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Crianças e infância: reflexões a partir da Sociologia da Infância

No documento elietedocarmogarciaverbenaefaria (páginas 132-138)

2 TRILHANDO A PESQUISA DE CAMPO: A ETNOGRAFIA COMO METODOLOGIA DE

3.1 Crianças e infância: reflexões a partir da Sociologia da Infância

Campo Grande, MS. 21 de julho de 1995.

Prezada amiga. Minha infância é marcada por gestos de peixes, por entes que alçam tipo borboletas e bem-te-vis, por entes que rastejam tipo lesma, lagarto. [...] Tive de fazer eu mesmo as artices da infância. [...] Fui criado no mato isolado. Acho que isso me obrigava a ampliar

o meu mundo com o imaginário. Inventei meus brinquedos e meu vocabulário. Quando eu não achava a palavra para nomear a coisa

eu modelava ela com as mãos. [...]

(Manoel de Barros, 200358)

Esse trecho de uma carta escrita por Manoel de Barros nos faz pensar a infância a partir de um olhar que a reconhece como marcada por uma cultura que externaliza condutas atreladas ao contexto sócio-histórico e cultural vivido pela criança. Uma infância compreendida como uma construção e uma variável de análise social em que a criança é ator social, construtora de cultura59 e ser peculiar pela sua alteridade. É influenciada pelo meio social e o influencia, modificando a realidade e criando novas representações a partir das interação estabelecidas.

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Carta de Manoel de Barros para Sheila Moura Hue, publicada por Santiago (2003, p. 218-219).

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Sobre a cultura da infância, Sarmento (2004) destaca como pilares: Interatividade, relacionada à convivência com os pares que possibilita a interação, a partilha etc.; Ludicidade, a partir da qual o brincar é entendido como o que de mais sério é realizado pela criança; Imaginação do real no qual é possível a criança viver o jogo de forma aceitável pela mesma, ou seja, a imaginação como configuração do real; e Reiteração em que a criança vive a brincadeira como flexível e num tempo recursivo, podendo recomeçar, atribuir pausas, repetir momentos vivenciados entre outras situações. Essas dimensões serão apresentados ainda neste capítulo.

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As relações humanas vivenciadas pelas crianças na sociedade devem ser compreendidas a partir de uma visão macrossociológica, na qual particularidades da sociedade são analisadas em termos microssociológicos (Giddens, 2009). Isso significa dizer que situações "micro" afetam a globalidade e situações "macro" interferem nas particularidades de um grupo social. Dessa forma, a infância deixa de ser vista como uma etapa onde é possível identificar um pequeno adulto e passa a ser reconhecida como categoria social permanente que exige ser vivida, reconhecida e valorizada pela sua especificidade.

No contexto da Modernidade, período em que se reconhece a existência da infância, Ariès (1981) fala do sentimento da infância e explicita que não basta haver criança para que a infância exista. Dos estudos históricos, o que se percebe é que, na Idade Média, não havia definição e compreensão clara acerca da infância e sobre suas características e especificidades. Funções eram atribuídas desde a infância e criavam identificações específicas para o ser humano em diferentes etapas de sua vida, que se caracterizada pela variedade de faixas etárias existentes. Isso contribuiu para a transmissão de condutas e costumes sobre o funcionamento da casa e a administração familiar.

Nesse contexto, as crianças eram percebidas como adultos em menor escala. Para Ariès (op. cit.), o processo de identificação e descoberta da infância seria retardado até que se compreendesse e fosse reconhecido que esse grupo precisava de tratamento especial, adequado às suas especificidades. Nessa época, chegou-se a pensar na infância como um período sem lugar na civilização, considerada indefinida e imprecisa, o que contribuiu para que a mesma não fosse retratada e destacada historicamente. Esse apagamento, ou mesmo marginalização, é classificado como consequência da ausência de reconhecimento de uma consciência a respeito da infância, fato esse que sofreu críticas de historiadores.

Da constituição da infância na Modernidade à sua reinvenção na Contemporaneidade, Sarmento (2011) aponta mudanças percebidas em instituições sociais como família e escola. No primeiro caso, a criança passa a ser o centro da organização familiar, constituindo a ideia de família nuclear, não mais reconhecida como patriarcal; a escola, instituição pública de socialização e local de pertença da

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criança, é criada para transmitir saberes de forma uniformizada, sendo organizada no sentido de inculcar comportamentos, valores, normas coerentes com padrões de crescimento e desenvolvimento da criança. Em termos simbólicos, a criança é mergulhada num mundo de regras e princípios, orientados por um conjunto de saberes sobre ela de natureza médica, psicológica e comportamental, pautado na psicologia do desenvolvimento, que definem a norma social da infância na Modernidade.

