• Nenhum resultado encontrado

Crime e castigo

No documento Jantar Secreto - Raphael Montes (páginas 89-98)

Dois comprimidos de Rivotril cuidaram do meu sono. Não tive pesadelos nem calafrios. Quem me visse sob os lençóis, diria que eu dormia com a consciência tranquila. O sábado amanheceu nublado, e eu só entrava na livraria às três. Fiquei me revirando na cama, sem vontade de pôr os pés para fora. A noite anterior se diluía em minha memória, como se não passasse de delírio: a música, as pessoas, os cheiros, a comida… A lataria amassada do Bukowski, no entanto, era bem real. O homem morto, com sangue saindo pelo pescoço, também. Não dava para varrer tudo para debaixo do tapete e seguir em frente. Tomei um banho demorado, como se a água corrente limpasse impurezas morais. Peguei um copo de leite na cozinha e encontrei a louça toda lavada, inclusive a taça de vinho que eu deixara pela metade antes de ir para a cama. Não havia ninguém na área de serviço, na cozinha ou na sala. Era possível que Leitão ainda estivesse dormindo com Cora e que Miguel ainda não tivesse voltado, mas Hugo deveria estar no sofá, vendo TV e entrando em sites de restaurantes do Guia Michelin, como

fazia todo fim de semana à toa. Conferi o quarto, mas ele não estava lá.

Quando comecei a me vestir, ouvi alguém chegando em casa. Avancei pelo corredor e flagrei Hugo entrando pela porta dos fundos como se pisasse em ovos. Ao me ver, ele tentou disfarçar. “Pensei que você já tinha saído…” “Tô terminando de me arrumar pro trabalho. Você tá me evitando?” Ele foi para a cozinha e pegou um copo d’água. Eu o segui. “Claro que não…”, ele disse, com o rosto escondido pela porta da geladeira. “Por que acha isso?” Não havia maneira sutil de abordar o assunto. Como Leitão dizia, o negócio era jogar a merda no ventilador. “Desci na garagem ontem à noite, Hugo. A frente do Bukowski está amassada.” Ele bebeu toda a água de uma só vez, deixou o copo na pia e passou por mim sem dizer nada. Foi direto para dentro e se trancou no quarto. “Não adianta fugir! Abre essa merda!” Que Hugo não fosse o sujeito mais ético do mundo, vá lá. Mas, até onde eu sabia, ele não era um assassino calculista. Insisti com mais socos até ele ceder. Entreabriu a porta e virou para a janela do quarto, observando o movimento dos pedestres na rua Duvivier. “O que você fez?”, perguntei.

Ele me encarou com seus olhos muito vermelhos. Seu rosto, no entanto, não trazia qualquer vestígio de arrependimento. Havia até certo orgulho ali. “Resolvi nosso problema.” “Como teve coragem?” “Graças a mim, você pode ficar no seu apartamentinho. Devia me agradecer.” Não era a resposta que eu esperava. Estava preparado para escutar uma desculpa esfarrapada, uma história mirabolante, mas não aquilo: uma confissão fria e objetiva. Hugo havia cruzado um limiar sutil e não podia mais voltar. “Você atropelou o cara?”

Ele se jogou na cama, encolhendo as pernas e abraçando os joelhos. Começou a chorar convulsivamente, o rosto escondido pelos cabelos compridos. Pensei em me aproximar, colocar a mão sobre seu ombro em sinal de consolo, mas na verdade não sentia pena. Cruzei os braços,

esperando que o teatrinho acabasse. “Você matou o cara?”, insisti. “Eu… Eu tava desesperado, Dante! Tive a ideia de seguir uma ambulância pra conseguir o corpo. Era nossa única chance. Mas não é fácil, esses caras pisam fundo. Tive que fazer o mesmo… Pra ficar na cola deles.” “E aí?” “Eu tava no Largo do Machado, quando… Quando o cara entrou na minha frente. Nem vi direito, só senti a porrada. O filho da puta atravessou a rua fora da faixa! A culpa não foi minha!” “Você continua mentindo! Atropelou o cara de propósito!”

“Não foi de propósito!” Hugo levantou a cabeça. Soava falso como um personagem de novela mexicana. “Ele ainda tava vivo. Tinha um pessoal por ali, uns pedestres, e eles ajudaram a colocar o cara no banco traseiro do Bukowski pra eu levar pro hospital, mas… Mas ele morreu no caminho. Você tem que acreditar em mim. Matei o cara sem querer! Olhei nos bolsos dele, mas não tinha carteira, documento, nada, nem um tostão. Era um morador de rua. Foi aí que eu tive a ideia…”

“De fatiar o sujeito que você atropelou!”

