1.3 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE RICOEUR: OS FRUTOS DE UM
2.1.3 Crivo do conceito: o paradoxo insuportável do servo-arbítrio
O extenso trabalho de Ricoeur é aquele de percorrer uma cadeia de símbolos nos três níveis que descrevemos acima: a mancha, o pecado e a culpa.
Trata-se de um trabalho de interpretação dos diversos símbolos presentes nas obras da tradição cultural grega e semita.
Mas qual é o horizonte desta cadeia de símbolos percorridos? Como encontrar símbolos arcaicos, mantidos e reafirmados nos símbolos avançados? Mais uma vez encontramos no horizonte de Ricoeur a formulação de um conceito no nível especulativo que exprime a relação existente entre os três níveis simbólicos extensamente descritos por ele. Trata-se do conceito de servo-
arbítrio.
O conceito de servo-arbítrio não pode ser igualado ao conceito de
falibilidade. Ele comporta em si uma contradição insuportável ao pensamento:
como conciliar a ideia da servidão à ideia da liberdade (arbítrio).
O conceito de servo-arbítrio descrito por Ricoeur servirá como um caso apropriado para estabelecer uma relação entre o símbolo e o conceito filosófico. Na medida em que o conceito comporta uma contradição, é a apropriação de sentido do símbolo que poderá desvela-lo. Neste sentido, é possível afirmar que no símbolo da mancha já está presente o conceito de servo-arbítrio.
Existe uma relação entre os diferentes níveis simbólicos que se compõem. De fato:
O último símbolo só consegue visar o seu conceito-limite ao retomar em si mesmo toda riqueza dos símbolos anteriores. Por conseguinte, há uma relação circular entre todos os símbolos: os últimos extraem o sentido daqueles que os precedem, mas os primeiros emprestam a estes últimos todo seu poder de simbolização (RICOEUR, 2013, p. 170).
Nesta passagem encontramos a ideia do círculo hermenêutico onde existe um encadeamento de sentidos em duas direções: dos símbolos mais arcaicos para os mais elaborados, em que os símbolos mais elaborados emprestam toda a carga simbólica dos símbolos anteriores; mas o inverso também ocorre quando os símbolos mais elaborados possibilitam uma aproximação mais rica de sentido aos símbolos arcaicos.
É esta última direção que Ricoeur pretende percorrer para consolidar o conceito de servo-arbítrio. Ele parte do sentido de uma liberdade que se torna cativa, infectada, portanto, elementos característicos dos símbolos anteriores (mancha, pecado). Vejamos nessa passagem a elucidação do percurso feito pela hermenêutica dos símbolos do mal:
De fato, a culpabilidade não pode exprimir-se a não ser através da linguagem indireta do ‘cativeiro’ e da ‘infecção’, herdada das duas instâncias anteriores; ambos os símbolos são então remetidos ‘para o interior’ para poderem expressar uma liberdade que se escraviza a si mesma, se afeta e se infeta através da sua própria escolha; em contrapartida, o caráter simbólico e não literal do cativeiro do pecado e da infecção da mancha torna-se completamente manifesto ao passar a designar uma dimensão da própria liberdade; é agora, e só agora, que nós sabemos que se tratam de símbolos quando se descobrem numa situação que incide sobre a relação do si consigo mesmo. Por que recorrer à simbólica anterior? Porque o paradoxo de um livre- arbítrio preso – o paradoxo de um servo-arbítrio – é insuportável para o pensamento. Que a liberdade tenha de ser libertada e que essa libertação seja uma libertação da própria escravidão, nada disso se pode exprimir em estilo direto: e no entanto, é essa temática central da ‘salvação’ (RICOEUR, 2013, p. 171).
O símbolo do cativeiro pode elucidar a equação de Ricoeur, na medida em que está vinculado a uma teologia da história de uma situação comunitária (como a do povo hebreu), porém, no momento em que ele se torna a cifra que designa a condição de um indivíduo culpado torna-se o que Ricoeur chama de
símbolo puro, pois desliga-se da sua reminiscência histórica.
Acompanhemos a relação que Ricoeur estabelece entre o conceito de
servo-arbítrio e o símbolo da mancha para melhor compreender o processo em
que o símbolo elucida e é elucidado pelo conceito.
O símbolo puro da mancha possui três intenções que formam um esquematismo do conceito de servo-arbítrio.
A primeira intenção é a da positividade do mal. O mal é uma posição (poder das trevas) e por isso pode, por exemplo, ser retirado: Eu sou o cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo, como expressa o evangelista. Esta
intenção caracteriza o mal como uma posição, diferente da ideia do mal como falta de ser.
A segunda intenção do símbolo é a da exterioridade do mal. Ele se encontra fora da liberdade, ele vem ao homem: “Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e seduz” (Carta de Tiago, 1, 14). Trata-se do esquema da sedução, onde aquilo que já está aí seduz e infere o contato impuro. O mal é o fora sedutor: um esquema de exterioridade presente no símbolo da mancha que se encontra na ideia de servo-arbítrio.
Por fim, a terceira intenção é a do mal como infecção. Será possível manter esta intenção da mancha, tão associada a uma concepção mágica, no conceito de servo-arbítrio?
Para Ricoeur é esta última intenção que melhor explicita a relação entre o símbolo e o conceito. Trata-se da má escolha que se prende a si mesma.
No esquema da sedução o ato de se amarrar torna-se o estado de estar amarrado, como uma afecção do si por si mesmo.
Esta relação de liberdade e cativeiro pela infecção nos esclarece uma condição importante do mal. Sendo positivo, sedutor e infetante, o mal não tolhe a condição do homem. O mal não é simétrico ao bem, pois ele corrompe, obscurece, torna feia a inocência, porém, por mais radical que seja, não é tão originário quanto a bondade.
É relevante o exemplo de Ricoeur para explicitar esta condição de infecção que não retira a condição de homem. Ele fala de um país em cativeiro que mantém sua produção, mas que a realiza para outro. A identidade do país permanece, ainda que sob o domínio de outro.
Sem dúvida seu exemplo é enquadrado na condição do exílio do povo de Israel, mas como não pensar no período das feridas odorosas deixadas pela ocupação nazista na França.