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A cruz e o chicote: o sagrado no mundo patriarcal do conto “Uma certa porta”

No documento Open O Brasil mágico de Bernardo Élis (páginas 99-169)

pensãozinha do interior de Goiás, uma das regiões mais pobres do país. Vizinha ao seu quarto, está hospedada a belíssima Luci e sua sogra. Sobre esta narrativa, comenta Gilberto Mendonça Teles no livro O conto brasileiro em Goiás: Dá as necessárias dimensões da evolução do autor, não só pela adoção de uma técnica de simultaneísmo de ações, como, notadamente, pelo apuramento do estilo, a mobilização de maior soma de recursos expressivos (TELES, 2007, p. 68).

O conto abre-se com o Monólogo Interior do narrador, que na madrugada desperta com o som do violento coito dos cavalos que estavam na pensão. No calor da madrugada, o narrador (Nicolas) percebe que sua vizinha também está acordada, incomodada pelos sons dos amores selvagens debaixo das janelas.

Na tarde deste dia, Nicolas e Luci encontram-se debaixo de uma limeira. No diálogo entre os dois, dá-se a entender que Luci estava interessada em manter uma relação extraconjugal com Nicolas. No momento em que o narrador pretende seguir Luci, a imagem do pai portando um chicote na mão e uma cruz dourada no pescoço surge-lhe, proibindo-o de seguir em frente, instando-o a obedecer aos ditames religiosos que lhe ensinara.

À noite, Nicolas deseja entrar pela porta de Luci, mas sua dúvida não o permite. Na sua indecisão, o seu quarto é invadido pelos companheiros, tornando impossível o seu encontro com Luci. Totalmente frustrado e decepcionado, a imagem do pai (fantasma ou

alucinação?) ressurge-lhe diante dos olhos, repreendendo-lhe novamente, obrigando-o a rezar antes de deitar.

Humilhado, ainda tem de ouvir o pai rir-se de seu extremo respeito humano e comentar com um dos companheiros presentes no quarto sobre a covardia do filho em não se encontrar com a bela Luci. Às cinco horas da manhã, é despertado pelos camaradas para seguir viagem de volta, corre para ver a porta de Luci, mas já estava trancada.

A doma dos cavalos e a vulva indomável em “Uma certa porta”

A cena de abertura do conto nos coloca num caldeirão de sensações e percepções. Utilizando a técnica de fluxo de consciência, o narrador nos deixa dentro dessa ebulição de desejos que vêm à tona através dos sons causados pelos cavalos que, nos estábulos, copulam com ferocidade e barulho. Estas percepções não estão apenas citadas no texto, mas materializadas no discurso na forma de aliterações e paronomásias, como podemos ver nos seguintes exemplos:

Rinchos e relinchos parece que aprochegam e nitriam e bufavam pateando a tropeada na calçada ainda apagada na distante madrugada, tão orvalhada, tão neblinada. Mas, e a candeia no quarto vizinho? Havia bufos e raspos na rua, onde os animais escaldantes fremiam luxúria de amor e mordida na nuca da égua fogosa ou nas núbeis potrancas lascivas […]. Rugindo, raspando, os cascos batiam em frente à pensão e vinham e iam: grunhiam, gemiam, um quase rincho principia, mas cortou- se no estertor do orgasmo da poldra nova e sadia que chegava e já fugia e refulgia sob o peso do garanhão trepado em fogo na anca núbil. Coices e coisas e ais e suspiros e a quentura da noite esquentada pelos corpos enormes e possantes possuídos de fome, a fugir, morder, babar (ÉLIS, 1965, p. 96).

Ora, esse caldeirão de sons serve para representar a ausência de um pensamento linear do narrador. Ele é todo percepção e imaginação superexcitada pelo sonho do qual desperta: seus desejos já estão à tona. Nos seus sonhos, o narrador, metaforizado como cavaleiro, luta incessantemente contra um cavalo e é vencido, jogado ao chão:

Entre um pulo e um coice, eriçando a crina, o cavalo corcoveia, mete a cabeça entre as patas, sacode os freios, um relincho e outro pincho, eis que vou às nuvens e a sela me foge, refoge o estribo e me estrepo e me atrepo, me agarro no vento: em baixo são pedras e patas e pedras e pontas de puas. – Uf! (ÉLIS, 1965, p. 95)

O sonho representa, no nosso entendimento, o homem conduzido pelos seus desejos e que é derrubado por eles. A queda representaria, nesta nossa perspectiva, a impossibilidade de viver estes desejos. Portanto, o sonho configura-se como prolepse do enredo: Nicolas não consegue realizar os seus desejos com a bela Luci.