“Ele já estava morto e…” Hugo abriu um pequeno sorriso destoante de sua expressão de transtorno. “Um morador de rua é quase como um animal!”

Eu não acreditava no que havia escutado: “Quase como um animal?”

“Você entendeu… Não vem com lição de moral”, ele disse. “Um cara preto, pobre e mendigo é perfeito. Ninguém vai procurar! Toda comida tem um preço, Dante.”

Seu rosto tinha secado e o olhar havia se transformado em outra coisa, parecendo cínico e sem vida. Não havia mais nenhum vestígio do meu amigo ali. Ele tinha passado de vez para o lado de lá.

“Você é um assassino, Hugo”, eu disse.

Aquela verdade o atingiu em cheio. Ele se levantou e me empurrou para a porta, aos berros:

“Me deixa em paz! Se quiser, vai na polícia, vai na imprensa, faz o que te der na telha. Se sou culpado, você também é! Todo mundo saiu ganhando, Dante. Todo mundo!”

Não adiantava brigar, Hugo era muito mais forte. Além disso, eu já estava atrasado. Peguei o ônibus para o trabalho tomado por uma sensação incômoda. Mais tarde, entendi o que era. Mesmo sabendo o que devia ser feito, eu não tinha coragem de denunciar Hugo. Eu havia sido beneficiado pelo ocorrido e, de certo modo, também havia tomado um caminho sem volta. Era cúmplice. Meu instinto de sobrevivência subornava meu senso de justiça. Ninguém buscaria aquele sujeito. Um cara preto, pobre, um mendigo. Ninguém sentiria falta dele. E, bem, nosso problema estava resolvido. Certa vez, num banheiro público, havia um poema: “A carne mais barata do mercado É a carne negra.” 2

Quando você pensa que seu dia não pode piorar, vai por mim: em geral, está enganado. No caminho para a livraria, meu celular tocou. Minha mãe havia me telefonado sem parar no dia anterior e, se eu continuasse sem atender, começaria a ligar para meus amigos. “Oi, mãe.” Ela soltou um suspiro impaciente e perguntou: “Por que você mentiu pra mim, Dante?” Fiquei sem reação. “Tá demorando pra responder porque tá pensando numa mentira?” “Não sei do que a senhora tá falando.”

“Falei com o corretor do apartamento. Vocês estão devendo o aluguel.”

Merda, pensei. Merda, merda, merda.

“Mãe, eu sei me cuidar sozinho.”

“Sabia que ir pro Rio de Janeiro não ia dar certo. Seu lugar é em Pingo, meu filho. Agora vocês estão aí, ferrados, e nem pra pedir minha ajuda! Tenho esse dinheiro, posso pagar!”

“Eu já tenho vinte e cinco anos, moro sozinho há seis e sei cuidar da minha vida. Vou pagar a dívida do meu jeito.”

Aquilo a ofendeu profundamente. “E como você pretende pagar?”

“Vou pegar um empréstimo no banco.”

“Que banco vai emprestar tanto dinheiro pra um vendedor de livraria?”

Ela se recusava a cortar o cordão umbilical e sempre dava um jeito de me alfinetar. Apertei o celular, descontando a raiva.

“Obrigado pela parte que me toca.”

“Tô falando sério, Dante. Você prefere mesmo pagar juros pro banco do que aceitar minha ajuda?” “Seus juros são mais caros.”

Hilda fez silêncio e escutei sua respiração agitada no bocal do telefone. Imaginei-a tamborilando as unhas feitas enquanto falava comigo. Meu maior medo era que ela decidisse vir para o Rio resolver o “problema”. Eu não teria como impedir.

“O Miguel ligou pra Mirtes de novo”, ela começou. “Dessa vez, ele não falou nada. Só ficou chorando, chorando e chorando no telefone.” “E daí?” “A Mirtes insistiu, quis saber o que tava atormentando ele, mas nada…” Minha mãe fez uma pausa e senti que viria bomba pela frente. “Tenho que te fazer uma pergunta, filho. Vocês não estão fazendo nenhuma besteira pra conseguir esse dinheiro, né?” Forcei um tom indignado: “O que você tá sugerindo? Que a gente virou traficante de drogas ou assaltante de bancos?” “Desculpa… Acho que tô exagerando.”

