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Crivo do conceito: o paradoxo insuportável do servo-arbítrio

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo 2014 (páginas 48-51)

1.3 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE RICOEUR: OS FRUTOS DE UM

2.1.3 Crivo do conceito: o paradoxo insuportável do servo-arbítrio

O extenso trabalho de Ricoeur é aquele de percorrer uma cadeia de símbolos nos três níveis que descrevemos acima: a mancha, o pecado e a culpa.

Trata-se de um trabalho de interpretação dos diversos símbolos presentes nas obras da tradição cultural grega e semita.

Mas qual é o horizonte desta cadeia de símbolos percorridos? Como encontrar símbolos arcaicos, mantidos e reafirmados nos símbolos avançados? Mais uma vez encontramos no horizonte de Ricoeur a formulação de um conceito no nível especulativo que exprime a relação existente entre os três níveis simbólicos extensamente descritos por ele. Trata-se do conceito de servo-

arbítrio.

O conceito de servo-arbítrio não pode ser igualado ao conceito de

falibilidade. Ele comporta em si uma contradição insuportável ao pensamento:

como conciliar a ideia da servidão à ideia da liberdade (arbítrio).

O conceito de servo-arbítrio descrito por Ricoeur servirá como um caso apropriado para estabelecer uma relação entre o símbolo e o conceito filosófico. Na medida em que o conceito comporta uma contradição, é a apropriação de sentido do símbolo que poderá desvela-lo. Neste sentido, é possível afirmar que no símbolo da mancha já está presente o conceito de servo-arbítrio.

Existe uma relação entre os diferentes níveis simbólicos que se compõem. De fato:

O último símbolo só consegue visar o seu conceito-limite ao retomar em si mesmo toda riqueza dos símbolos anteriores. Por conseguinte, há uma relação circular entre todos os símbolos: os últimos extraem o sentido daqueles que os precedem, mas os primeiros emprestam a estes últimos todo seu poder de simbolização (RICOEUR, 2013, p. 170).

Nesta passagem encontramos a ideia do círculo hermenêutico onde existe um encadeamento de sentidos em duas direções: dos símbolos mais arcaicos para os mais elaborados, em que os símbolos mais elaborados emprestam toda a carga simbólica dos símbolos anteriores; mas o inverso também ocorre quando os símbolos mais elaborados possibilitam uma aproximação mais rica de sentido aos símbolos arcaicos.

É esta última direção que Ricoeur pretende percorrer para consolidar o conceito de servo-arbítrio. Ele parte do sentido de uma liberdade que se torna cativa, infectada, portanto, elementos característicos dos símbolos anteriores (mancha, pecado). Vejamos nessa passagem a elucidação do percurso feito pela hermenêutica dos símbolos do mal:

De fato, a culpabilidade não pode exprimir-se a não ser através da linguagem indireta do ‘cativeiro’ e da ‘infecção’, herdada das duas instâncias anteriores; ambos os símbolos são então remetidos ‘para o interior’ para poderem expressar uma liberdade que se escraviza a si mesma, se afeta e se infeta através da sua própria escolha; em contrapartida, o caráter simbólico e não literal do cativeiro do pecado e da infecção da mancha torna-se completamente manifesto ao passar a designar uma dimensão da própria liberdade; é agora, e só agora, que nós sabemos que se tratam de símbolos quando se descobrem numa situação que incide sobre a relação do si consigo mesmo. Por que recorrer à simbólica anterior? Porque o paradoxo de um livre- arbítrio preso – o paradoxo de um servo-arbítrio – é insuportável para o pensamento. Que a liberdade tenha de ser libertada e que essa libertação seja uma libertação da própria escravidão, nada disso se pode exprimir em estilo direto: e no entanto, é essa temática central da ‘salvação’ (RICOEUR, 2013, p. 171).

O símbolo do cativeiro pode elucidar a equação de Ricoeur, na medida em que está vinculado a uma teologia da história de uma situação comunitária (como a do povo hebreu), porém, no momento em que ele se torna a cifra que designa a condição de um indivíduo culpado torna-se o que Ricoeur chama de

símbolo puro, pois desliga-se da sua reminiscência histórica.

Acompanhemos a relação que Ricoeur estabelece entre o conceito de

servo-arbítrio e o símbolo da mancha para melhor compreender o processo em

que o símbolo elucida e é elucidado pelo conceito.

O símbolo puro da mancha possui três intenções que formam um esquematismo do conceito de servo-arbítrio.

A primeira intenção é a da positividade do mal. O mal é uma posição (poder das trevas) e por isso pode, por exemplo, ser retirado: Eu sou o cordeiro

de Deus que tira o pecado do mundo, como expressa o evangelista. Esta

intenção caracteriza o mal como uma posição, diferente da ideia do mal como falta de ser.

A segunda intenção do símbolo é a da exterioridade do mal. Ele se encontra fora da liberdade, ele vem ao homem: “Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e seduz” (Carta de Tiago, 1, 14). Trata-se do esquema da sedução, onde aquilo que já está aí seduz e infere o contato impuro. O mal é o fora sedutor: um esquema de exterioridade presente no símbolo da mancha que se encontra na ideia de servo-arbítrio.

Por fim, a terceira intenção é a do mal como infecção. Será possível manter esta intenção da mancha, tão associada a uma concepção mágica, no conceito de servo-arbítrio?

Para Ricoeur é esta última intenção que melhor explicita a relação entre o símbolo e o conceito. Trata-se da má escolha que se prende a si mesma.

No esquema da sedução o ato de se amarrar torna-se o estado de estar amarrado, como uma afecção do si por si mesmo.

Esta relação de liberdade e cativeiro pela infecção nos esclarece uma condição importante do mal. Sendo positivo, sedutor e infetante, o mal não tolhe a condição do homem. O mal não é simétrico ao bem, pois ele corrompe, obscurece, torna feia a inocência, porém, por mais radical que seja, não é tão originário quanto a bondade.

É relevante o exemplo de Ricoeur para explicitar esta condição de infecção que não retira a condição de homem. Ele fala de um país em cativeiro que mantém sua produção, mas que a realiza para outro. A identidade do país permanece, ainda que sob o domínio de outro.

Sem dúvida seu exemplo é enquadrado na condição do exílio do povo de Israel, mas como não pensar no período das feridas odorosas deixadas pela ocupação nazista na França.

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo 2014 (páginas 48-51)