Na 2ª Modernidade, ou seja, na Contemporaneidade, a sociedade passa por modificações que, conforme Beck (2003), caracterizam-na como sociedade de risco. Essas modificações alteram a visão da infância, que passa a ser reconhecida a partir de sua especificidade, e a criança como um ser humano complexo, não mais um ser inocente, uma miniatura do adulto. Sarmento (2011), ao refletir acerca dessas modificações, aponta que a organização familiar passa por mudanças sociais, deixando de ser vista como meio de proteção à criança que vive, juntamente com a família, os problemas dessa estrutura. Com relação a isso, o autor destaca alguns aspectos como a organização recomposta da família, a monoparentalidade e a maternidade precoce, por exemplo, caracterizando-a como um local problemático e crítico. Sobre a escola, o autor reconhece a sua expansão e também a sua crise em função de iniciativas que culminam com a empresarialização da ação educativa, que segue a lógica do mercado, apostando na seletividade e produtividade em massa. A ludicidade, elemento fundamental na cultura infantil, choca-se com a concepção de produção pautada nos moldes da indústria capitalista, presente nesse contexto. Soma-se a isso a criação de uma indústria de serviços e produtos para a infância, com objetivo de ocupar o tempo livre das crianças e incutir no cotidiano infantil diversos materiais, jogos e artigos de alimentação e vestuário como se fossem desejos e características "naturais" da infância. Oferece atividades e produtos que se resumem em um saber adquirido pelo mercado de consumo, vinculado à tecnologia; em termos simbólicos, fala-se de uma "nova" norma da infância, com discurso de afirmação da autonomia da criança, influenciada pela indústria de produtos e serviços que "moldam" os seus comportamentos, podendo ser entendida como um "refinamento" na forma de controle das mesmas.

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Se a criança passa a ser compreendida com um ser complexo e que vive a sociedade como esta lhe é apresentada e a infância como lhe é permitida, aponta-se a necessidade de se considerar, para diferentes crianças, diferentes formas de configuração da infância e não um modelo idealizado-padronizado de filhos de família nuclear que está livre das intempéries sociais, como circunscrito nas instituições sociais apresentadas.

Em termos científicos e vertentes epistemológicas, a infância e a criança foram, por muitos anos, marginalizadas nas pesquisas de bases sociológicas e antropológicas. Isso não significa que esse grupo não tenha sido alvo de estudos, mas sim que o foco não se voltava para a infância enquanto categoria estrutural da sociedade e nem a criança como ator nesse contexto. Segundo Qvortrup (2010a), os estudos sobre criança e infância tinham base epistemológica amparada na psicologia e na psicanálise, tendo como objetivo compreender o desenvolvimento da criança a partir da sua transição para a fase adulta. Assim, a infância é vista como um período - etapa individual da vida - para amadurecimento sexual, cognitivo e funcional (motor).

A utilização de termos aplicados à infância numa perspectiva sociológica são relativamente recentes. Qvortrup (op. cit., p 633) afirma que "no final do século XX, a introdução e a ampla aplicação dos termos estrutura e agência, e sua inter-relação, era algo novo, tido como significativo para os estudos sobre a infância". O autor complementa afirmando que, ainda que sociólogos tivessem abordado a criança e a infância em suas pesquisas, o teor do conteúdo era fiel à ideia de socialização, cuja finalidade é socializar as crianças conforme as normas da sociedade e integrá-las ao meio regido por determinações adultocêntricas, que não permitem o reconhecimento da infância como categoria estrutural, colocando tais reflexões numa perspectiva preparatória da criança para a vida adulta.

A essa concepção, em que a infância é entendida como um período de desenvolvimento da vida, opõe-se a compreensão da infância como categoria estrutural da sociedade, uma categoria permanente cujo aspecto epistemológico ampara essa pesquisa. Os parâmetros culturais, políticos, sociais, econômicos e tecnológicos interferem nos valores e normas da sociedade e, dessa forma, modificam a infância em cada momento histórico, mas não nega a sua existência enquanto

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categoria estrutural. Prout (1990) compartilha essa ideia ao entender a infância como construção social.

Desse modo, ela fornece um quadro interpretativo que permite contextualizar os primeiros anos da vida humana. A infância, vista como fenômeno diferente da imaturidade biológica, não é mais um elemento natural ou universal dos grupos humanos, mas aparece como um componente específico tanto estrutural quanto cultural de um grande número de sociedades. (apud Sirota, 2001, p. 18-19)

O autor desnaturaliza a definição sem, contudo, negar a imaturidade biológica da criança que se associa aos componentes cultural e social em que vive. A infância como construção social está intimamente associada à criança como ator social, ou seja, aquela que cria cultura e age a partir do lugar social que ocupa e dos significados e representações construídos e ao mesmo tempo compartilhados.