Eu havia virado o jogo e tinha que terminar a partida sem que minha mãe pudesse pedir uma revanche. Insisti que tudo estava sob controle. Ela disse que me amava e fiz o mesmo, acrescentando que já estava atrasado. Desligamos com uma despedida breve. Eu precisava conversar com Miguel antes que ele fizesse uma besteira maior. Tenso, devolvi o celular ao bolso e entrei na livraria. Na seção Indicação do Livreiro, Crime e castigo, de Dostoiévski.

3

O gerente da livraria chamava Demóstenes. Com seus cento e dez quilos mal estocados em um metro e sessenta de altura, ele usava uma barba ruiva volumosa e tirava intervalos para fumar seus cachimbos fedorentos do lado de fora do shopping. Alguns diziam que era formado em filosofia. As más línguas garantiam que sequer completara o fundamental. Tinha ares de Ipanema, andar do Catete e trejeitos da Lapa. Certa vez, foi visto com sacolas de compras pelo Leme. De todo modo, a existência de Demóstenes fora da livraria não tem qualquer relevância. Entre as estantes, gôndolas de lançamentos e mesinhas de café, ele existia. Era seu território, seu palco com holofotes. Nossa relação nunca foi das melhores. Demóstenes sabia que eu estava livreiro, mas não era livreiro, que não queria passar o resto da vida atendendo velhinhas em busca de livros espíritas e adolescentes histéricas pelo lançamento da YouTuber do momento.

Passei direto por ele, de cabeça baixa, fingindo não ter escutado a bronca pelo atraso de treze minutos. Eu sabia que logo, logo seria chamado em sua sala pelas duas faltas sem explicação nos dias

anteriores. Desculpa, estava buscando um cadáver para servir num jantar, eu poderia dizer, mas talvez fosse melhor convencer Miguel a me entregar um atestado médico falso. Bati o ponto e vesti o humilhante avental. Pela primeira vez, pensei em jogá-lo no chão e ir embora. Eu passava oito horas por dia naquela livraria para, no final do mês, ganhar bem menos de um décimo do que tínhamos faturado na noite anterior com um jantar de poucas horas.

Acontece que o jantar é hediondo, a voz da consciência me disse. Ainda que os problemas

imediatos estivessem solucionados, uma brecha havia sido aberta, trazendo à superfície uma insatisfação que eu contivera a muito custo. Eu me sentia injustiçado, covarde e de saco cheio. Tentei me distrair catalogando exemplares na seção jurídica. Estava de costas, montado numa escadinha, organizando livros sobre o Código de Processo Civil, quando senti uma mão envolver minha canela. No susto, me segurei para não cair. Enfurnado em um terninho muito semelhante ao que usara no jantar, Umberto Marcondes de Machado sorria para mim com jeito de quem ia dar a notícia a um ganhador da Mega-Sena. Ocorreu-me que ele devia ter um guarda-roupa só com blazers de três botões e uma coleção de gravatas-borboleta multicoloridas. A da vez era rosa-choque. “O que você está fazendo aqui?”, perguntei, contendo a surpresa.

“Preciso de um livro de culinária sobre carne de gaivota. Tem aí?”, ele disse, soltando uma risadinha logo depois e fazendo um gesto vago com as mãos. “Brincadeira, vim conversar com você.”

“Estou no trabalho.”

Passei os olhos pela livraria em busca de Demóstenes. Ele cortaria meu pescoço se me visse de papo com alguém. Para minha sorte, devia ter saído para fumar e a livraria estava praticamente vazia.

“Lancha comigo? Espero seu intervalo.”

“O que você quer? Como descobriu que eu trabalho aqui?”

“Desculpa aparecer assim, mas… Ontem, depois do jantar, fui pra casa e tentei dormir, mas não consegui. Eu precisava falar com você, querido. Preciso.” Ele passou o polegar gordo pela lateral da boca, como se limpasse o excesso de saliva, e fincou seus olhos vívidos em mim. “O jantar… Eu adorei. A-DO-REI. Que comida, meu Deus. Que experiência! Nunca vi nada igual. Os pratos estavam

deliciosos, e o apartamento é muito agradável… Vocês moram lá ou alugaram pro evento?” “Não interessa.”

