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Considerou-se, durante muitos anos, que os ameríndios não acreditavam em deuses, mas, segundo o testemunho dos cronistas e viajantes quinhentistas e seiscentistas, sabe-se que existia um sistema de crenças e não uma religião organizada, pelo menos de acordo com os parâmetros que hoje conhecemos.

A visão cosmológica das sociedades Tupis não atribuía a formação do Universo a um ser supremo, concebendo, antes, esse processo como resultante de sucessivas acções parciais e incompletas. No capítulo do “Sistema de Crenças”, JorgeCouto faz referência à «existência de uma grande homogeneidade relativamente ao discurso cosmológico, aos temas míticos e à vida religiosa (...)»123 .

De acordo com as teses de vários antropólogos, nas comunidades ameríndias verificava-se mesmo uma certa influência do sistema religioso sobre o sistema social que acabava por condicionar e impregnar todas as actividades desses mesmos grupos. A figura do herói, além de simbolizar o espírito da unidade étnica, segundo o mesmo estudioso, «(...) constituía também um decisivo factor de coesão social, pois consolidava as relações humanas no seio da comunidade, bem como fortalecia o seu posicionamento face ao ecossistema, ao mundo animal e aos outros grupos tribais»124.

As actividades criadoras de Monan – “o criador do céu, da terra e do homem” – e

Maír – “ente separado” –, teriam sido prosseguidas por heróis-civilizadores125, transmissores de técnicas, ritos e regras sociais que permitiram aos homens ultrapassar o estado de bestialidade. Entre estes destacava-se Sumé – “grande pajé e caraíba” –, a quem

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Thevet, op. cit., p. 57.

123 Op.cit., p. 109. 124 Idem, p. 110. 125

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estava atribuída a instituição da agricultura de coivara e da organização social. A este respeito, Métraux salienta que:

De acordo com algumas interpretações, Monan, Maíra e Sumé representariam vários desdobramentos de uma mesma personagem. A conclusão da actividade organizadora desses entes, bem como a prestação de auxílio aos humanos cabia a dois gémeos míticos ou, na versão Tupinambá, a dois irmãos, filhos de Sumé: Tamendonare (o bom) e Aricoute (o mau) 126.

Outra personagem mitológica importante era Tupã – divindade destruidora –, associado ao raio e ao trovão. Porém, vários etnólogos, como é o caso de Métraux, remetem Tupã, o “pai que está no alto”, para um plano secundário na mitologia Tupi. As sociedades Tupis davam também particular ênfase aos mitos cósmicos de sucessivas destruições do Mundo, pelo fogo e pela água, conhecendo-se diversas versões do dilúvio127. Couto confirma que «de acordo com uma versão recolhida na década de 1550 pelo franciscano André Thevet, os Tamoios acreditavam que tinham ocorrido duas destruições sucessivas do Mundo»128 .

Os ameríndios acreditavam na possibilidade de uma parcela do ser encontrar, após a morte, o Guajupiá – “Aldeia das Almas” –, situado para além das altas montanhas. Sobre esta crença, Couto (tal como Fernandes) revela que:

Após a morte, o espírito do homem iniciava a viagem em direcção ao Guajupiá – um paraíso situado para além das altas montanhas e em que cresciam bosques de sapucaia –, onde se encontraria com os ancestrais e aí viveria eternamente, no meio de grande abundância, saltando, dançando e divertindo-se incessantemente129.

Entretanto, Abbeville lembra, num tom crítico, que:

126 Op.cit., pp. 21-30. 127

Acreditavam ainda em vários seres sobrenaturais, demónios, génios da floresta, espíritos que pairavam nos bosques, os lugares escuros, além dos que viviam no meio aquático.

128 Op.cit., p. 111. 129

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Essa vida que julgam boa não é aferida pelo bem, nem pela virtude, porém pela crueldade e desumanidade: Julgam-se tanto mais honestos quanto maior número de prisioneiros massacram; e consideram uma vida boa a que se gasta na guerra, na exibição da valentia e na hostilidade encarniçada contra o inimigo; e acham covardes e efeminados os que não têm ânimo para isso [...]130.

