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Cristo Redentor: nomadismo como história de vida

O Cristo Redentor é um bairro localizado, também, no Grande Pirambu. No primeiro semestre de 2010, um amigo que pesquisa cultura popular, me convidou

para fazer uma visita ao bairro, no dia que haveria a apresentação de um Boi. Tratava-se do Boi Juventude do Mestre Ciro, conhecido daquela área da cidade com mestre da cultura. O Boi do Mestre Ciro é reconhecido pelo Ministério da Cultura e recebe apoio do Banco do Nordeste e outras entidades, mas a sede do grupo localizava-se na casa do Mestre Ciro, justamente onde as habitações estavam sendo demolidas para ceder lugar a passagem do novo projeto que havia substituído o Costa-Oeste, o Projeto Vila do Mar. Então fiquei interessada em assistir a apresentação e conversar com o Mestre Ciro sobre como estava sendo o processo de negociação da sua casa.

O Mestre Ciro me falou que a ocupação da orla do Cristo Redentor ocorreu no início da década de 1970, período no qual, a sua família se mudou da Praia das Goiabeiras para o novo bairro. O Mestre Ciro era casado e tinha filhos e netos, aprendeu a tradição da cultura do Boi como o seu pai que havia aprendido com o seu avô no Sertão.

Percebi que o Boi Juventude era uma grande diversão para a população do bairro que assistia a apresentação das calçadas e janelas de suas casas. Além disso, o Boi Juventude reunia participantes de todas as idades: crianças, adolescentes, adultos e idosos.

A imagem dos escombros, restos de casas demolidas, onde predominava a cena da destruição de parte de um bairro, contrastava-se com a visão do Oceano Atlântico que se expandia no horizonte. No meio dessa imagem desordenada, apresentavam-se os integrantes do Boi Juventude: crianças, adolescentes, homens e mulheres, adultos e idosos, todos fantasiados, brincando, cantando e dançando num mesmo ritmo, como se fizessem parte de um só corpo. Cenas de degradação e de pobreza misturavam-se a alegria e a vitalidade. A potência de um povo que resiste era narra através da beleza de sua manifestação folclórica manifestação folclórica.

No meio das casas demolidas, a única que continuava intacta era a sede do Boi Juventude, pois o Mestre Ciro ainda não havia entrado em acordo com o Município sobre sua remoção. Segue o depoimento do Mestre Ciro:

Lutei muito para conseguir uma casa boa como essa. Moro aqui com a minha família e aqui também é a sede do Boi Juventude. Aqui guardamos todo o material do Boi, por isso precisamos de uma casa espaçosa. Mas, com o dinheiro que o pessoal da Habitafor ofereceu não dá para comprar uma casa boa como essa. Primeiro avaliaram a nossa casa em seis mil reais, mas nois recusamos. Depois, ofereceram nove mil. Mas, nois também não aceitamos.

Ai, eles aumentaram para quinze mil e continuamos sem aceitar. Porque com esse valor não dá para comprar uma casa do tamanho da minha aqui perto de onde moramos. Se, estamos sendo obrigados a sair, temos que ir para um lugar perto e para uma casa que dê para guardar o material do Boi. O Boi é a minha vida e da minha família e de muitas pessoas de jovens que adoram o Boi. Não acredito na justiça, não vou brigar com a Prefeitura. Mas, estamos tentando negociar com eles. Quero mostrar como o Boi é importante para a nossa cultura. Isso tem que ser valorizado, se não se acaba tudo! Eu ensino para o meu netinho tudo sobre o Boi: as danças, as cantigas. Quero que as próximas gerações continuem com a tradição que veio do meu avô! Ai, por enquanto, estamos resistindo, por isso que ainda não demoliram a minha casa. Mas, sei que vamos ter que sári logo, logo. Da última vez que falei com o pessoal da Habitafor, eles ofereceram vinte e cinco mil reais de indenização para a gente comprar outra casa ou então disseram que se agente preferir a Prefeitura pode comprar uma sede para o Boi. Estamos resolvendo o que vais ser melhor.

A história do Mestre Ciro é semelhante a tantas outras que encontrei na Praia das Goiabeiras. Mas, a partir da sua fala percebe-se que o novo projeto, pelo menos na situação descrita por ele, parece estar removendo a população de maneira mais cuidadosa, estando mais aberto a negociações. Na fala do morador, no entanto, fica clara a sua descrença na Justiça. Como muito outros habitantes que fazem parte desse drama, ele não se acha capaz de contestar juridicamente o valor da desapropriação. Sua forma de resistência é diferente. Ele procura mostrar a importância do seu trabalho como um mestre da cultura para sensibilizar o Poder Público em relação à necessidade de ser transferido para uma moradia digna.

A seguir exibo algumas imagens através de fotos que realizei no momento da apresentação do Boi Juventude. As fotos aqui não são utilizadas como meros recursos acessórios para complementar o texto, mas elas falam por si mesmas. As formas de expressão visuais são também textos a serem lidos e interpretados. Com isso, objetivo expandir as várias formas de se captar a realidade da população nômade.

Foto 1 - Personagens do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce.

