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Crise da Modernidade: Línguas e Racionalidades

Nietzsche, ao atacar a identificação formal entre as idéias de psíquico e consciente, colocou em xeque os fundamentos teóricos sob os quais tanto a Psicologia Geral quanto a Psicologia Racional assentavam-se até então. Denuncia que os preconceitos metafísicos e morais constituíam-se em amarras, das quais a Psicologia precisava se libertar para que viesse efetivamente cumprir o seu papel, conforme atesta o aforismo 23 (NIETZSCHE, 2002, p.52) “até hoje toda a Psicologia se deteve com preconceitos e receios morais”, ele desestabiliza a base dualista de concepção de mundo.

Considerando que linguagem e consciência (diferente de Razão) estavam associadas às necessidades de comunicação e de representação, a linguagem ao contrário do que vigia então, não nos remeteu ao eu, mas à consciência do social. Para o filósofo, o mundo seria maior que a linguagem e “nossas verdadeiras vivências não são loquazes. Não poderiam comunicar a si próprias, ainda que quisessem” (NIETZSCHE, 2006, p. 78).

Crítico ao primado do eu, Nietzsche desconstrói a ideia referente à faculdade de julgar/conceber, como predicado essencial do ser que eu sou, abrindo outras possibilidades. E, nesse sentido, a Psicologia não-metafísica tinha uma importante contribuição a fazer ao possibilitar que “um universo de conhecimentos mais profundos viesse a preencher no horizonte da cultura, o vazio provocado pela morte de Deus” (GIACÓIA JR, 2004, p. 30). O ataque ao fundo moralista da Psicologia foi referendado, anos mais tarde, pelos trabalhos de Freud.

A partir de então, e por muito tempo, acreditou-se ser possível alcançar um conhecimento objetivo, universal, totalizante e essencial a respeito do homem e da natureza. A crença no homem como ser consciente, lógico e racional permitiu a construção de uma ideia, segundo a qual a mente humana é capaz de representar, em espelho, a realidade. O espelho reflete, pois, a imagem que é percebida; que é igual, mas é oposta; que faz parte, mas é separada. Foucault sugere que a generosidade do espelho, que reflete a realidade, talvez seja simulada. Ela encobre muito mais do que mostra!

No primeiro capítulo de “As palavras e as Coisas”, Foucault (1992) mostra como o quadro de Velásquez – “Las Meninas” - pode ser percebido por várias personagens, diferentemente, a partir de distintos ângulos, jogos de luz e de sombra, enfim, sob diferentes perspectivas. O que destaca é pluralidade de sentidos possíveis, a radical diferença entre ver e a construção do olhar que se organiza a partir do conceito de imitação de realidade. Segundo Foucault (1992, p.31), “talvez haja nesse quadro de Velásquez, a representação da representação clássica e a definição de espaço que ela abre”, ao buscar representar a si própria como toda a sua inteireza reproduz. Ao buscar na Física, mais especificamente sob a ótica do olhar, a metáfora mais perfeita, o quadro captura o espectador escancarando a alienação do sujeito que se duplica, através do espelho, que permite ver.

Que bela armadilha!

Por muito tempo, a epistemologia da representação que concebe a imagem como reflexo da realidade ((re)apresentar / trazer outra vez à presença) regeu o mundo. De um lado do espelho, a realidade; de outro, o reflexo, a semelhança, a forma como a mesma realidade é trazida para nós. Essa é uma concepção que tem por trás a ideologia de que não existe diferença ontológica entre as palavras e as coisas.

Se a vontade de Deus guiou o mundo e os homens até a entrada na Modernidade, a ciência, a razão, assujeitaram-no sob outra perspectiva. Assim, um novo amo toma o lugar da Providência Divina, a qual, ainda, o homem não consegue de todo abdicar. Birman (2006a), analisando essa passagem, refere que o homem nesse período, abdicou do submetimento involuntário, pela servidão voluntária3, o

que significa que foi a escolha dos homens que a constituiu e a reproduziu.

3 A Expressão “Servidão Voluntária” tem origem em Etienne de La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária, de 1552.

Tomando como eixo de análise as transformações sociais compreendidas entre os séculos XVIII até primórdios do século XX, associadas ao conceito foucaultiano de tecnologias disciplinares4, traduzida no paradigma da normalização, dizemos que a sociedade democrática da segunda modernidade, apropriando-se dos corpos, investiu fortemente na sua produção, de sorte, a aumentar, cada vez mais, sua força útil na exata medida em que reduzia a sua força política. Nesse cenário, funda-se uma discursividade, na qual o saber institui novas possibilidades de poder.

