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A criação do Grupo de Trabalho Temático «Gênero» no CBCE: em busca de um lugar onde

2 CAPÍTULO I – A PRODUÇÃO CIENTÍFICA, A UNIVERSIDADE E A CIÊNCIA NO

2.1 VAMOS REVER O QUE EXISTE DE NOSSO PASSADO

2.1.2 A produção do conhecimento científico na Educação Física brasileira: feito amanhã

2.1.2.1 A criação do Grupo de Trabalho Temático «Gênero» no CBCE: em busca de um lugar onde

Para Valter Bracht (2009, p. 42), não obstante os desafios e dilemas que acompanham a associação, “o CBCE continua a ser aquele lugar/espaço impossível, mas absolutamente imprescindível para uma Educação Física que se quer protagonista de uma sociedade democrática”. É na interação com outras áreas ou ‘campos científicos’ [eixo basilar de sua criação] que uma multiplicidade das experiências e objetos de pesquisa encontram espaços de representação que repercutem na produção de conhecimentos capazes de gerarem impactos a nível social, político e/ou econômico. Entretanto, algumas pesquisas carecem de diagnósticos apurados e suficientemente críticos, consoante aos limites das/os pesquisadoras/es, que colaborem com a (re)definação de novos rumos e possibilitem a dinamização do processo científico na área (SACARDO, 2012).

À vista disto, a criação do GTT «Gênero» no ano de 2013 constituiu ⸺ não sem embates, que se prolongavam desde o ano de 2005, e as rebuscadas análises das/os pareceristas selecionadas/os para avaliarem as solicitações encaminhadas ⸺ uma relevante contribuição para a Educação Física brasileira, basta ver a historicidade de posicionamentos extremados, equivocados e tão autoritários que coadjuvam nos cenários esportivos, escolares e de lazer, dificultando o apropriado enfrentamento da temática, no sentido de refrear inúmeras violências e práticas discriminatórias (raciais, geracionais, de gênero, contra pessoas com deficiência, etc.) que se alastram por nossa sociedade.

Conforme consta no Relatório da coordenação do GTT Gênero (2015-2017) ao CBCE,

A consolidação dos estudos de gênero como um campo de conhecimento, a relevância da temática para ações pedagógicas e políticas públicas em Educação Física, o crescente número de pesquisadores/as na área justificam, entre outras razões, a presença do GTT Gênero nesta importante entidade científica da área de esportes e educação física. A temática de gênero está presente em outras associações científicas, como a Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais e a Associação Nacional de Pós- graduação em Educação, cujo GT Gênero, Sexualidade e Educação foi instituído em 2003. Gênero também é tema de editais de fomento a pesquisas científicas, de periódicos e eventos científicos nacionais e internacionais. Neste cenário, a institucionalização do GTT Gênero no CBCE reconhece a importância dessa área de conhecimento para o campo, ao mesmo tempo que fomenta a produção científica, possibilitando a divulgação de pesquisas e o encontro entre pesquisadores/as (ALTMANN ET AL., 2015/2017, p. 1-2).

Quanto a isso, o esporte é apenas uma dentre as práticas corporais nas quais o gênero pode constituir uma categoria de análise, viabilizando não só o aperfeiçoamento dos debates no ‘campo científico’ da Educação Física como também a evolução de sua qualidade no Brasil e na América Latina, pois, se compreendermos mais adequadamente suas fragilidades seremos eficazes em superá-las. Nesta circunstância, uma entidade científica como o CBCE que reflete “o universo da pesquisa, produção do conhecimento e divulgação científica48”, revela sua importância (CBCE, 1979).

Jeni Vaistman (1994, p. 8) argumenta que “na gênese do indivíduo moderno não houve espaço para que a diferença entre os sexos se expressasse de forma igualitária, traduzindo-se, ao contrário, por meio de uma dicotomia e uma hierarquia de gênero entre homens «universal» e mulheres «outro»”, o que garantiu que os princípios de autonomia e igualdade se conformassem como “atributos do gênero masculino”. E com o esporte moderno não foi diferente, pois sendo considerado um fenômeno de totalidade social pelas/os historiadoras/es das décadas de 1970 e 1980, e caracterizando ainda “a expressão da cultura do mundo científico”, como proposto por Allen Guttman (1978 apud Douglas Booth, 2011 p. 4), “foi/é um dos principais espaços para a construção, expressão e conservação do modelo tradicional de masculinidade”, tal como reiteram Eric Dunning & Joseph Maguire (1997, p.322).

Deste modo, ainda que incerta, há a expectativa de que pesquisas que associem o esporte à temática de gênero impactem o cenário científico e sociopolítico, a ponto de estimularem que pessoas marginalizadas sejam reconhecidas, desfrutem de políticas públicas equânimes e tenham voz/corpo/caminhos/função, a fim de que possam apresentar as potencialidades das quais dispõem ao se movimentarem em busca do ideal espetacular viabilizado através do(s) esporte(s). Na condição de “território permeado por ambiguidades”, como menciona Silvana

48 Através de três espaços que merecem ser destacados: a Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), os

Goellner (2005, p. 145), “o mundo esportivo fascina e desassossega homens e mulheres, tanto porque contesta os discursos legitimadores dos limites e condutas próprias de cada sexo, como porque, através de seus rituais, faz vibrar a tensão entre a liberação e o controle das emoções” e igualmente as expressões apropriadas do feminino e do masculino.

