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Capítulo 2 – Trajetos do cravo no Brasil pela conexão em São Paulo e Campinas

2.9 Cravo em novos diálogos

No final da década de 1980, especialmente com o estabelecimento dos cursos de instrumentos na Unicamp, promoveram-se aberturas de novas experiências de fruição musical e encontro de jovens músicos, tanto seguindo as tendências da música de vanguarda quanto na música antiga. Isso se refletiu na formação de inúmeros grupos

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Helena Jank foi a responsável pela ampliação do curso de cravo no Programa de Pós-Graduação na Unicamp, a partir de 1989, inserindo o programa de Mestrado e posteriormente Doutorado em cravo.

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musicais revelando espaços criativos não só de práticas interpretativas, mas em termos de novidades conceituais.

Desse contexto histórico cultural de estrutura independente, forma-se o grupo Anima em meados de 1988 e seus integrantes incluem ex-alunos e professores do Instituto de Artes da Unicamp, como o próprio José Gramani, seu principal fundador. De início, o grupo configurava-se por uma formação instrumental de interesse musical-histórico na perspectiva da música antiga de execução dos repertórios medieval, renascentista e barroco, buscando realinhar-se com instrumentos de época ou réplicas de violino, cravo, flautas doces, viola da gamba, viola braguesa e percussões. Aos poucos se integram outros músicos, agregam-se sonoridades e instrumentos e naturalmente abandonam-se outros; o cravo e a flauta doce permanem, já a viola braguesa e o violino barraco são substituídos pela viola caipira e a rabeca. O processo de mudanças da sonoridade no grupo Anima ocorreu em 1992, que culminou com o lançamento do seu primeiro CD, Espiral do Tempo (1997), pelo amadurecimento da proposta de: (...) “arranjos coletivos feitos com base em pesquisas da música brasileira de tradição oral, relacionando-os, simbolicamente, com o universo da Música Antiga européia, com especial interesse para o universo musical do mundo colonizador ibérico” (GIFONI, 2008, p. 146).203 Nessa formação a partir de 1992, inicia-se uma nova fase profissional do grupo, com a combinação de instrumentos históricos e de artesãos populares, propondo um repertório além da música de época, com intervenções autorais brasileiras ou ainda de influências da cultura popular. O grupo permaneceu nessa linha de criação musical até 2008.204

Tal experiência expõe uma nova vertente de linguagem musical que desconstrói certos critérios estéticos de acordo com o estilo das obras “originais” ao costume das

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Sobre o levantamento histórico e questões musicais do Anima ver: GIFONI, Luciana. Música de câmara e

pós-modernismo: os grupos Syntagma (CE) e Anima (SP). Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de

Artes, UNESP, 2007. 204

O trabalho do Grupo ANIMA foi levado para salas de concertos de quase todo território brasileiro e em séries musicais nos EUA, Canadá e pela América Latina. O primeiro CD, intitulado Espiral do Tempo lançado em 1997/98, foi vencedor de prêmios nos âmbitos da música popular e da música erudita e recebeu prêmios como melhor grupo de música de câmara: “APCA” – Associação Paulista dos Críticos de Arte”, em 1998. O grupo ainda recebeu o “IV Prêmio Carlos Gomes”, 2000, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. A discografia do grupo consta de trabalhos autorais e participações: CD Trilhas, 1994;

Espiral do Tempo, 1997; Itaú Rumos Cultural, 1998; Teatro do Descobrimento, 1999; Especiarias, 2000; Festival de Música Chiquitana, Bolívia, 2002; Amares, 2003; Espelho, 2006; DVD Espetáculo Espelho,

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gerações passadas, com interferências interpretativas e timbrísticas. Nessa segunda fase do grupo – fora do “rotulado” conjunto camerístico de música historicamente informada – constituiu-se na mistura de instrumentos (cravo, rabecas e violas brasileiras, além de flautas-doce e indígenas, percussões brasileiras e árabes e voz), despertando o interesse tanto no campo da música histórica, quanto nos limites da pesquisa etnomusicológica do resgate das tradições orais brasileiras.

Com sua sonoridade própria, num trabalho inquietante e inovador, diferenciado de outros grupos camerísticos, o Anima destacou-se na época principalmente pela experimentação coletiva, com a participação dos membros nos arranjos que personalizaram o estilo musical do grupo. A criação musical e, elaboração conjunta partia da pesquisa em repertórios com várias referências, tais como: da música histórica, principalmente medieval e renascentista ibéricas; de linguagens da música da tradição oral brasileira; da aproximação do universo do movimento Armorial 205; bem como da música popular, além de execuções de composições autorais de integrantes.

O trabalho do grupo Anima alicerçou-se na reinvenção e pluralidade dos vários materiais musicais coletados, intersecção de linguagens e aliando novas concepções harmônicas, novas formas rítmicas, elementos timbrísticos, cantos tradicionais, batidas de percussões africanas, variedade de sonoridades de influência árabe, ibérica, sefardita, entre outras. Numa justaposição e bricolagem do antigo com o novo, o Anima também propôs divulgar certas afinidades existentes no encontro das reminiscências das culturas ibéricas antigas com culturas preservadas de grupos sociais particulares brasileiros, como musicas ligadas à cultura quilombola, manifestações originadas em povoados rurais, danças populares e músicas da liturgia cristã transferida às manifestações populares.

