 GUIMARÃES, Leandro Belinaso; WORTMANN, Maria Lucia Castagna. Passando a limpo a

Amazônia através da literatura de viagem: ensinando modos de ver. REP - Revista Espaço

86 | P á g i n a Tratando desse desamparo estatal, expõe Guimarães que ocorria na Amazônia naquele momento um duplo abandono: do homem e da natureza. A natureza permanecia desprotegida, despovoada, e o brasileiro que se aventurava na extração da borracha natural se tornava um estrangeiro, pois não teria qualquer auxílio estatal. Havia assim uma necessidade de colocar a natureza como parte inerente da nação, para assim integrar também o progresso nas suas mais variadas vertentes, indo desde a plenitude social e econômica188.

Toda essa idealização euclidiana rumo a integração dos territórios como forma de marcha ao progresso é refletida por Ventura da seguinte forma:

Euclides julgava inexorável a marcha do progresso e da civilização, que traria a absorção do indígena e do sertanejo pelas raças e culturas tidas como superiores. Os sertões quer nordestinos, quer amazônicos, são vistos como desertos, espaços fora da escrita. Ao explorar a caatinga e a floresta e resgatar o sertanejo esquecido, o narrador-viajante procura- va inseri-los na história. O escritor defendia a integração dos sertões à escrita e à história, cujos limites e fronteiras estariam em contínua ex- pansão. Povoar, colonizar e escriturar são os instrumentos de tal trans- plante da civilização para os territórios bárbaros. Fora de escrita e da história, não há salvação: só existe o deserto189.

No tempo de Euclides da Cunha, os sertões, sejam eles nordestinos ou amazônicos eram compreendidos como “espaços problema”, onde lá se faziam presentes um clima e um povo inaptos à civilização. Entretanto, ao realizar a transcrição dos sertões nordestinos e amazônicos, Euclides da Cunha insere esses espaços e sujeitos na história nacional, visto que, tudo isto permanecia marginalizado190. Com efeito, Euclides da Cunha realiza um trabalho minucioso de resgate por uma autêntica identidade nacional, pois compreendemos que não há identidade na exclusão. A identidade encontra-se firmada no traço de comunhão, de inclusão de todos os sujeitos que trazem consigo uma marca de

188 GUIMARÃES, Leandro Belinaso. O sertão amazônico como deserto. Revista de Estudos

Universitárias (Sorocaba), v. 36, 2010.

189 VENTURA, Roberto. Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha. História, Ciência, Saúde

- Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, 1998, p. 146.

190AMORY, Frederic. À Margem da História. In: AMORY, Frederic. Euclides da Cunha: uma Odisséia nos Trópicos. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2009, p. 359-90.

87 | P á g i n a igualdade, neste caso, a marca da nacionalidade. Rejeitados pelos governos que se sucediam, nordeste, norte, nordestino e nortista, são todos peças chave, de extrema relevância para a composição fática da identidade deste povo multicultural, que se faz um pela diferença.

Ao percorrer À Margem da História (1909) vemos que a mesma é detentora de quatro eixos centrais, sendo eles: Terra sem história (Amazônia), Vários estudos, Da

independência à república e Estrelas indecifráveis. Todos os momentos comportam

ensaios euclidianos que apresentam fatos e situações pelas quais o Brasil da época estava a passar. Devido ao recorte proposto, centraremos esforços em tecer comentários e colocações na primeira seção da obra, a nomeada por Terra sem história (Amazônia). Nela há a presença de sete crônicas euclidianas que apresentam uma realidade até então desconhecida do Brasil, a realidade do norte do país, precisamente da região amazônica, da sua natureza, das suas civilizações e dos povos ali residentes. Assim, temos descrições desde as primeiras observações proferidas por Euclides da Cunha ao ‘desembarcar’ na região, relatos acerca dos rios, do clima, dos extratores de látex, de algumas marcas de religiosidade, da presença de brasileiros na Amazônia peruana e, por fim, do projeto de criação de uma estrada que viria dar o desenvolvimento necessário para a região, a Transacreana.

