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3. A CONCEPÇÃO SOCIAL DE CASAMENTO COMO CONTRATO SEXUAL

4.2. O CRIME DE ESTUPRO NO BRASIL

O crime de estupro está definido no Art. 2138 do Código Penal, está contido no Título

VI “Dos crimes contra a dignidade sexual”, conforme mencionado no capítulo anterior, a nomenclatura antes era “ Dos crimes contra os costumes”, tal modificação aconteceu por meio da Lei 12.105 de 2009. É importante destrincharmos as consequências que a alteração na nomenclatura trouxe.

Ao determinar a liberdade sexual enquanto algo que está à disposição das mulheres e homens, cabendo tão somente a elas (es) regular e consentir suas relações sexuais, a legislação busca proteger a dignidade da pessoa humana, na forma da liberdade sexual (GRECO, 2017). Desta forma, isso significa para as mulheres uma garantia de direitos, pois diante da falta do consentimento para atividade sexual, está configurado o crime de estupro. A vontade masculina foi considerada por muito tempo enquanto a única necessária para realização do sexo (DIAS,2015).

Entretanto, ainda que se verifique grande evolução na proteção da dignidade e da liberdade dos indivíduos no domínio da própria sexualidade, ainda persiste, em pleno século XXI, a cultura primitiva do machismo, propulsora do estupro e de outras formas de violência, como a exploração sexual, praticadas, sobretudo, contra mulheres. (SOUTO, 2016)

8 Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou

permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

39 O crime de estupro inaugura o título dos crimes contra liberdade sexual, sua redação deve ser analisada para compreendermos quais condutas, sujeitos e características estão presentes nesse crime. Desse modo, atualmente, o sujeito ativo do crime pode ser homem ou mulher, antes da Lei 11.105/09, entendia-se que apenas o homem poderia ser sujeito ativo (GENTIL; MARCÃO, 2015). O núcleo do tipo é “constranger” no sentido de coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo, retirar a autodeterminação da pessoa, sua liberdade, com a finalidade especifica de conjunção carnal ou ato libidinoso (MASSON, 2014). Para o mesmo autor, entende-se por conjunção carnal a introdução total ou parcial do pênis na cavidade vaginal. Enquanto ato libidinoso conforme Luiz Regis Prado é:

Fellatio ou irrumatio in ore, o cunnilingus, o pennilingus, o annilingus (espécies de sexo oral ou bucal); o coito anal, o coito inter femora; a masturbação; os toques ou apalpadelas com significação sexual no corpo ou diretamente na região pudica (genitália, seios ou membros inferiores etc.) da vítima; a contemplação lasciva; os contatos voluptuosos, uso de objetos ou instrumentos corporais (dedo,mão), mecânicos ou artificiais, por via vaginal, anal ou bucal, entre outros. (PRADO, 2011, p. 651)

O meio utilizado para a execução do crime é a violência ou grave ameaça. Entende-se por violência, o emprego de força física sobre a vítima, que pode ocorrer de forma direta quando dirigida a esta, ou de forma indireta quando destinada a coisa ou pessoa ligada à vítima, por meio de vínculo de afetividade ou parentesco (MASSON, 2014), a exemplo de machucar os filhos da vítima. A grave ameaça diz respeito a uma violência moral, é uma promessa de realizar no futuro algum mal grave contra a vítima ou pessoa próxima a esta.

Para Guilherme Nucci (2017), o crime de estupro é hediondo conforme disciplina a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), isso significa que o cumprimento da pena deve acontecer inicialmente em regime fechado, impossibilidade de liberdade provisória com fiança, impossibilidade de concessão de indulto, anistia, entre outros. Conforme dispõe o Art. 2259, os

crimes contra a liberdade sexual são de ação pública condicionada à representação, ou seja, existe pedido e autorização da vítima na consecução penal, ela autoriza o Ministério Público a agir em seu nome.

Importante ressaltar que durante o curso do processo penal, várias provas podem ser consideradas para configuração do crime de estupro, como a oitiva das testemunhas ou a prova pericial que ateste a situação de violência sexual sofrida pela vítima. Contudo, o crime de

9 Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública

40 estupro geralmente não ocorre na presença de testemunhas, tornando a primeira opção de prova de difícil configuração (CAPEZ, 2007).

Os processos de crimes sexuais, sabidamente praticados de forma clandestina- pois a violação da dignidade da mulher geralmente ocorre em locais fechados, sem possibilidade de presença de testemunhas, têm na palavra da vítima a viga mestra. Por certo ela não está isenta dos requisitos de verossimilidade, coerência e plausibilidade. Mas, nestes delitos, a declaração coerente da vítima deve ter valor decisivo. (BOUJIKIA, apud INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2015)

Quanto a prova pericial também chamada de exame de corpo de delito, no que tange ao crime de estupro, busca-se sinais de violência física que atestem a resistência, bem como esperma como comprovação de conjunção carnal. Todavia, nem todo crime de estupro possui marca de resistência, pode-se utilizar uma arma de fogo, por exemplo, como forma de obter o ato sexual, bem como a ejaculação não é obrigatória, inexistindo sêmen (MASSON, 2014).