Fonte: Acervo do LAI45 /UFC. Foto de Lara Capelo (2010)

Fotos 2 – Neto do Mestre Ciro do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza – Ce.

Fotos 3 e 4 – Mestre Ciro do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Forlaleza-Ce.

Fonte: Acervo do LAI/UFC. Foto de Lara Capelo (2010)

Foto 5- Personagens dançando em frente à sede do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce.

Foto 6 – Personagens dançando em frente à sede do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce.

Fonte: Acervo do LAI/UFC. Foto de Lara Capelo (2010)

Foto 7 - Personagens dançando em frente à sede do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce.

Fotos 8 e 9 - Personagens dançando em frente à sede do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce, 2010.

Fonte: Acervo do LAI/UFC. Foto de Lara Capelo (2010).

Foto 10 - Personagens dançando em frente à sede do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce, 2010.

Foto 11 - Personagens e moradores dançando em frente à sede do Boi Juventude. Bairro Cristo Redentor (Pirambu). Fortaleza-Ce, 2010.

Fonte: Acervo do LAI/UFC. Foto de Lara Capelo (2010)

No dia em que assisti a apresentação do Boi Juventude, fiz uma entrevista longa com uma senhora que fazia parte desse grupo folclórico. Ela, também, era moradora do Cristo Redentor, mas sua havia sido removia para um conjunto habitacional e sua antiga casa, que ficava próxima a casa do Mestre Ciro, já havia sido demolida. Ela me contou sobre toda a sua trajetória de vida em relação às várias moradias que teve desde que chegou do interior para morar em Fortaleza. A história dessa moradora em surpreendeu no sentido de que ela é uma típica nômade urbana, pois nunca conseguir permanecer, durante um logo período de tempo, em uma mesma habitação. Sua vida é marcada por um intenso movimento de territorialização e

desterritorialização, influenciado pelos mais diversos fatores, tais como: questões pessoais; ações da natureza; disputas de territórios e poderes entre moradores locais; ações do Poder Público. Transcrevo a seguir os seu depoimento:

Meu nome é Cleide de Sousa, tenho 73 anos, sou da cidade de Itapajé. Vim fugida do interior para Fortaleza quando ainda era uma menina! Eu sou órfã de pai e mãe e fui criada pelos meus avós. Mas, eles me batiam muito, judiavam muito de mim. Então, eu resolvi fugir. Quando eu cheguei aqui, tinha 14 anos. Fiquei um tempo na casa da minha tia, mas o meu primo queria namorar comigo, tive medo da reação dela e fugi, fui trabalhar e morar em casa de família como empregada domestica. Quando eu completei 20 anos, o Padre Hélio me deu umas madeiras para eu construir um quarto

na beira da Lagoa do Mel. Nessa época, eu vivia de lavar roupa e morava só com uma filha. Mas, tive que sair da lagoa por que a água derrubou todas as casas da beira da lagoa. Mas eu nunca vivi abandonada, sempre tive o meu lugar! Então, fui morar com uma amiga perto da Castanhola, perto de outra lagoa, lá a nossa casa também vivia alagada e tivemos que sair de lá. Me casei com o Chaga, que era pescador. No início, fomos morar na casa da mãe dele. Depois compramos um quarto. Na época do governo do Tasso, fui até o Cambeba e ganhei um material de construção. Eu e o Chaga construímos uma casa na beira da praia . A casa era boa e grande, mas a maré foi comendo aos poucos. Todo dia o mar levava um pedaçinho da nossa casa. Me separei do Chaga e fui morar na Vila Velha, perto da Barra do Ceará no Mangue. Lá era só lama e a casa vivia cheia de água. Por causa disso, tive que sair de lá. Então consegui uma casinha para morar, aqui no Cristo Redentor. Mas, a mãe da líder comunitária me expulsou de lá. Disse que aquela casa era da sua filha e me colocou no meio da rua. O advogado da líder comunitária pegou uma casa abandonada, perto da praia, reformou a casa, que não tinha iluminação, e me deu para morar. Coloquei gambiarra na casa e, todo ano, eu colocava um tijolozinho, fazia um pinturinha, e ai melhorando a casa. Eu gostava muito dessa casa na praia, morei dez anos lá. A casa era ampla e confortável, tinha muita paz. Mesmo sendo perto do mar, a casa era segura, não batia água. Até que chegou a Prefeitura, quando começou a construir essa avenida, e me tirou de lá. Fui transferida para o Conjunto Habitacional Dom Élder Câ mara, mas não me adaptei muito bem, pois no prédio eu não tenho paz. Lá tem muito barulho dos vizinhos. Se uma pessoa tosse ou escarra, se uma criança chora, se alguém fala mais alto, eu escuto tudinho. Então eu não conseguia dormir! Entrei em uma depressão profunda! Então, eu vendi o meu apartamento no conjunto para uma família que veio da Vila Velha. Vendi por dez mil reais! Comprei outro apartamento no mesmo conjunto, mas no ultimo andar. Esse apartamento é um pouco melhor porque não tem nenhum outro construído em cima, tem menos barulho. Comprei esse apartamento por oito mil reias! Mesmo assim, ainda prefiro a minha antiga casinha na beira da praia, tenho muita saudade de lá, tive muita tristeza ao ver o trator passar por cima da minha casa. Aqui, no conjunto, me sinto muito presa, não tenho liberdade e não gosto da vizinhança. Tenho saudade dos meus antigos vizinhos!Não acredito nesse direito à moradia que a Prefeitura fala! Esse conjunto tem 280 apartamentos. E, desde que eu vim morar aqui, 40% das famílias removidas já venderam seus apartamentos e foram para outros lugares. Alguns foram para beira do mangue ou da lagoa, outros compraram casas aqui perto. A Prefeitura diz que deu esses apartamentos para a gente morar e que impedir a gente de vender. Mas, a Prefeitura não deu coisa nenhuma, porque eu já tinha uma casa na beira da praia. Por isso, é que eu faço o que eu quiser com esse apartamento! Se eu quiser vender, vendo! Ninguém pode me impedir!Isso que fazem com a gente não é direito! Esse conjunto foi mal construído, tem parede rachada! O pessoal da Habitafor não apita em nada! Se a gente pode vender ou não é problema nosso. Quem tem direito é nóis que mora ali! Nóis somos dono!Hoje em dia, a minha alegria é participar do Boi, foi assim que eu saí da depressão. Minha filha andava muito preocupada comigo, me levou ao médico. Tive que tomar um bocado de remédios. Agora não tomo mais nada: sou feliz dançando no Boi Juventude!