Na primeira crônica, intitulada Impressões Gerais, Euclides da Cunha, inicialmente, apresenta um desencanto ao encontrar-se com o Amazonas por encontrar um choque primeiro entre a imagem subjetiva e a real do local em questão e assim passa a diminuir a grandeza do rio Amazonas. Como trata o mesmo Euclides da Cunha, referindo-se ao espaço físico que ora observava há “ao revés da admiração e o entusiasmo, o que sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do dédalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento” e finaliza o raciocínio acerca do preambular impacto com a seguinte inferência: “ao defrontarmos o

88 | P á g i n a Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada”191. Diante da diminuição do meio local evidenciada nas primeiras linhas euclidianas, o inverso, o elogio só é direcionado para a cidade de Belém, antes de dar início a sua expedição rumo ao Purus, quando ao compara-la com cidades do sudeste do país. Dessa feita, o destaque feito a cidade nortista não é um ato voluntário, mas sim um comentário comparativo, apesar de efetivamente demonstrar um elogio a região.

Nunca São Paulo e o Rio terão as suas avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes. Não se imagina no resto do Brasil o que é a cidade de Belém com os seus edifícios desmensurados, as suas praças incomparáveis e com sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa. Foi a maior surpresa de toda a viagem192.

Com essa concepção inicial dominada pelo rebaixamento do ambiente amazônico, visualizamos um pensamento euclidiano bastante marcado pela volta do ideal do colonizador, que quer imprimir no outro as suas marcas, os seus desejos, as suas impressões. O descontentamento primeiro pode ser analisado sob a perspectiva do olhar do outro, aquele mesmo olhar marcado pelos europeus em relação ao Brasil, no início de nossa colonização. O nosso meio, em contraste com outro que acabamos por conhecer, sempre é aparentemente melhor, pois bem o conhecemos. O estranho aos nossos olhos transmite desconfiança e descrédito, tudo isso movido pelo desconhecimento e sempre tende a realizar comparações com o espaço do qual é membro.

Para dar substância a essa nossa análise inicial, basta trazermos para esclarecimento outra descrição euclidiana para a Amazônia agora, de fato, conhecida: “Toda a Amazônia, sob este aspecto, não vale o segmento do litoral que vai de Cabo Frio à ponta do Munduba”193. O mais relevante dessas impressões gerais de Euclides da Cunha referente ao ambiente amazônico é que realmente serão apenas as impressões gerais, visto

191 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 01.

192 CUNHA, Euclides da. 243 A Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra

Completa. Vol. 02. Org. Paulo Roberto Pereira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009, p. 963-964.

89 | P á g i n a que, com o passar das narrativas, como veremos textualmente, e como desde o início do presente trabalho anunciamos, o olhar de Euclides da Cunha para o norte do país sobre uma mutação intensa.

O autor destaca a ausência de construções na região – “E como lhe falta a linha vertical, preexcelente na movimentação da paisagem, em poucas horas o observador cede a fadiga de monotonia inaturável e sente que seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como os dos mares” –, bem como o seu cansaço em ver a ‘mesma cena’ por vários momentos. Observa-se que, ao adentrar na realidade amazônica, Euclides da Cunha apenas queria enxergar o que lá não existia, ao seja, a modernização, essa mesma que ocorria em São Paulo e Rio de Janeiro. Todavia, o modo de vida amazônico é bem diferente da realidade trazida pelo autor, o processo de povoamento da região se iniciava com precária consolidação e, de igual modo, o progresso chegava, a passos lentos, mas vinha chegando. Ao passar a compreender o tempo da Amazônia, Euclides da Cunha passa a reconhecer a grandeza no qual encontrava-se imerso e se desprenderá de todos os preconceitos iniciais que consigo trazia. Paraiso Perdido viria a remir toda essa ideia primeira e errônea, mas restou para nós À Margem da História (1909) que, de modo similar, nos transmite essa nova abordagem de Euclides da Cunha para esse pedaço imenso de chão brasileiro que, se preservado de modo correto, poderá, quem sabe um dia, reder imensos frutos e conquistas para o país. Sempre com o pensamento de modernização e construção de uma identidade nacional plena e eficaz.

Além de iniciar demonstrando a natureza como uma “opulenta desordem”194, o homem local, de imediato, é visto como um “intruso impertinente”195. Nesse mesmo momento, atribuí o seu olhar para os rios locais – “parecem tatear uma situação de equilíbrio derivando, divagantes, em meandros instáveis”196–, para a flora – “imperfeita grandeza”197 –, para a fauna – “singular e monstruosa, onde imperam, pela corpulência, os anfíbios, o que é ainda um a impressão paleozoica”198 – e a inexistência de civilização.

194 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 02. 195 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 02. 196 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 02. 197 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 02. 198 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 02.