Conforme Birman (2006a, p.24),

Portanto, as ciências humanas legitimam as ditas práticas de poder. O saber, como discursividade e como jogos de fala, pela mediação da vontade dos homens, articula-se com as estratégias de poder, de forma a se tecer as novas modalidades de servidão.

O crepúsculo do século XIX trouxe outra importante personagem à cena intelectual: Sigmund Freud. Pelo recurso da linguagem (outra vez, a loucura da linguagem), ousaria chamá-lo de Filho sem Pai posto que, sem filiação, rompe com as idéias que dominavam os saberes neuropsicológicos vigentes, transformando-se no que Sanchéz (2002, p.37) denominou o “grande arqueólogo do psiquismo”.

Crítico à Psicologia Clássica que se alinhava à metafísica e, assim, solidário a Nietzsche nesse aspecto (em que pese o fato de, em várias ocasiões, Freud ter negado haver estudado em profundidade os trabalhos nietzschianos), é possível perceber que uma importante aproximação acontece quanto ao necessário reconhecimento de que a subjetividade não se restringe à consciência. Dito de outra forma, a radicalidade do trabalho freudiano não se restringe apenas ao reconhecimento do inconsciente, mas fundamentalmente se desdobra na irredutibilidade do inconsciente ao ser da consciência, retirando desse último, qualquer poder sobre o primeiro. Na esteira dessa constatação, temos, portanto, o reconhecimento de desejos e de intencionalidades que transbordam para muito além do que a consciência pode regular.

4Foucault introduz a noção de tecnologia disciplinar caracterizando-a como desdobramento de um vasto sistema de controle exercido sobre os indivíduos e que se orienta para pensar o dano causado pelo delito. A figura do delito aparece, nessa concepção, como grave transgressão ao pacto social pelo qual o indivíduo transfere seu poder pessoal à comunidade, para que seja essa quem deve exercer, a partir de então, o papel de salvaguardar os seus interesses.

A assunção desse reconhecimento desemboca na construção da ideia de inconsciente que se manifesta, por exemplo, nos sonhos. Se pensamos na afirmação de Freud (1976, volume IV, p. 32) de que “a interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente”, veremos que ele conferiu ao sonhar, uma dimensão extraordinária para o conhecimento do sujeito e do seu desejo.

Freud (1976, volume V, p.628) ao discutir a finalidade do aparelho psíquico, que permite manter-se em estado de homeostase, evitando assim, ao máximo a sensação de desprazer, escreveu: “encontramos nos pensamentos oníricos provas de uma função intelectual altamente complexa, que opera com quase todos os recursos do aparelho anímico”. No mesmo texto, conclui:

Portanto, somos levados a concluir que dois tipos fundamentalmente diferentes de processos psíquicos participam da formação dos sonhos. Um deles produz pensamentos oníricos perfeitamente racionais, com a mesma validade que o pensamento normal; já o outro trata esses pensamentos de um modo que é excepcionalmente desconcertante e irracional (FREUD, 1976, volume V, p. 635).

Birman (1995, p. 212) refere que o enunciado freudiano de inconsciente foi inventado na exterioridade do conceito filosófico, isto é, rompendo com a tradição metafísica vigente, a ponto de gerar o que o autor chamou de escândalo ontológico “pela graça e pela audácia de um saber até então inexistente”. Vejamos o porquê. A ousadia de desafiar a certeza de que o sujeito fundava-se no ser da consciência permitiu que se perfilasse a ideia de que precisávamos reconhecer a existência e conviver com uma instância psíquica que resistisse ao ser domesticada e colonizada pela razão. O deslocamento da soberania da consciência pelo reconhecimento do inconsciente mostrou então, que o centro do eu não está na razão. Tal construção teve desdobramentos importantes.

Um desses desdobramentos foi que o inconsciente, desde o início, precisou ser concebido como o Outro da consciência no registro do sujeito e, ainda, o reconhecimento de que tal formulação, escapando aos cânones vigentes na filosofia, foi construída à margem dessa, nas suas bordas, em sua exterioridade. Isso demarcou, desde os primórdios, a importância da Psicanálise, como o lugar da crítica à filosofia do sujeito, criando as condições de possibilidade para que a figura do Outro, do estrangeiro, passasse a ser pensada como o fundamento do sujeito. A

célebre frase “o ego não é o senhor de sua própria casa” reafirma a herança paradoxal de Freud (1976, volume XVII, p.178) em todo o seu alcance: tencionar o discurso da Modernidade que se fundou na supremacia do sujeito da razão.