Quanto aos rituais de enterramento das mulheres, desconhecem-se pormenores131. De acordo com a mitologia Tupinambá, «os espíritos destas (...) praticamente não tinham acesso ao jardim das delícias», pois este estava, como já vimos, «reservado aos grandes matadores»132.

No que diz respeito aos ritos funerários, Couto refere que «(...) destinavam-se, por um lado, a auxiliar o espírito do finado a alcançar o Guajupiá e, por outro, a proteger a comunidade do seu espectro, uma vez que consideravam o morto como um inimigo»133. Daí se explique que uma das precauções tomadas pelos Tupinambás residia em «amarrar o morto com ligaduras para impedir a eventualidade do seu regresso»134.

Neste complexo sistema de crenças, um papel fulcral era exercido pelos homens que desempenhavam funções mágico-religiosas: os pajés. Munidos do maracá135, estes tratavam os doentes com ervas medicinais e com esconjuros, nomeadamente através do bafejo com tabaco, para afastar os espíritos. Efectuavam também profecias, recorrendo ao transe induzido pela intoxicação com tabaco, articulando a crença na destruição do Globo com a promessa de uma Nova Terra onde não haveria Mal. Abbeville é testemunha do quanto respeitados eram estes homens.

Tratam-nos [pajés] bem em qualquer lugar que se encontrem. São honrosamente mencionados em seus cantos e bem acolhidos nas danças e

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Op.cit., p. 252.

131 Nas sociedades ameríndias vigorava além da divisão etária, a divisão sexual do trabalho, nem às

mulheres competiam os trabalhos produtivos, de recolecção, domésticos e de apoio nas expedições guerreiras terrestres ou marítimas. Entre os Tupinambá, a função de matar era então própria dos guerreiros, e a reprodutiva, das mulheres, como evidencou o próprio Thevet. Por isso, o autor refer que as viúvas, cujos maridos tinham sido mortos em guerra, não podiam se casar de novo antes que aqueles não tivessem sido vingados; porém, podiam ser cedidas, como companheiras, ao prisioneiro para «recompensar a perda do próprio defunto marido [...] isto tira elas da tristeza e do tédio». Cf. Thevet, op. cit., p. 283.

132 A construção do Brasil, Op. cit., p. 112. 133

Idem, Ibidem, p. 112.

134 Idem, Ibidem, p. 113.

135 Cabaça decorada que imitava o rosto humano, atravessada por uma vareta, com sementes ou pedras

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cauinagens e em todas as cerimô[ó]nias, pois todos acreditam que as cousas correm bem quando são amigos dos pajés e, ao contrário, muito mal se não os agradam. Se em alguma desgraça que lhes ocorra são ameaçados pelos pajés, atribuem à praga, daí por diante, todas as suas infelicidades136.

Em relação às mais recentes interpretações sobre a Nova Terra, onde não haveria lugar para o Mal, facto que fezdeslocar os ameríndios137 no período anterior à conquista europeia, Couto afirma que «colocam o acento tónico em razões de natureza ecológica e económica ligadas à quebra de produtividade dos solos (o mal da terra) e as suas consequências para a vida social e as práticas religiosas»138 . E, já durante a colonização, a procura da Nova Terra poderia ser interpretada como a procura de uma terra onde não fossem dominados pelos europeus, donos e senhores das suas almas.

136 Op.cit., p. 254. 137

Em 1500, os Tupi ocupavam a larga maioria da costa entre o Ceará e a Cananeia, actual São Paulo, e os Guarani, estabelecidos exclusivamente a sul do Trópico de Capricórnio, dominavam o litorial situado entre Cananeia e a Lagoa dos Patos (Rio Grande do Sul), além de importantes regiões no sertão.

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II Parte – Dos testemunhos dos viajantes e missionários às visões dos

intelectuais: a percepção do “Outro”

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2.1 A Troca Cultural – O “Outro” como espelho e o “Outro” como

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