A título de exemplo, no ano de 2016, acompanhamos “aos inusitados” Jogos Olímpicos e Paralímpicos sediados na cidade do Rio de Janeiro no Brasil, cujas mídias anunciaram que contávamos com a maior porcentagem de mulheres atletas da história, uma delegação de imigrantes refugiadas/os, bem como o dobro de atletas que revelaram (ou foram forçadas/os a revelar)49 suas orientações sexuais e/ou identidade gênero, se comparando exclusivamente aos Jogos Olímpicos de Londres 2012. Houve ainda a exclusão de grande parte da delegação Russa, pelos escândalos de doping institucionalizado, e igualmente a participação da primeira mulher transexual, Lea T50, a ter destaque em uma cerimônia de abertura de um megaevento esportivo, fatos que geraram polêmicas e marcaram o suficiente para serem relembrados.

Ainda assim o ano olímpico no Brasil parece ter sido marcado pelas tentativas de promoção da inclusão e de cumprimento dos ideais de justiça por meio do esporte, e é por essa razão que, ao “aglutinar pesquisadores/as com interesses comuns de estudo e pesquisas; fomentar e organizar a reflexão, a produção e a difusão do conhecimento (CBCE, Cap. 3, art. 17º)”, temos a possibilidade de tornar mais amplos nossos olhares e ações perante a sociedade. Todo/a estudo/pesquisa será um ponto de partida para que novos questionamentos sejam produzidos e possam ser acessados, daí a reivindicação por espaços fazer tanto sentido.

Entretanto, é fundamental salientar que há um longo caminho a ser percorrido para que os estudos de gênero sejam abrangentes e acertadamente pautados, já que existe a tendência de perseguições, no contexto social, esportivo e da própria Educação Física, motivadas por questões que perpassam as fronteiras da produção do conhecimento, do senso-comum, do próprio gênero, da(s) sexualidade(s), incluindo por vezes aspectos geracionais ou relativos a classe social e/ou a raça, capazes de reforçar sentimentos de inutilidade e processos de desumanização de alguns indivíduos, que por tais motivos pouco participam de ações efetivas que visem a promoção de bem-estar social e econômico geral.

49 A revisão da restrições impostas pelo COI, através do Consensus Meeting on Sex Reassignment and Hyperandrogenism (2015), possibilitaram que atletas transgêneros e intersexuais competissem nas Olimpíadas de

2016. “Numa reunião do COI em maio de 2016, foi revelado que duas atletas trans, mantidas no anonimato, competiriam nos Jogos do Rio. Segundo o Daily Mail, as atletas teriam ficado tão aflitas com a perspectiva de sua história de gênero se tornar pública que pensavam em "saltar fora" de qualquer possibilidade real de ganhar uma medalha”. Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-3671937/Transgender-British-athletes-born- men-set-make-Olympic-history-competing-games-women.html Acesso em: 06 outubro 2019.

50 Filha do ex-jogador da seleção brasileira, Toninho Cerezo. Leandra Medeiros Cerezo, hoje top model

internacional, nasceu em Belo Horizonte em 1981, mas cresceu na Itália. Disponível em:

Nos períodos em que a restrição do campo da Educação Física a determinados problemas de pesquisa era efetiva, ocorreu a migração de muitas/os pesquisadoras/es que procuraram outras áreas do conhecimento para que suas temáticas de estudo fossem legitimadas, o que atualmente resulta em entraves para que sejam (re)absorvidas/os ao cenário acadêmico da área (dadas exigências que figuram alguns processos seletivos).

Como pontua Silvana Goellner (2014, p.1) “a criação de um GTT é um indício de que uma temática foi considerada relevante para a comunidade científica, tanto pelo número de trabalhos científicos divulgados (em Congressos e Periódicos) quanto politicamente”. Em particular, quando há o avanço de pensamentos retrógrados e conservadores ⸺ que buscam esfacelar direitos e conquistas de grupos sociais que, em pleno século XXI, são considerados nocivos ⸺ tentar subverter a ordem científica hegemônica parece sempre uma boa estratégia a ser usada, haja vista que nos colocamos a forjar uma espécie de antagonismo [inconformidade] com relação ao que está estabelecido como norma na ciência e na sociedade brasileira.

Escrever sobre gênero é agora uma maneira particular de conhecer melhor o que temos feito e, porventura, ser mais uma vez impertinente, peregrinando na contramão desta via que a todo momento pretende nos direcionar por caminhos e/ou epistemes tidas como mais corretas e virtuosas porque “abrangentes” [uma ironia] ou por uma linhagem de pensamento acadêmico nobre, objetivo, não identitário, cujos padrões devem ser milimetricamente seguidos justamente por serem “legítimos” [outro ironia] e estarem em coerência com aquelas/es que exercem seus (pequenos) poderes.

3 CAPÍTULO II – GÊNERO: UMA CATEGORIA QUE PRODUZ TANTOS