“Ei, não precisa me tratar desse jeito. Só estou dizendo que gostei do espaço. Meu apartamento valia cinco milhões. Em 2012, pulou para dez. Com Copa do Mundo, Olimpíadas… O Brasil ficou na moda, mas agora tá na merda. Era nossa chance de desempacar, mas a gente afundou de vez… Típico de brasileiro. Crise, inflação, quer saber? Isso pode ser bom pros negócios. Os gringos ainda estão de olho na gente. Em período de miséria, sai ganhando quem investe certo, Dante.”

“Desculpa, mas tenho mais o que fazer”, eu disse, descendo da escada.

Segui para a seção de autoajuda. Tenso, mexi aleatoriamente na posição dos livros na estante.

Como vencer na vida em dez passos; Os caminhos da felicidade; Conheça você mesmo, Uma família feliz… Eu não podia expulsar Umberto dali e não sabia como sair daquela situação.

Ele me alcançou, se recusando a desistir, e segurou meu braço com força.

“Não me trate dessa maneira!”, disse, deixando escapar um sotaque do Norte. “Você sabe quem eu sou?”

“Sei”, respondi, com desdém. “Um aristocrata decadente que ainda acha que manda em alguma coisa e quer a volta da monarquia no Brasil.”

Leitão havia encontrado fotos de Umberto em um evento do movimento pró-monarquia, Casa Imperial do Brasil, o que era patético. Os bisavós do velho eram gente importante do meio dos transportes, mas atualmente a família Marcondes de Machado estava devendo para deus e o mundo,

cheio de execuções na Justiça. Umberto só tinha um apartamento no Chopin, que era bem de família, inalienável. Ele arregalou os olhos. “Tá tudo na internet”, eu disse. “Sou um Marcondes de Machado, exijo que me respeite!” “Você não tem nem superior completo.” “E daí? Nunca precisei de faculdade pra ser quem eu sou. Doutor no Brasil não tem doutorado, tem dinheiro. É isso que vale, o resto é resto. Você é formado em quê? Vai, me diz.” “Administração.”

“E quanto dinheiro ganhou com seu diploma? Rasga, não serve pra nada. Ninguém precisa de diploma. Olha, nós começamos mal, mas… Eu quero seu bem! Enquanto todo mundo reclama da economia do país, eu digo o contrário: tá mais fácil enriquecer no Brasil. Principalmente pra você, que é jovem e tá começando a vida. Você vai passar o resto da vida nesse lugar, tirando e botando livro da estante? É isso que você quer? Tenho certeza de que não é. A hora de ficar rico é essa, Dante. Brasileiro tá que nem chinês, tem em tudo que é lugar. Não importa o canto do mundo. Nova York, Milão, Bangladesh. Pode apostar, vai ter brasileiro lá. Paris, Taiwan, Barcelona, a mesma coisa. A Disney, então, parece que é aqui.”

“Aonde você quer chegar?”

“Não quer mesmo fazer um lanche comigo?” “Não.”

“O.k., o.k., não insisto mais”, ele disse, erguendo as mãos na defensiva. “Vou te contar uma coisa, querido: o ser humano gosta de poder. Qualquer um, rico, pobre, alto, baixo, homem, mulher… Todos gostam. Por que a gente quer dinheiro? Pelo poder. Por que a gente tira fotos de viagens e coloca na internet? Pelo poder. Sexo, sucesso profissional, amizade… Tudo é poder.” “Aham.” “Comida também é poder, claro. A gente mata boi, galinha, porco. Por quê? Porque pode. A gente é incrível, desenvolvido, racional. Melhores que os bichos, essa é a verdade.” Ele olhou ao redor e baixou a voz como se estivesse prestes a me revelar o segredo da vida. “Ontem, depois daquele jantar, eu percebi: comer carne humana está acima disso tudo, Dante. É o poder dos poderes. Pensa comigo… A gente vive num mundo tão polarizado: brancos contra negros, evangélicos contra gays, direita contra esquerda… As redes sociais são um campo de guerra! Pra pessoas como eu não faz mais sentido ficar comendo boi, tartaruga e jacaré. A experiência eleva a exigência. Somos o topo do topo da cadeia alimentar, o leão da selva! E queremos nos sentir desse jeito! Superiores, sempre!”

“Você é só um velho megalomaníaco.”

“É verdade! Sou isso também.” Ele não se ofendeu, pareceu até achar divertido. “Mas o que eu quero dizer é que passei a noite com essa ideia na cabeça e tô vendo um bom negócio. Vale investir. Enxergo o mundo em cifras, querido. E aquele jantar… Que jantar! É o futuro. Ninguém pensou nisso antes, não dessa maneira. Comer carne humana. Saborosa, provocativa, surpreendente. Um

must.”