Essa estética musical era possível pela origem dos instrumentos musicais utilizados pelo grupo e pela própria formação eclética de seus integrantes em períodos distintos. Dalga Larrondo, percussão (zarb, bendir, caixa do divino, vaso de cerâmica); José Eduardo Gramani (de 1988 a 1997) e Luiz Fiamminghi (rabecas brasileiras); Ivan Vilela (de 1991 a 1999), Paulo Freire (de 2000 a 2001) e Ricardo Matsuda (a partir de 2001) (viola

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A música Armorial tem origem a partir do Movimento Armorial, de iniciativa do escritor Ariano Suassuna, na década de 1970, no Recife, com intuito de realizar uma música de raízes populares da cultura do nordeste com elementos eruditos.

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brasileira); Patricia Gatti (cravo); Valeria Bittar (flautas-doce históricas e flautas indígenas brasileiras); Isa Taube (voz).

A prática cravística foi, ao longo dos trabalhos do grupo, pautada principalmente por intervenções melódicas e acompanhamento harmônico, improvisações, realização de linha de baixo, uso de cluster, sequências e estruturas rítmicas, ostinatos rítmicos e melódicos, manutenção de linhas do baixo como pedal modal, polirritmias e estruturas harmônicas. Exemplos de partituras criadas naquelas bases evidenciam o “rearranjo e reharmonização” na execução do cravo. Conforme trecho da peça “Rosa das Rosas” escrita em galego-português, que integra as Cantigas de Santa Maria (cancioneiro medieval do século XIII reunido pelo rei Alfonso X, o Sábio [1221-1284], de Castela), destaca-se o acompanhamento realizado pelo cravo, com mudanças na abertura dos acordes e tensões no processo harmônico com uso de dissonâncias:

Figura 39 – trecho para execução do cravo; harmonização escrita por R. Matsuda, da peça Rosa das Rosas,

anônimo, Cantiga de Santa Maria X, sec. XIII. Fonte: Acervo particular, 2006.

Em outro exemplo, o “Jongo”, uma dança – originária da região do Congo trazida para o Brasil com os negros bantos, escravos nas fazendas do Vale do Rio Paraíba (RJ, SP, MG) –, cantada e acompanhada por instrumentos de percussão. O Jongo é um gênero que expressa uma parte do processo histórico vivido pelos negros no Brasil ao terem de deixar as plantações logo após a abolição da escravidão em 1888, e de integrarem-se nas cidades (CARVALHO, 2000).

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O cravo na peça se estrutura a partir da linha de baixo em 12/8 e incorpora elementos da música atonal para ser improvisado, como impulso rítmico e melódico no entrecruzamento com outros instrumentos.

Figura 40 – trecho para execução do cravo da peça Jongo, tradição oral brasileira, incorpora elementos da música atonal para improvisação.

Fonte: Acervo particular, 2006.

Especificamente o “Jongo” arranjado pelo Anima havia sido coletado por Marcus Pereira, na década de 1970 e o seu canto imortalizado por Clementina de Jesus (1901- 1987): “Tava durumindo, cangoma me chamou, disse levanta povo [fogo], cativeiro se acabou”.

O Anima, como um grupo camerístico no percurso da chamada “música antiga”, representou uma nova possibilidade criativa com descobertas e experimentalismos pelo contraste entre a dimensão dos instrumentos históricos de origem europeia e dos instrumentos de artesãos populares, da escolha dos repertórios entre histórico e popular, com intervenções musicais autorais e de influências da cultura popular brasileira, além de transportar elementos cênicos para o palco. Enquanto uma arte performativa para além da música, a própria execução do grupo passa a ter caráter artístico e criativo, considerando-se os novos elementos cênicos trazidos como algo a mais à obra musical executada.

Tal trajeto coincide com as reflexões – propostas por Kivy e Taruskin – e os novos parâmetros traçados nesse período acerca da música historicamente informada no domínio

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de rupturas de padrões, os quais se refletiram em projetos experimentais, que fizeram emergir o “antigo” como inspiração para o “novo”.

O convívio do grupo Anima despertou nos compositores que o integraram ideias musicais alinhadas com novas possibilidades para o cravo, em diálogos com outros instrumentos. Como exemplo, a composição Deodora de Gramani, originalmente escrita para dueto de cravo e rabeca, ganhou um arranjo com o objetivo de contemplar a sonoridade do grupo Anima (registrada em 1997 no CD Espiral do tempo). No caso de Ricardo Matsuda, pode ser mencionada a música Carta pro Zé composta originalmente para a formação do Anima, gravada no CD Amares, e depois rearranjada para dueto de viola e cravo.

Em resumo: o contexto da apropriação do cravo no Brasil, ao longo do seu trajeto, foi dado pelos elementos conflituosos entre o etnocentrismo europeu, rigidamente ligado à tradição, e a possibilidade das mesclas e sobreposição de elementos da música brasileira de certa forma sintetizada no grupo Anima. Logo, a presença do cravo em diversos ambientes musicais e nas leituras dos duetos para cravos de José E. Gramani e R. Matsuda – presentes no próximo capítulo – possibilitam a reflexão acerca da musicalidade brasileira, e da delimitação do conceito de Música Brasileira de fonte popular.

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