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Criminalidade Fronteiriça

No documento Exílios Meridionais: (páginas 129-135)

PARTE II Trajetórias Fronteiriças: Degredados em uma Sociedade

Capítulo 4 O Degredo Que Pune: Criminalidade e Expulsão Penal

4.3 Criminalidade Fronteiriça

Rio Pardo, década de 1750. Joana Maciel, a personagem que nos guiou até aqui, é finalmente expulsa para cumprir seu degredo no presídio de Rio Pardo. Sendo moradora de uma região fronteiriça, onde o recebimento de degredados era corriqueiro, é, nessa própria fronteira, também condenada ao degredo. Isto demonstra que tal sistema de exílio penal não era simplesmente uma prática em que se distinguiam nitidamente regiões centrais, onde os criminosos recebiam a condenação ao degredo e de onde eram expulsos, em oposição a regiões longínquas e periféricas, a que os degredados eram condenados. Como visto ao final de cada um dos três primeiros capítulos deste trabalho, o degredo também se dava no sentindo inverso, quando as regiões que normalmente estavam acostumadas a receber condenados passam também a condenar e a expulsar seus moradores considerados indesejáveis. Assim, para compreender as particularidades deste tipo de expulsão penal que se dava na própria fronteira meridional, é preciso observar as especificidades dos crimes praticados nessas zonas longínquas e apartadas dos grandes centros. Tais especificidades tinham raízes na própria condição geográfica isolada daquela fronteira, na ocupação tardia do território pelos luso-brasileiros e na sua condição incerta e em constante disputa entre as Coroas

305 APESC, Ofícios do Vice Rei ao Governador da Capitania de Santa Catarina, 1782 a 1789, doc.38,

Ibéricas. Em 1693, uma carta régia expressava a preocupação com os problemas trazidos por povoações longínquas e “do miserável estado em que se acham as praças e fortalezas do Brasil, incapazes de se poderem conservar se houver inimigos que intentem cometê-las, por se acharem falhas”, pedindo esforços para a

“conservação das conquistas, e porque em muitas partes dessa capitania se acham espalhados muitos moradores em sítios tais que não só não recebe [...] será utilidade alguma das suas pessoas mas [corroído] ordinariamente há grande queixas da soltura e liberdade com que viviem de que procedem inumeráveis delitos e que ainda na obrigação de cristãos com pouco conhecimento e temor de Deus, e morando em tal distância das igrejas”. 306

Embora estivesse endereçada a Antônio Paes de Sande, governador do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, muito da situação ali narrada poderia servir para descrever aquela fronteira sulina que se formava e era incorporada ao império português, lutando para se estabelecer. É em cenário semelhante que Boxer informa que “um novo tipo de homem estava surgindo - gaúcho”, a partir de: 307

“um sortimento de desertores portugueses vindos da guarnição de Sacramento, contrabandistas espanhóis, vindos de Corrientes e Santa Fé, e alguns fugitivos procedentes do Brasil meridional. Esses homens uniram-se a mulheres minuanas e outras ameríndias, e levaram, virtualmente, vidas ilegais, fazendo girar por ali cavalos e rebanhos de gado selvagem. Eles e seus descendentes depressa tornaram-se exímios cavaleiros, e adestrados no uso do laço, bola e lança. Viviam principalmente de carne fresca, fumo e mate, estas duas últimas mercadorias sendo compradas nas colônias espanholas e portuguesas em troca de cavalos e gado. ”

Conforme o autor observa, neste cenário entre dois impérios um dos crimes que se fazia bastante presente era o contrabando. Sobre como esta prática se desenvolveu na Colônia do Sacramento, Fabrício Prado escreveu que “o contrabando, na região platina, era estrutural”, local onde “autoridades e comerciantes se confundiam com contraventores” e que assumia um papel de “porta de entrada da prata na economia colonial, bem como de couros”308. Já sobre o contrabando no continente do Rio Grande,