Sobre este parágrafo inicial do conto bernardiano, volta-se também Gilberto de Mendonça Teles, abordando exclusivamente estes aspectos formais por nós também observados, mas sem adentrar em maiores significações humanas do trecho:

Basta uma leitura mais em profundidade para se descobrirem nesta mostra da microestrutura do texto os elementos linguísticos e estilísticos comprovantes destas observações, dentre os quais: a simetria dos segmentos melódicos da frase, a traduzir o movimento rápido e diferentemente repetido de um cavalo empinando-se; a rima ou repetição rítmica de conjuntos fônicos (foge-refoge, estribo-estrepo-atrepo, relincho-pincho), a intensificar e localizar dentro da açõa geral as ações e os movimentos particulares; e, finalmente, o jogo verdadeiramente cinematográfico de aproximação e afastamento da imagem (objetiva zum / zoom), conseguido literariamente pelo antigo recurso da aliteração que, entretanto, aqui se atualiza na repetição léxica e na alternância de consoantes explosivas, surdas e sonoras, logo depois dos dois pontos, numa oração de efeitos admiráveis pela dinamização não somente da imagem visual, mas também da imagem sonora das patas no chão e do movimento seguido, repetido, do galope do cavalo (TELES, 2007, p. 69 – grifos do autor).

Os sons externos, portanto, invadem os sonhos de Nicolas, transformando os cavalos em representações simbólicas dos seus desejos sexuais reprimidos há longo tempo: como logo descobriremos, o tropeiro sofre os longuíssimos vinte dias de solidão conjugal.

A primeira impressão, portanto, que temos é que esse fluxo diz respeito apenas ao narrador de primeira pessoa que nos traz o discurso, engano proposital produzido pela perícia do autor Bernardo Élis. Como saberemos mais tarde, as mesmas sensações, os mesmos calores e desejos sexuais provenientes da percepção auditiva dos cavalos também estão na consciência da mulher que dorme no quarto ao lado do narrador.

Nicolas logo percebe que, no vizinho, há alguém também despertado, incomodado pelos sons sexuais dos animais: do lado de fora brota um gemido de gozo. E a luz da vela bruxuleava sensualmente, despertando imagens feminis na mente do narrador-protagonista: Mas no quarto vizinho eram sombras que dançavam: no teto pintou-se uma sombra: uma coxa? Molgou-se, fletiu-se, sumiu-se. Súbito, era um peito, (lá fora um hum) ou um ventre, tão livre, tão lento, eram lesmas, eram coxas, oh que coxas (ÉLIS, 1965, p. 96)!

O narrador logo se dá conta de quem está lá, a belíssima Luci, jovem conhecida sua da cidade em que também morava Nicolas. Bela e difamada. Quanto a Luci, o narrador utiliza de uma metáfora do campo semântico equino, a sua vulva é indomável, como indomável era o cavalo do seu sonho:

Também no quarto ao lado a chama como que parou. As sombras cochilavam, se aprumavam tesas. Talvez cochilasse por uns segundos, no quarto ao lado, a bela que ali dormia, jovem de vinte e poucos anos, casada, mas cujo marido andava ausente de suas carnes, comprando cereais pelas fazendas – latifúndios do município. Ali ao lado cochilava seus seios sem homem aquela bela mulher que eu conhecia da cidade em que eu morava e também ela. Bela mulher de indomável vulva, de quem, se dizia, outros homens provaram e gostaram e saíram contando pelas esquinas da cidade tão pequena quão bisbilhoteira (ÉLIS, 1965, p. 96-97).

Luci, configura-se como o cavalo indomável do sonho de Nicolas. É a força sensual que não pode ser controlada, domada, na sua plenitude selvagem e viva, sem arreios, freios ou sela e que derruba, inexoravelmente, o seu cavaleiro que acredita ter o domínio sobre tal potência.

Em outro sentido, podemos tomar Luci como o topos da mulher adúltera, neste caso, o cavaleiro derrubado é o próprio marido traído pela mulher cuja vulva não tem doma, isto é, cujos amores dão-se com quem ela quer, e não pode ser controlada pelas amarras da sociedade misógina onde vivem.

Dessa perspectiva é que podemos compreender o imenso uso do intertexto no conto bernardiano, desde Machado de Assis na estrutura: o narrador sisudo, casmurro, interessado numa possível infidelidade feminina; como também uma referência ao famosíssimo conto “Missa do Galo”, em que um adulto revisita sua adolescência tentando decifrar se as ações da dama com quem travou diálogo a sós se configuravam num jogo de sedução, da mesma forma que Nicolas não consegue decifrar se realmente Luci estava interessada nele.

Neste sentido, podemos reinterpretar todas as falas de Luci quando finalmente ela tem a oportunidade de comunicar-se com Nicolas. De seu lugar privilegiado no futuro em relação à diegese, o narrador comenta em relação ao seu próprio ponto de vista: Tal frase [de Luci] chegou ao meu ouvido num tom de voz diferente. No momento, percebi a diferença, mas não soube interpretá-lo. Hoje sei que era de carinho (ÉLIS, 1965, p. 103).