O legado freudiano permitiu que o eu se dissociasse da razão, criando as condições de possibilidade para reconhecer que nossas certezas não são assim tão certas. Além disso, que nossas percepções podem ser alteradas pelo nosso desejo e pelo recalque que, caso não houvesse, abriria as comportas para o desejo roubar a cena.

Mais tarde, Lacan (1998, p. 521) inverteu a famosa frase do cogito, escrevendo “eu sou onde não penso e penso onde não sou”. Assim, mais uma vez a Psicanálise subverteu a ordem da razão cartesiana.

Apesar dos fragmentos do que veio a se constituir a grande reflexão sobre as relações entre as exigências culturais (fenômeno essencialmente simbólico) e a vida pulsional estarem presentes ainda no século XIX, conforme atestam os extratos de documentos dirigidos a Fliess, mais especificamente o Rascunho N (1899, p.348), onde encontramos “o incesto é antissocial — a civilização consiste nessa renúncia progressiva”, foi no texto de 1908, “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”, que Freud examinou, de forma sistemática, os malefícios decorrentes das restrições à sexualidade impostas pelas normas morais, uma vez que o modelo civilizatório característico da Modernidade fez oposição ao campo das pulsões.

A Modernidade está autocentrada no indivíduo e é ele a medida e a razão de todas as coisas. Tal concepção teve também uma ética e uma estética, conforme vimos. No entanto, na medida em que o eu passa a uma posição diferenciada surgiu uma nova lógica, que deu lugar ora a um alargamento do campo do Eu em relação ao Outro, ora a um estreitamento do campo do Outro em relação ao Eu. Esse interjogo é que deu as cartas da representação para o individuo no campo social.

A Psicanálise, ao fazer a crítica do discurso da Modernidade, reconhecendo a figura do inconsciente, abriu uma outra perspectiva de análise. Desnudando as certezas da razão e dos sentidos, postula pela possibilidade de sonhar e de desejar - via formações do inconsciente - uma forma para reinventar o mundo. A descoberta de outros mundos possíveis vai se ancorar na alteridade que se traduz no Outro de

mim mesmo, naquele que a razão insistia em negar, mas que não cessa de se inscrever. O que ela fez com essa nova potencialidade será discutido posteriormente, nesta tese. Por hora, cabe mostrar o quanto o descentramento da subjetividade dos registros do Eu e da consciência, que passam a ser compartidos com outros novos e indomáveis territórios, representou uma diferença na concepção hegemônica vigente.

É no “Mal Estar na Civilização” (1930 [1929]) que o discurso psicanalítico expressa a sua mais veemente crítica à Modernidade ao apontar o permanente conflito entre o desejo e o interdito a sua satisfação. Esse texto constituiu-se em um importante documento de crítica à sociedade de então. Nele, Freud faz questionamentos sobre os fundamentos, as instituições e as ilusões que sustentam as decorrentes impossibilidades criadas para a subjetividade. Um importante assinalamento, já nas primeiras páginas, é quão impróprio era o modo como a sociedade da época estabelecia a divisão entre sujeito individual e sujeito coletivo.

Para Freud, tanto o sujeito quanto a cultura são efeitos da estrutura da linguagem. O que se percebeu, em razão da própria forma de conceber o sujeito da razão, foi uma pressuposta oposição e dicotomia entre indivíduo e sociedade. Atento a esse equívoco, Freud (1976, volume XXI, p. 95) escreveu que o “sofrimento nos ameaça a partir de três direções: [...] e, finalmente de nossos relacionamentos com outros humanos. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso que qualquer outro”, em uma clara alusão ao mal-estar decorrente das formas de laço social.

Ora, ao destacar que o mal estar provém das formas de laço social que o homem moderno privilegiou, Freud colocou em questão o par antitético civilização e barbárie, o qual se constituiu em mais um dos ataques aos, supostamente. inabaláveis pilares da Modernidade. Através de um jogo linguajeiro, permito-me brincar: passo a dizer que me sinto [mal] na Modernidade.