A história de vida da Dona Cleide revela que ela é uma tópica nômade urbana, aproximando-se mais do primeiro tipo de nômade, ou seja, daqueles que por não ter condições materiais de adquirir ou alugar uma moradia dentro das exigências legais, permanecem num estado de nomadismo por conta de diversos fatores, que vão desde questões existenciais, de condição de vida; à problemas relacionados à ação da

natureza; a intervenção do Poder Público ou do proprietário do imóvel. É o que fica claro na trajetória das diversas moradias dessa nômade urbana: Itapajé - Fortaleza: Casa da Tia – Casa de Família – Casa na Lagoa do Mel – Casa na Castanhola – Casa da Sogra – Casa na Beira da Praia – Casa na Vila Velha (no Mangue) – Casa no Cristo Redentor – Casa perto da Praia (no Cristo Redentor) – Primeiro Apartamento no Conjunto Habitacional Dom Helder Câmara – Segundo Apartamento no Conjunto Habitacional Dom Helder Câmara. O percurso das diversas moradias da Dona Cleide, com exceção de Itapajé, da Casa da Tia e da Casa de Família, ocorreu no Grande Pirambu.

O depoimento da Dona Cleide pode ser lido como quem observa um retrato de uma parte da história do Brasil, ou seja, de um país que tem como um dos pilares da sua fundação a segregação fundiária, inicialmente no campo, com a formação dos grandes latifúndios, e depois, a partir de 1930, nas cidades, dando início a proliferação de moradias improvisadas, clandestinas e construídas em áreas sem infraestrutura, classificadas como foco de doenças e marginalidade. A fala da informante também compõe uma imagem da história do Ceará com seu grande contingente de migrantes que vieram para Fortaleza, fugidos das ameaças da seca ou de suas tragédias pessoais, em busca de melhores condições de vida. Mas, quando chegaram à cidade, encontraram um território de desigualdade social que impulsiona essa população nômade a uma reinvenção constante da vida, construindo moradias “ilegais”, “irregulares” e “clandestinas”.

O significado que a Dona Cleide imprime ao direito à moradia não está relacionado à ideia de direito positivo, de normas previstas em leis e em códigos. A concepção da informante está relacionada a um direito natural de morar de quem ocupou a terra ou o imóvel e fez dos mesmos a sua habitação. Por isso, ela rejeita as normas impostas de direito positivo, criando seus próprios conceitos de conduta legítima, de direito à moradia e à propriedade. Percebe-se, no caso, que os nômades, ao realizarem ocupações urbanas, dão um significado ao bem ocupado que vai além do direito à moradia, concebendo-o, também, como direito de propriedade. Os nômades não desejam consumir o bem somente para fins de moradia, mas também querem consumi-lo como um bem de mercado, que pode ser negociado. O significado que os nômades dão a terra urbana ocupada fica claro a partir do depoimento citado, quando a Dona Cleide afira que a Prefeitura não pode impedir os moradores de vender os

apartamentos. No caso, 40% das famílias que foram transferidas para o conjunto habitacional venderam os apartamentos e forma ocupar novos espaços da cidade.

O drama individual dessa migrante do sertão se desenvolve dentro do diversificado campo de possibilidades (GILBERTO VELHO, 2008 b), típico das

sociedades complexas contemporâneas, onde a mesma trilhou seu mapa físico e subjetivo na cidade de Fortaleza. É nessa diversificada dimensão sociocultural que os indivíduos se fazem, são constituídos, feitos e refeitos, construindo suas próprias trajetórias existenciais.

8.3 Praia do Futuro: a formação das redes de poder, interesses e solidariedade

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