Tiago Gil observou que, apesar da ilegalidade, o comércio ilícito acabava sendo

306 ANRJ, Códice 952, Volume 6, fl. 283

307 BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil : dores de crescimento de uma sociedade colonial.

São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1963. p. 257-258

tolerado pelas autoridades pois sendo “praticado por alguns dos sujeitos mais relevantes, não no no governo local, como também na defesa dos territórios” continuavam a ser realizados diante da incapacidade da Coroa em prover militarmente seus domínios e mesmo de reprimir os tratos ilícitos”, já que aquele era um território instável, sujeito à ocupação dos espanhóis.”309 A ilha de Santa Catarina, por sua vez,

também não esteve isenta do comércio ilícito, e sobre as ilegalidades lá cometidas, Augusto Silva afirmou que “nas fronteiras do império, com frágeis – ou mesmo inexistentes – instituições civis, militares e eclesiásticas e em contato frequente com estrangeiros, esses homens-limite vão estabelecer suas próprias relações sociais e econômicas”310. Sobre isso, o navegador inglês George Shelvocke assim descreveu os

moradores daquela ilha que visitara em 1719: “são uma malta de bandidos, que aqui chegam como refugiados das outras colônias mas estritamente governadas do Brasil”311.

Um documento de 1779 exemplifica algumas das atividades ilícitas com as quais os moradores daquela fronteira poderiam estar envolvidos. Trata-se de uma “relação de presos e das culpas que se remetem do Rio Grande para as cadeias da cidade do Rio de Janeiro”, enviados pelo governador do Continente, José Marcelino de Figueiredo. Nela, são listados 14 homens e suas respectivas culpas. Manuel Pinto, Gabriel Rodrigues e José Marcelino tiveram como culpas “desertar e ir com outros ladrões fazer arreadas e distúrbios nas estradas de Montevidéu”. Já o soldado de infantaria José Pinto foi “por ladrão”. Inácio da Fonseca, por sua vez, acabou preso por “não querer prender o celebrado ladrão Perdiz”, enquanto Francisco Pereira, índio, foi “por acompanhar o dito Perdiz e outros ladrões a fazer arreadas nas estradas de Montevidéu”. Já Antônio Soares acabou remetido “por atirar um tiro e resistir aos dragões que iam prender seu irmão, o sargento desertor da cavalaria ligeira, Bernardo Soares”. José Soares, por sua vez, também ajudou um condenado, após “avisar um criminoso depois de ser comunicado de ordem do Governador para auxiliar [na sua] prisão”. Inácio de Almeida, homem pardo, foi enviado ao Rio “por se dizer ter feito uma morte e ser vadio e arriante”. Na mesma lista há uma subdivisão, composta por aqueles que seriam “remetidos para o juiz ordinário por suas culpas”. Eram eles: Vicente Ferreira, que havia sido pronunciado em uma devassa de furto; Tomás Alves da Silva e José Alves da Silva, seu irmão,

309 GIL, Tiago Luis. Infiéis Transgressores. UFRJ, Dissertação de Mestrado, 2002. p.12 310 SILVA, Augusto. Op. cit., p. 51

311 HARO, Martim Afonso Palma de (org.). Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Florianópolis: Editora da UFSC/ Editora Lunardelli, 1990. p. 47

pronunciados em devassa de morte; Benedito, cabra de nação, pronunciado em devassa de morte da escrava Rita; e por fim, Estanislau Dias Barroso, pardo, que tinha uma sentença de crime contra si. Com essa extensa lista de crimes, não surpreende a carta enviada pelo Vice-Rei do Rio da Prata para o mesmo José Marcelino de Figueiredo, pedindo providências para “exterminar los ladrones que a la verdade infestan estos

Campos”312.

Por meio desses casos de criminosos que foram enviados de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, é possível ter uma pequena amostra dos delitos contra os quais as autoridades lutavam, bem como os diferentes perfis de criminosos que lá atuavam. 313 Destes, cinco eram militares, o que não é surpreendente em se tratando de uma fronteira repleta de militares como eram aquelas terras meridionais. Assim, se os descaminhos e contrabandos eram recorrentes, outro tipo de crime característico daquela fronteira eram os praticados por soldados e demais ocupantes de postos miliares. Tais delitos nem sempre eram fáceis de ser coibidos, como nos mostra um documento em que o governador do Rio de Janeiro reclama de desertor, dando uma amostra de que muitas vezes os problemas enfrentados no tratamento dos criminosos vinha de eles contarem com a conivência de terceiros para escapar das punições. O fato se deu com um soldado “chamado o Pomba”, que fora mandado para a Colônia do Sacramento, mas um ano depois foi localizado nos Campos de Goitacazes. Sobre o fato, ocorrido por 1730, o dito governador esbravejou, em carta para o comandante de Sacramento: “e ainda me querem tapar os olhos, dizendo que fora entregue nessa praça e de que dela fugira para a Bahia e dali viera para os Campos, tenho por mais certo que Antônio Quintão, que o levava, o deixou logo nesta cidade por certos respeitos, sobre que espero aviso de Vossa Senhoria porque semelhante desaforo merecesse igual demonstração”.314