Dessa forma, Qvortrup (2010a, p. 641) atesta que "a infância, em termos estruturais, assume formas diferentes como resultado das transformações sociais". Tal reflexão é complementada ao afirmar:

Em temos estruturais, ela não é transitória e não é um período; tem permanência. O desenvolvimento histórico da infância não acaba com a sua categoria; e a variabilidade cultural da infância contemporânea testemunha a favor da sua presença universal. (Qvortrup, op. cit., p. 641)

Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que a infância transforma-se constantemente, todas as crianças vivem-na, cada uma em seu espaço e tempo sociais. Quando se é criança, vive-se a infância; e quando adulto, significa que a infância dessa criança deixou de existir. Ainda assim, a infância como categoria permanece para receber outras crianças, de outra geração, assumindo haver mudança e continuidade simultaneamente. Portanto, para entender essa etapa da vida como categoria estrutural, faz-se necessário compreender os parâmetros que circunscrevem a vida das crianças, explicitados nas interações sociais estabelecidas no espaço ocupado (contexto físico, geográfico e social) e no lugar vivido (local restrito, com sentido, emoções e identidade).

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Essas percepções encontram amparo em especial nos estudos da Sociologia da Infância, uma área que tem dado grandes contribuições para a compreensão da diversidade de questões que se apresentam na atualidade. A partir do XII Congresso Mundial de Sociologia, realizado em Madrid, no ano de 1990, no qual os sociólogos da infância reuniram-se pela primeira vez, Quinteiro (2005) destaca o fato de que vários artigos tenham sido publicados sobre a emergência do que seria um novo campo de estudos: a Sociologia da Infância.

Ao estudar o advento da Sociologia da Infância, a partir das produções em língua inglesa e francesa, Quinteiro (2003, p. 2) aponta a "[...] oposição à concepção de infância considerada como um simples objeto passivo de uma socialização orientada por instituições ou agentes sociais". A autora amplia sua reflexão afirmando que a construção social da infância surge como um novo paradigma, voltado principalmente contra a "[...] visão da criança considerada como tábula rasa à qual os adultos imprimem a sua cultura" (Quinteiro, op. cit., p. 2).

Sarmento (2007) sintetiza a mudança de olhar sobre a criança proposta por James, Jenks e Prout (1998): de um período das imagens da "criança pré-sociológica" para um segundo, das imagens da "criança sociológica". O primeiro desconsidera a infância como categoria social e entende o sujeito infantil como "entidade singular abstrata", tipificando-o: a criança má, da teoria de Hobbes; a criança inocente, de Rousseau; a criança imanente, de Locke; a criança naturalmente em desenvolvimento, de Piaget; a criança inconsciente, de Freud. O segundo período interpreta as crianças a partir da perspectiva das Ciências Sociais.

Na perspectiva reducionista, a criança é sempre vista de cima e compreendida pelo adulto que tudo sabe a seu respeito, sem ao menos ouvir sua voz. É símbolo da inocência e do devir. No entanto, novas concepções de criança na contemporaneidade reconhecem-na ativa, criativa e criadora, capaz de estabelecer múltiplas relações, cidadã de direitos, um ser produtor de cultura e nela inserida. Em termos culturais, Geertz (2008, p. 4) entende a cultura como teia de significados, tecida pelo homem que ao mesmo tempo está a ela amarrado, que exige ser interpretada para a qual se deve estar "[...] à procura de significado". Compreender a(s) cultura(s) produzida(s) pelas crianças e identificar seu(s) significado(s) é relevante nessa pesquisa.

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A Sociologia da Infância tem conduzido seus estudos baseado em uma perspectiva diferenciada: cada criança é parte de um grupo social, produtora de cultura. Negocia com o mundo adultoa sua existência, utilizando-se da sua capacidade de criar, nomear, simbolizar e interpretar a realidade na qual está inscrita e a qual produz. Entre seus pares, elas reinterpretam continuamente as relações de poder nas quais estão inseridas, tornando-as fluidas, mutantes. Estabelecem critérios, modificam-nos, refazem-nos. Portanto, crianças são sujeitos construtores de cultura, produtores de significados próprios.

Os estudiosos dessa área de conhecimento compreendem a criança a partir de seu contexto cultural, inserida em um processo não de adultização ou de substituição de não-saberes por saberes pré-determinados pelos adultos. As possíveis concepções da criança, aqui, não são tomadas como se fossem a própria criança, como se a realidade fosse universal. São concepções datadas, pertencentes a um tempo- espaço próprio, particular, que não se aplicam necessariamente a outras realidades.

A compreensão da criança como ser imerso em uma cultura específica e a produção de cultura infantil relacionam-se diretamente à ludicidade, que tem importante componente corporal.

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