90 | P á g i n a Ao sempre descrever a realidade que agora se defrontara, Euclides da Cunha marca com frequência a influência da ciência perante as suas reflexões, referenciadas através de nomes como Wallace, Frederico Hartt, Humboldt e Em. Goeldi. A remissão a Hartt fica ecoada quando Euclides da Cunha o retoma e compartilha a seguinte afirmativa: “– Não sou poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!” Apesar de “renegar” a sua natureza de poeta e engrandecer o seu papel de cientista, Euclides da Cunha deixa presente nos seus escritos a marca da literariedade, fato que expõe o seu estilo e o reconhece como um relevante literato. A utilização da união entre linguagem e ciência, como destaca Hardman, corresponde a um imperativo epocal, um modo de buscar na representação do real os traços visíveis de modernidade199.

Agora, preliminarmente discutindo os rios da região, Euclides da Cunha registra a erosão natural sofrida pelo rio Amazonas, bem como a intensa relação de construção e desconstrução que o rio tem consigo próprio. Devido essa constante, Euclides da Cunha o concebe como “monstruoso artista”200 e a sua história como “revolta, desordenada, incompleta”201. O autor inicia a apresentar a grandiosidade da região no imaginário das civilizações distantes, mas retorna a questionar e problematizar a ausência de progresso. Algumas expedições, como a de Alexandre Rodrigues Ferreira, Tenreiro Aranha e Furtado de Mendonça, são apresentadas como tentativas de rompimento desses sertões, mas “vai-se de um a outro século na inaturável mesmice de renitentes tentativas abortadas”202. Devido a essas tentativas frustradas de efetivação da colonização é que Euclides da Cunha vem sentenciar que “aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é uma adversária do homem”203.

Apesar de uma análise que divergem a natureza e o homem, pode-se visualizar uma remodelagem, mesmo que de pequena monta, no pensamento inicial promovido por Euclides da Cunha. Segundo essa afirmativa, a natureza permanecia brutal e adversária do homem, todavia, há um adjetivo bastante interessante atribuído a natureza, qual seja, soberana. A partir dessa qualificação, podemos perceber que o Euclides da Cunha que

199 HARDMAN, Francisco Foot. A vigança da Hylea: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura

moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

200 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 09. 201 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 09. 202 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 10. 203 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 11.

91 | P á g i n a chegou às terras amazônicas era aquele mesmo que registrou Canudos, um homem que, apesar de ter seus conflitos com a natureza, reconhece na mesma o poder de escolha de seus habitantes, daqueles que dela tirarão proveito e com ela avançarão. As doutrinas deterministas, principalmente a de cunho climático, persistem no pensamento euclidiano quando ele detalha a presença do forasteiro.

Ainda na crônica Impressões Gerais, o ciclo da borracha já vem explicitado, assim como a exploração do homem pelo trabalho exaustivo da coleta do látex, ao definir a atividade como sendo “a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo”204 e o seringueiro que “é o homem que trabalha para escravizar-se”205. Destarte, a exploração, a desumanização e a escravização do homem amazônico é bastante detalhada nas linhas euclidianas. Acompanhado dessas definições, Euclides da Cunha traça todo o processo de saída do nordestino do seu estado natal, no caso citado, do Ceará, até a sua chegada nos seringais, contabilizando todas as despesas geradas por esse translado, o que ‘motiva’ a sua escravização.

Vede esta conta de venda de um homem:

No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa até ao Pará (35$000), e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte, num gaiola qualquer, de Belém ao barracão longínquo a que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cerca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí temos o nosso homem no barracão senhorial, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é um brabo, isto é, ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve 1:135$000. Segue para o posto solitário encalçado de um comboio levando-lhe a bagagem e víveres, rigorosamente marcados, que lhe bastem para três meses: 3 paneiros de farinha d’água, 1 saco de feijão, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isto lhe custa cerca de 750$000. Ainda não deu um talho de

204 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 13. 205 CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 13.

92 | P á g i n a

machadinha, ainda é o brabo canhestro, de quem chasqueia o manso experimentado, e já tem o compromisso sério de 2:090$000206.

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O presente fragmento em destaque contempla a síntese da exploração sofrida pelo cearense que chega nas terras amazônicas par realizar a extração junto a seringueira, e pode ser compreendida como um “abandono” de Euclides da Cunha em relação ao determinismo racial e climático, passando agora a tecer críticas propriamente a partir do

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