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3 VISUAL NOVEL: A APROPRIAÇÃO DO ROMANCE PELA

3.4 A CULTURA DO VISUAL NOVEL

3.4.1 Criação em reclusão

Um dos efeitos da tendência à reclusão e da falta de importância atribuída à realidade social é a desvalorização da própria ideia de narrativa dentro das obras voltadas ao público

otaku, conforme defende o filósofo e crítico Hiroki Azuma (2009). Para esse autor, o interesse

pela ficcionalização surgiu por uma insatisfação com os padrões sociais, motivando os otakus a criar e procurar realidades alternativas com valores mais próximos dos seus interesses.

Com isso, narrativas com universos alternativos fantásticos, complexos e ricos foram produzidas como forma de compensação para a pouca identificação e o baixo interesse com a realidade social. No entanto, para Azuma (2009), essa atitude correspondeu apenas às obras produzidas durante um primeiro momento, até meados dos anos 80.

A partir dos anos 90, mesma década em que houve o surgimento das marcas Sound

Novel e Leaf Visual Novel Series, Azuma (2009) observa uma mudança de público e de foco.

Essa nova geração de otakus não deu tanta importância às mensagens e aos significados das obras e passaram a adotar uma visão fragmentada dos diversos elementos que compõem os personagens, abrangendo tanto aspectos visuais como características físicas, cor de cabelo ou vestimentas, quanto traços de personalidade e trejeitos.

Assim que os personagens são criados, eles são divididos em elementos, categoriza- dos e registrados em um banco de dados. Se não houver uma classificação apropriada, um novo elemento ou categoria será simplesmente adicionado. Neste sentido, a origi- nalidade de um personagem “original” só pode existir como um simulacro21

(AZUMA, 2009, p. 47, tradução nossa).

Após esse processo de decomposição, esses elementos, na forma de modelos de perso- nagem, passam a compor um grande acervo de referências entre o público otaku. Os modelos desse acervo servem como um parâmetro em que o público procura reincidências nas obras que ele consome. Da mesma forma, ilustradores e escritores constroem os personagens por meio da combinação dos diferentes itens desse acervo.

Na prática, isso significa que as obras criadas dentro dessa cultura possuem um caráter notavelmente arquetípico e autorreferencial. Os personagens e seus contextos são compostos por costuras com elementos de predecessores variados em uma teia tão intrincada que a própria noção de “original” se perde.

21 “As soon as the characters are created, they are broken up into elements, categorized, and registered to a

database. If there is no appropriate classification, a new element or category simply will be added. In this sense, the originality of an “original” character can only exist as a simulacrum”.

A experiência de ler visual novels e assistir a animes, dessa maneira, seria para Azuma (2009) um exercício de identificar e comparar as diferentes maneiras de reapresentar e recom- binar modelos de personagem enquanto, ao mesmo tempo, realiza pequenos acréscimos nesse inconsciente coletivo. Esse contraste, para o autor, é um elemento essencial da cultura otaku e é por ele que o valor de uma obra é reconhecido.

Azuma (2009) nomeia esse processo de database model (modelo de banco de dados, em tradução nossa). Essa expressão é utilizada pelos elementos de uma obra serem lidos e conver- tidos em informação. Essas informações compõem o banco de dados otaku e são dele extraídos para que uma nova recombinação crie um novo personagem e o contexto que o situa dentro da obra.

O database, enquanto aspecto tecnológico e fenômeno cultural, é bastante estudado por Lev Manovich (2001). O autor define o termo como um conjunto de informações armazenadas e organizadas em um sistema. A lógica do database possui grande força na cultura digital, de modo que quase sempre estamos interagindo com bancos de dados por meio de interfaces vari- adas. Seja um jogo digital, um visual novel ou um site de busca, há em todos conjuntos de dados e informações que são processados e ordenados durante seu funcionamento. Na teoria do data-

base model de Azuma (2009), os produtos da cultura otaku são como o database de Manovich

(2001) por fragmentarem personagens e narrativas e transformá-los em dados que são recom- binados sempre que uma nova obra é feita, sendo também acessados pelos leitores, jogadores e telespectadores sempre que usufruem de uma outra obra.

A ideia de obras interligadas não é novidade nos estudos sobre arte e cultura. O conceito de intertextualidade tem gerado há algumas décadas variadas discussões sobre como nenhum texto existe em isolamento e como o sentido seria uma construção coletiva (ALLEN, 2000). O que Azuma (2009) aparenta indicar é que na cultura otaku há uma forma específica de intertex- tualidade em que as conexões são construídas em isolamento com o banco de dados desse grupo cultural, ignorando as referências culturais e sociais externas. Em sua reclusão, o otaku apenas citaria e dialogaria com ele mesmo.

Isso, no entanto, não deve ser compreendido como uma norma totalizante sobre todas as pessoas envolvidas com essa cultura. É extremamente improvável que algum ilustrador ou escritor em sua formação nunca tenha sido influenciado por qualquer obra externa a esse meio, assim como é ingênuo acreditar que todos os otaku existem em uma bolha intocada por qualquer contexto sociocultural.

Por mais que eles optem pela ficção, ainda nasceram e existem em uma sociedade que deixa suas marcas em sua população. O conceito de database model deve ser compreendido

como uma postura coletiva, uma convenção desse grupo ou um comportamento geral. Mesmo que cada indivíduo, seja na posição de criador ou receptor, tenha sua forma particular de lidar com essas questões, os otaku enquanto grupo são pautados pela ficcionalização e pela manu- tenção de uma autorreferencialidade afastada de outros grupos culturais.

Além da desclassificação da realidade social, para Azuma (2009), uma consequência do modelo de banco de dados é a não importância dada para a própria presença de uma narrativa na obra. Com o prazer de leitura tão focado em combinar modelos para personagens, a história e o universo de uma produção otaku, como um visual novel, são postos em segundo plano, servindo apenas como uma contextualização para o desenvolvimento das personagens e forma- ção de conexões emocionais.

Personagens geralmente ocupam posição central em romances visuais, com Doki Doki

Literature Club! não sendo uma exceção. Como mencionamos anteriormente, é comum que

ramificações sejam escritas nesse formato com a intenção de explorar as possíveis relações amorosas de cada um deles. Além disso, a visualidade desse formato, com os sprites ilustrando os personagens ocupando a superfície da tela com destaque, ressalta esse mesmo aspecto. Para compreender exatamente como essa importância às personagens é concebida, é preciso discutir dois conceitos-chave: bishoujo e moe.