“Você é louco.”

“Pode me chamar do que quiser, mas escuta o que tô dizendo. Claro que vai ter gente contra, achando absurdo. No início, toda novidade é vista com maus olhos. Célula-tronco, robô, clonagem. É a luta dos conservadores contra o progresso. Mas a gente precisa ser bravo, investir no que acredita, Dante. Comer carne humana é o século XXII.”

“Essa conversa não tem o menor sentido”, eu disse, tirando o avental da livraria e prometendo a mim mesmo que não daria mais corda para ele. “É hora do meu intervalo. Com licença.”

Umberto colocou as mãos sobre meus ombros, impedindo-me de sair. Aproximou seu rosto e senti o hálito de cigarro quando voltou a falar depressa:

“O Brasil já exporta muita coisa, Dante. Carnaval, futebol, caipirinha e mulata. Mulher gostosa, puta. Está na hora de exportar gastronomia. Tem gente de sobra no mundo. A China está toda fodida com a superpopulação. A África, a Índia… Já viu quanto mendigo tem por aí? E as favelas? Parecem formigueiros! Ainda tem essa cambada que vagabundeia e vive de subsídio do governo. Bolsa Família, cotas, nem sei mais o quê. Pega essa gente toda e fatia. Faz bife. Carpaccio. Pobre à milanesa. Vai revolucionar a cozinha no mundo. E vai dar uma esvaziada boa, uma limpada.”

Umberto fez uma pausa para cumprimentar com um gesto de cabeça duas senhorinhas que entraram na livraria e pareceram reconhecê-lo. Então voltou a fincar os olhos famintos em mim:

“Quero entrar nessa com você e seus amigos, Dante. Quero ser sócio da Equipe Carne de Gaivota, adorei isso. O nome é ótimo. Vai ser nossa startup extraoficial. Vou injetar grana, cem mil pra começar. Sei que vou ganhar muito mais. Não tô te propondo porque sou bonzinho. Tenho interesse, você e seus amigos também. Gosto de dinheiro rolando solto e tenho tino para investimentos lucrativos.”

“Engraçado, pelas minhas pesquisas você é um falido.”

“Produzo filmes que ninguém vê, eu sei, mas é só fachada. Pra lavar a grana, sabe como é, ganhar uns incentivos fiscais. Cinema não dá dinheiro. No Brasil, cultura é coisa pra gente doida ou pra gente esperta. Eu não sou doido. Não tô nem aí pro cinema brasileiro, que se foda. Quero é fazer dinheiro de verdade com vocês.”

“Não converso com lunáticos fascistas”, eu disse, devagar. Não podia perder a linha no meu ambiente de trabalho. “Some daqui ou chamo o segurança.”

Ele manteve as mãos sobre meus ombros mais alguns segundos, então se afastou como se eu fosse repulsivo. Sacudiu a cabeça devagar, ajeitando a gravatinha-borboleta abaixo do pomo de adão.

“Que pena, Dante. Ontem, no jantar, você foi inteligente, administrou bem a situação. Achei que fosse um rapaz corajoso, mas parece que me enganei. Você está jogando seu futuro no lixo. Talvez deva pensar melhor.”

Não vou pensar em merda nenhuma!, prometi a mim mesmo quando ele já saía da livraria. Deus

sabe como eu gostaria que fosse verdade.

As palavras de Umberto grudaram em mim de uma maneira que não podia evitar. Às vezes, tudo me parecia absurdo e eu tentava expulsar o pensamento, mas, na maior parte do tempo, eu me percebia encarando aquela ladainha como uma hipótese real e me desesperava. Hoje, vejo que não adiantou nada pensar tanto. No fim das contas, fiz a pior escolha possível.

4

Liguei seis vezes para o celular de Miguel, mas ele não atendeu. Por isso, a primeira coisa que fiz ao chegar em casa à noite foi correr para o quarto dele. Não havia qualquer sinal de que Miguel tivesse passado lá desde o dia anterior. Isso me deixou preocupado. Ele poderia contar o que tínhamos feito para dona Mirtes ou, pior, para Rachel, que nunca gostara de nós porque éramos “má influência”. O pior é que ela estava certa.

Na manhã de domingo, voltei a ligar para Miguel uma dúzia de vezes, sem resposta. Esgotado,

No documento Jantar Secreto - Raphael Montes (páginas 89-98)

Documentos relacionados