Não dá para encontrar danos físicos na maioria dos casos, os estupros são praticados sob grave ameaça. Nesses casos, marcas de violência física simplesmente não existem. De 10 mil mulheres adolescentes atendidas pelo serviço do Pérola Byington, apenas 11% apresentavam traumas físicos. Em 90% dos casos, elas não tinham nenhuma marca no corpo e, em 95%, nem sequer marcas nos genitais. (DREZETT, apud INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2015)

Conforme o Decreto nº 7.958 de 2013 da Presidência da República, que disciplina sobre diretrizes de atendimento as vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e do SUS (Sistema Único de Saúde), existe uma sequência de procedimentos que devem ser feitos, dentre eles está a coleta de vestígios, exame ginecológico (se necessário), história clinica detalhada, descrição minuciosa das lesões, entre outros. Também deve ser informada a vítima de violência sexual sobre a rede de atendimento que é disponibilizada em seu apoio, bem como informação de suas garantias e direitos.

O decreto nº 7.958 de 2013 representa um suporte legal importante a vítima de violência sexual, entretanto, em semelhança a Lei Maria da Penha possui desafios em sua implementação, à medida que constitui enorme dificuldade realizar o atendimento humanizado conforme estabelece a referida lei, seja este através dos profissionais de segurança pública ou do próprio sistema de saúde que não estão preparados para atender as peculiaridades previstas na legislação.

Foi criada, em primeiro lugar, uma concepção falsa de que a mulher mente. Então, ela fala e tem que haver uma prova enorme para que sua palavra seja confirmada – e isso coloca a vítima em uma situação muito difícil, porque, além de estuprada, ela pode ser vista como mentirosa. Isso precisa ser mudado. (TORRES, apud INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2015)

41 Crimes contra dignidade sexual das mulheres ocorrem diariamente, em especial o crime de estupro. Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015) , em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país. O dado representa um estupro a cada 11 minutos. Dentro deste panorama é necessário lembrar que parte significativa das vítimas não realiza a denúncia por constrangimento, humilhação, medo da reação de seus conhecidos e autoridades (DREZETT, 1998 apud CARVALHO; FERREIRA; SANTOS, 2010). Deste modo, grande parte dos crimes de estupro não estão contabilizados nesses dados. O cometimento do crime de estupro geralmente é vinculado a desconhecidos, contudo, de acordo com o Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (SINAN), sabe-se que cerca de 70% das vítimas conhecem o estuprador, sendo este, parente, conhecido, namorado ou amigo da vítima.

O escândalo não está no crescimento em milhares de vítimas, mas na persistência do abuso. Uma mulher vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, como pensavam os legisladores do início do século 20 ao despenalizar o aborto por estupro, mas alguém temporariamente alienada da existência. Honra, dignidade, autonomia são ignoradas pelo estuprador, é verdade. Mas o estupro vai além: é um ato violento de demarcação do patriarcado nas entranhas das mulheres. É real e simbólico. Age em cada mulher vitimada, mas em todas as mulheres submetidas ao regime de dominação. (DINIZ, apud INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2015)

A concepção patriarcal e machista permeia a mentalidade dos brasileiros, à medida que a chamada “cultura do estupro” está enraizada socialmente e cotidianamente é reproduzida. Não é um fenômeno antigo, pelo contrário, persiste ao longo da história (SOUSA,2017). Conforme (CHAUI, 1986 apud SOUSA, 2017) em sentido amplo, a cultura é “um campo simbólico e material das atividades humanas”.

A cultura do estupro significa a banalização deste crime, o comportamento sexual violento dos homens é tido como normal e socialmente aceito, enquanto a culpa é atribuída a mulher (SOUSA, 2017). Dizeres como: “mas ela estava de saia curta”, “mas ela estava pedindo”, são utilizados pelos homens enquanto justificativa para prática da violência contra mulher. Conforme demonstra o SIPS (Sistema de Indicadores de Percepção Social, (BRASIL, 2014):

42 Gráfico 1 – Mulheres que usam roupas que mostrem o corpo merecem ser estupradas?

58,75% 11,67%

3,42% 12,88%

13,28%

Discorda Totalmente Discorda Parcialmente Neutro Concorda Parcialmente Concorda Totalmente

Fonte: Ipea/SIPS Tolerância social à violência contra as mulheres

De igual modo, na mesma pesquisa, a maioria (35,3%) concordou com os dizeres de que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”, o que mais uma vez revela como os papéis de gênero, permeados socialmente são utilizados como justificativa de violência, espera-se que uma mulher seja recatada, comportamentos diferentes daqueles atribuídos a feminilidade na concepção machista são tidos como aval a violência pelos homens. Os estupradores por vezes são associados a figura de homens doentes, portadores de alguma patologia, o que não é verdade, são sujeitos que agem através de uma prática racionalizada e legitimada socialmente. Deste modo, é necessário atribuir ao estuprador sua devida responsabilização, não utilizando justificativas biológicas como forma de atenuar a prática de violência contra mulher (SOUSA, 2017). Neste sentido, é preciso enxergar as inúmeras dificuldades presentes na conjuntura do crime de estupro, como a excessiva culpabilização a mulher, bem como a dificuldade de convencimento pelo juiz através da prova do crime, além dos aspectos que impossibilitam a denúncia pela mulher, como sentimento de vergonha, medo, entre outros.

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