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2. OBJETO LITERÁRIO: A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NAS POESIAS DE

2.1 O CONDOREIRISMO

2.1.2 Cristianismo messiânico

Uma outra forma de o vate comover a fim de convencer os seus interlocutores da pertinência de suas teses é embalar os versos pelo que chamamos cristianismo messiânico, estratégia discursiva que prega a liberdade, a igualdade e a fraternidade entre os homens, de

qualquer que seja sua posição na pirâmide social, sempre em comunhão com Deus. “Não esqueceremos que o vate, capaz de vaticínio, tinha esse dom divino de adivinhar. Não lhe faltou, ao gênio, nem esse condão maravilhoso”, julga Afrânio Peixoto (1947, p. 202-203). Já Paschoal Rangel avalia que “Castro Alves não foi um poeta prevalentemente religioso como Varela, Junqueira Freire ou Magalhães. Mas nele também a religiosidade romântica deixou marca profunda” (Rangel, 1984, p. 255). O gênio, enquanto “ser superior aos demais humanos” (idem), promotor das mudanças sociais, dotado de ultra-sensibilidade, é infinito em pensamentos e sua palavra é sempre dirigida a Deus, seja em tom de suplício ou mesmo em tom oracional. Em uma sociedade de base predominantemente cristã, o tom suplicante e/ou oracional fazia-se capaz de atingir a todos no cerne. Nas palavras de Victor Hugo,

como primeiras verdades, [o poeta] ensina ao homem que ele tem duas vidas que deve viver; uma passageira, a outra imortal; uma da terra, a outra do céu. Mostra-lhe que ele é duplo como seu destino, que há nele um animal e uma inteligência, uma alma e um corpo; em uma palavra, que ele é o ponto de intersecção, o anel comum das duas cadeias de seres que abraça a criação, da série dos seres materiais e da série dos incorpóreos; a primeira partindo da pedra para chegar ao homem; a segunda, partindo do homem para chegar a Deus (Hugo, 2004, p. 22).

Deste modo, as poesias envolvem essa postura messiânica cristã movidas, por um lado, pelas constantes interlocuções dirigidas aos céus e, por outro, pela concepção de prática poética bafejada por Deus. Basta observar as insistentes recorrências ao Deus católico; pode- se dizer que se chega à devoção a este referencial divino e, por conseguinte, ao ideal de divinização do poema/do poeta, voz/escritura sagrada em favor da liberdade. Consideremos ainda que os defensores da abolição seriam, em certa medida, sacerdotes, ou seja,

representantes da benevolência divina na Terra, pois lutam pela causa dos oprimidos, em consonância com a palavra de Deus, como se pode entrever no Evangelho de João, capítulo 13, versículos de 34 e 35: “um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei a vós, que também vós vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros”. Arriscamos dizer, com Chateaubriand, que no contexto em que se inseriu, a religiosidade cristã foi considerada “a mais poética, a mais humana e favorável à liberdade, às artes e às letras. (...) Seria preciso dizer que sua moral favorece o gênio, depura o gosto, cultiva as paixões virtuosas, revigora o pensamento, fornece formas nobres ao escritor e modelos perfeitos ao artista” (Chateaubriand In Lobo, 1987, 113), fundamentais para a confecção das teses condoreiras, conforme podemos perceber pela leitura de “Súplica”:

Senhor Deus, dá que a boca da inocência Possa ao menos sorrir,

Como a flor da granada abrindo as pet’las Da alvorada ao surgir.

Dá que um dedo de mãe aponte ao filho O caminho dos céus,

E os lábios derramem como pérolas Dois nomes – filho e Deus.

Que a donzela não manche em leito impuro A grinalda do amor.

Que a honra não se compre ao carniceiro Que se chama senhor.

Dá que o brio não cortem como o cardo Filho do coração.

Nem o chicote acorde o pobre escravo A cada aspiração.

Insultam e desprezam a velhice A coroa de cãs.

Ante os olhos do irmão em prostitutas Transformaram-se as irmãs.

A esposa é bela... Um dia o pobre escravo Solitário acordou;

E o vício quebra e ri do nó perpétuo Que a mão de Deus atou.

Do abismo em pego, de desonra em crime Rola o mísero a sós.

Da lei sangrento o braço rasga as vísceras Como o abutre feroz.

Vê! ... A inocência, o amor, o brio, a honra, E o velho no balcão.