Sem sombra de dúvida, o avanço cultural impôs renúncias instintuais que se constituíram em carga psíquica significativa, graças ao modelo civilizatório que se adotou. A Educação forma socialmente aceita de transmissão do legado sociocultural, que uma geração passa a outra, vem cumprindo, desde então, o seu

papel de inibir, proibir e suprimir. Observamos que nesse aspecto a família revelou- se pródiga em repressão de movimentos e emoções. Com tal rigor, a tarefa foi cumprida, que a intensidade dos conflitos entre desejos e sentimentos de dever só pode resultar em um incremento das insatisfações, tanto do indivíduo quanto da família na qual ele estava inscrito.

No texto “A desilusão da Guerra” (1915), Freud (1976, volume XIV, p. 311) recoloca a questão da dualidade pulsional e aponta que “nós próprios ficamos perplexos diante da importância das impressões que nos pressionam e diante do valor dos julgamentos que formamos”. Isso se dá em uma clara alusão ao estranhamento frente ao horror da barbárie da guerra, que escancarou o potencial destruidor dos avanços científicos alcançados pela Modernidade.

Também é ali que Freud convida-nos a refletir sobre a barbárie advinda de nossa intolerância à alteridade, ao estrangeiro, que, fatalmente, contribui para sentimentos de hostilidade dirigidos ao outro. Em uma linha semelhante de raciocínio, podemos pensar que, se a Modernidade apregoou a importância da individualidade paradoxalmente, contribuiu, também, ancorado no narcisismo das pequenas diferenças para que se pensasse o mundo dividido entre civilizados e bárbaros - aquele que eu não sou. Na medida em que, pela força do poderio político e econômico, não hesitou, por meio dos colonizadores, pela força, impor aos gentios o braço forte de uma hegemonia cultural. Nessa medida, também, lançou as bases da intolerância. Tolerar a diferença tem como pré-requisito a possibilidade de descentrar-se. Descentrar inclusive o mito da verdade única, o que possibilita reconhecer a existência de outras formas de olhar, de pensar, de sentir... Essa, no entanto, é uma questão que parece ser difícil ao homem moderno.

No discurso “O Louco”, em “Gaia Ciência”, encontro:

“Procuro Deus!” “Procuro Deus!” Mas como ali havia muitos que não acreditavam no seu Deus, o seu grito provocou grande riso. “Terá se perdido, como uma criança?” dizia um “Estará escondido? Terá medo de nós? Terá viajado? Terá imigrado?” Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e traspassou-os com o olhar. “Para onde foi Deus?” exclamou “é o que vou lhes dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos nós, nós todos, os seus assassinos [...]” (NIETZSCHE, 2005, p. 111).

A partir do célebre aforismo, podemos refletir sobre a transitoriedade dos ideais de uma cultura, pensar que o mundo metafísico das idéias, dos valores e dos ideais encontra-se em seu ocaso, quando Nietzsche anuncia a morte de Deus, um deus conceitual. Vale destacar, alinhada ao pensamento de Giacóia Jr (2004), que Nietzsche nos faz pensar que para o homem moderno Deus está morto. Isso é algo que, de certa forma, era inevitável para os ideais Iluministas que submeteram o Mundo e a História à Razão esclarecida. Ao dizer Deus está morto, a atadura imaginária da submissão do homem rompe-se. A grande contradição, no entanto, e isso Freud denuncia, é que, ao mesmo tempo em que quer emancipar-se, esse mesmo homem moderno busca na perspectiva do Absoluto o consolo de que precisa. Essa é uma importante leitura na qual se agrega tanto o que Freud apontou sobre o desamparo quanto o que Lacan5, posteriormente, refletiu sobre o declínio social da imagem paterna. Se tomarmos outros textos freudianos, além dos já referidos até aqui, por exemplo, o “Caso Dora” (1905 [1901]) ou “O Homem dos Ratos” (1909), pode-se constatar que neles a figura paterna declina. Logo, a morte dos ideais, (e nisso o declínio da imago social) está presente desde o final do século XIX. Equivocadamente, tomamos essa discussão como novidade do século XX.

5 No Seminário Nomes - do- Pai (1963), interrompido bruscamente, pela “perda de sua função de “didata” em circunstâncias dramáticas” (2005 p.7) Lacan, propositadamente, através de um jogo de palavras, les non-dupes

errent (os tolos não erram ) et les noms du père (os nomes-do-pai) faz uma crítica aos psicanalistas que

2ª PARTE – PROBLEMATIZAÇÃO