Em outras ocasiões, a situação de guerra vivida naquela fronteira poderia fazer com que facilmente militares que falhassem em alguma missão ou autoridades que não conseguissem repelir ataques inimigos tivessem que prestar esclarecimentos ou mesmo fossem transformados em réus, ainda que em muitas ocasiões acabassem não sendo condenados. José da Silva Paes, por exemplo, teve que responder às autoridades por ter

312 ANRJ, c. 104. v.1, f.34: Buenos Aires, 28 de setembro de 1779. Cópia de Carta enviada pelo Vice Rei

do Rio da Prata ao Governador do Rio Grande José Marcelino de Figueiredo

313 ANRJ, c. 104. vol.1, f.37-37v.

se retirado da Colônia do Sacramento sem ordem315. O mesmo se deu com militares que

abandonaram uma fracassada expedição a Montevidéu, inicialmente presos, sendo depois soltos316. São casos que em uma situação conflituosa como a daqueles territórios,

em que qualquer derrota poderia ser fatal para a continuidade do domínio lusitano, nem mesmo as autoridades estavam isentas de ameaças de punições.

Outras situações que preocupavam igualmente as autoridades não diziam respeito a delitos propriamente ditos, mas a circunstâncias de abandono que atingiam os moradores que poderiam, se persistissem, se transformar em problemas criminais. Em 1790, o Vice-Rei Conde de Resende escrevia à Câmara da vila do desterro para tratar do perigo representado pela ociosidade de seus moradores: 317

“constando-me que a maior parte dos moradores dessa vila se acham vivendo na maior penúria e miséria que se pode considerar, por se não terem empregado na cultura das terras, e plantação de mantimentos, com aquele cuidado e diligência com que nele se deviam aplicar, tanto pela falta de consideração de ser este o único meio de que se devem [valer] para remediaram as suas necessidades, as das suas famílias, como por não haver até o presente quem lhes estranhasse a ociosidade em que vivem, que é causa de lastimável consternação a que se acham reduzidos. (...) Sendo da sua obrigação cuidarem no bem comum, e utilidade desses povos, os não perca de vista para os apartar do ócio em que vivem, obrigando-os ao mesmo tempo a que se empreguem logo na plantação dos mantimentos, para a sua melhor subsistência”.

No Continente do Rio Grande, a situação de pobreza também era uma preocupação que percorreu todo o século, uma vez que, já em 1799, seu governador escrevia ao Vice-Rei que “àquela Vila de São Pedro tem chegado muitos casais da Praça da Colônia, e ultimamente chegam mais quarenta famílias todos pobres, e arrastados, pedem farinha e carne para comer e eu não tenho nem para a Tropa”318.

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315 ANRJ, c84, v7, fl336/361 e v9 fl.16v 316 ANRJ, cod 84, vol 2, fl15

317 APESC, Cartas do Vice Rei para a Câmara Municipal do Desterro (1760-1801), fl. 59. 318 ANRJ, cod. 104. v.1, f.35. Porto Alegre, 15 de outubro de 1779. Carta ao Vice Rei do Brasil.

Os criminosos envolvidos no degredo da fronteira meridional podiam, então, ser condenados tanto por degredo externo, expulsos do reino, por degredo interno, expulsos das outras capitanias da América portuguesa, ou ainda expulsos da própria fronteira meridional. Embora pertencentes a um mesmo império português, cada um desses lugares fazia refletir suas especificidades também na hora de julgar comportamentos considerados desviantes, o que se reflete na expressiva diferença de delitos pelos quais foram julgados esses três tipos de degredados. Em meio a diferenças e particularismos, no entanto, podemos perceber como traço comum a grande severidade com que a jurisprudência do Antigo Regime julgava todos aqueles que pudessem ser considerados indesejáveis naquela sociedade, e, portanto, merecedores de serem afastados de suas moradas para serem enviados às fronteiras do Império.

No documento Exílios Meridionais: (páginas 129-135)

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