Do berço à sepultura a infâmia escrita... Senhor Deus! compaixão! (Alves, op. cit., p. 258-259)

Em tom ora suplicante, ora oracional os versos assumem uma postura de denúncia dos horrores do momento histórico, valendo-se de situações senão verdadeiras, verossimilhantes. Fazem, então, valer as palavras de Chateaubriand, pois a religiosidade presente no texto, declaradamente cristã/católica, ergue-se como elemento de comoção e persuasão dos receptores que ouvem os recitais poéticos ou lêem periódicos. É sabido que a religiosidade predominante/imposta no Brasil de então era a católica; nota-se, então, esse apelo ao divino cristão novamente como estratégia retórica, para fazer com que os receptores textuais – sobretudo as elites, cuja moral cristã abrigava o cerne - se identificassem ou se enternecessem. Em suma, ergue-se uma textualidade movida pelo inconformismo e pelo reformismo de cima para baixo, valendo-se de referenciais moral e identitário próprios da camada dominante. Enquanto “antena do mundo”, o poeta-sacerdote continuou sempre firme no projeto libertário presente na metáfora de juventude, contida na expressão “Moisés do Sinai”, conforme se vê

em “O século”, publicado originalmente pelo jornal pernanbucano O liberal acadêmico, a 17 de agosto de 186522:

Basta! ...Eu sei que a mocidade é o Moisés do Sinai;

das mãos do Eterno recebe As tábuas da lei – Marchai! Quem cai na luta com glória, Tomba nos braços da História, No coração do Brasil!

Moços, do topo dos Andes, Pirâmides vastas, grandes, Vos contemplam sec’los mil! (Alves, op. cit., p. 214)

O discurso embalado pelo que chamamos de cristianismo messiânico foi bastante frutífero para o impacto de recepção dos textos, porque catalisador de elementos comoventes, tais como misericórdia, virtuosismo em defesa dos “fracos”, bem-aventurança aos humildes de coração, sentimentalismo exarcebado de fé, esperança, piedade divina, salvacionismo, dentre outros traços cristãos que puderam ser difundidos naquele ambiente/momento. Destaque-se que a comparação da mocidade com a expressão “Moisés do Sinai” aponta para duas direções, ambas de essência liberal e libertadora: a primeira inspirada nas duas primeiras estrofes de La

Marseillaise23, cujo conteúdo bem revela os ideais da Revolução de 1789 e seus

desdobramentos na de 1848: liberdade, igualdade e fraternidade; a segunda dialoga com o

22 Segundo Pedro Calmon (1973), também recitado a 11 do mesmo mês, na Faculdade de Direito, em sessão comemorativa da

abertura dos cursos jurídicos.

23 1. Avante, filhos da Pátria,/ O dia da Glória chegou. / Contra nós, da tirania / O estandarte ensanguentado se ergueu. / O

estandarte ensanguentado se ergueu. / Ouvis nos campos / Rugirem esses ferozes soldados? / Vêm eles até aos nossos braços / Degolar nossos filhos, nossas mulheres. / Às armas cidadãos! / Formai vossos batalhões! / Marchemos, marchemos! / Que um sangue impuro / Agúe o nosso arado. 2. O que quer essa horda de escravos / de traidores, de reis conjurados? / Para quem (são) esses ignóbeis entraves / Esses grilhões há muito tempo preparados? / Esses grilhões há muito tempo preparados? / Franceses! A vós, ah! que ultraje! / Que comoção deve suscitar! / É a nós que consideram / retornar à antiga escravidão!

prefácio de Suspiros poéticos e saudades (1836), de Gonçalves de Magalhães, marco inicial do Romantismo brasileiro: “o poeta sem religião, e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos aí procuram aplacar a sede” (Magalhães, 1986, p. 42). No fundo, ambas convergem para o que Schelegel chama de volksgeist, ou seja, “voz do povo” – mas na boca do vate24. Os versos do poeta ganham roupagem de palavra divina, pois assim como

prevê o discurso cristão, cabe à palavra (divina ou literária, no caso) guiar os que estão na escuridão25. Fazendo das palavras de Schelegel as nossas, “a relação do verdadeiro artista e do

verdadeiro ser humano para com seu ideal é uma religião absoluta. O homem que teve pela vida afora este culto é um sacerdote e é isto que todos podem e devem se tornar” (Schelegel, In Lobo, 1987, 69-70). Desta forma, os dramas públicos, como a escravidão, também passam a pertencer ao artista, em certo sentido propulsor das transformações sociais.

Falemos agora de outra estratégia poética que julgamos de suma importância.