Luci teve um momento de empatia com Nicolas que, de todas as angústias do isolamento, confessa que o que mais lhe perturba é a ausência da esposa, mas o homem daquele momento histórico interpreta como lascívia

Há citações diretas de Edgar Allan Poe (never more, ÉLIS, 1965, p. 99), além dos versos de Frederico Garcia Lorca, que não só irrompem como citações, mas interferem diretamente no fluxo da consciência do narrador, característica de grande recorrência em nosso corpo literário, a exemplo de Machado de Assis:

No peito o coração batia acelerado e a emoção me punha as mãos frias, um tremor pelo corpo. Como estaria Luci dentro do quarto, deitada na cama nua ou nua debaixo das cobertas, ou vestida com alguma roupa muito fascinante? El anemidón de su enagua me sonaba com El oído, como una pieza de seda rasgada por dez cuchillos […]. Agora, por exemplo, parece que ouvi um ruído de passos. Não seria Luci? Também podia ser Ferapoldo chegando, ou a sogra. Ou eram passos na rua. Ora, na rua! Na rua, nem de dia passava gente, quanto mais de noite! “Aquella noche corrí/ El mejor de lós caminos,/ Montado em potra de nácar/ Sin bridas e sin estribos” (ÉLIS, 1965, p. 109-111).

Ora, qual seria a potranca, sem rédeas e sem estribos na qual cavalgará (ou pretende) Nicolas? É a bela Luci. A jovem é, ao mesmo tempo, a égua orgástica na cena de abertura, é o cavalo dos sonhos, é a imagem mental na mente de Nicolas, transfigurada na metáfora dos versos do poeta e dramaturgo espanhol: é nela que o narrador pretende, naquela noite, percorrer o melhor dos caminhos.

Percebemos sempre a transferência da mulher-sujeito para o lugar de mulher-besta, animalia desprovida de racionalidade e, por causa disto, movida pelos instintos libidinais que acometem todos os seres vivos. Ao macho da espécie humana, nessa formação ideológica

cristã patriarcal e misógina40, é facultado o direito de relacionar-se sexualmente com quantas

pessoas quiser; mas, à fêmea, este direito não é só negado, é proibido, e as mulheres que buscam gozar de seus próprios corpos são tratadas com opróbrio e ojeriza social, como a

própria Luci deste conto41, e, por este motivo, são tratadas como prisioneiras matrimoniais:

Por essa [por falarem que ela tivera relacionamentos extraconjugais] e por outras, a bela era agora quase prisioneira do marido que a deixara num quartinho de pensãozinha de interior. Para vigiá-la, para sujigá-la, para que suas carnes e seus suspiros não se repartissem, com ela vivia e dormia a mãe do marido, mulher magra e cheia de muitos olhos, óculos, binóculos e uma corneta acústica a fim de ampliar os ruídos e aguçar seus ouvidos não já bastante finos (ÉLIS, 1965, p. 97).

40 Neste sentido, o cristianismo legou à língua portuguesa uma de suas palavras mais feias: fornicação. 41 Bernardo Élis já trabalhara com temática semelhante, as personagens Zefa e Anastácia do romance O tronco

As questões referentes à vida conjugal de Luci, por sua vez, serão sempre um motivo de discussões e das piadas misóginas dos homens que estão morando na pensão durante esses vinte dias de isolamento, que se divertem gracejando sobre sua vida sexual:

A bela Luci, cuja beleza enchia a pensão e o ócio dos que ali se hospedavam. Era assim que todas as tardes para a pensão vinha o médico do lugarejo, homem jovem e cheio de basófias (sic), barbeado, de terno limpo, o automóvel inútil em cidade tão pequena, que ficava até noite alta buscando oportunidade de ver Luci e com ela falar. Também na pensão havia viajantes e choferes, todos famélicos de mulher, cujas atenções giravam eternamente em torno de Luci, de sua beleza, de sua vida conjuga. – Era ou não fiel ao marido […]? – Essa zinha morava na rua dr Ambrósio Lima, número 216, vizinha do Olinto Dias, que vocês todos conhecem e que é muito meu amigo. O Olinto viu e sabe de tudo. Ele viu o dr. Benedito Rodrigues do Carmo entrar na casa dela depois da meia-noite, quando o marido viajava […]. – Entre os braços não é vantagem, – gracejava o Joaquim. Quero ver é entre as pernas. – Que bruto! – pensava o jovem que comia com a cara metida (quase) no prato, como querendo ocultar o rosto da torpe contingência de ter que alimentar-se. Comia sem força de vontade, num desfastio, ouvindo aturdido a conversa. No fundo do ser, desejava Luci e a possuía a todo o instante na sua imaginação de tímido. Ouvia a conversa, senti-a profundamente e sonhava com Luci fugindo com ele num carro muito chique, morando juntos numa casinha com jardim na frente, cheia de pássaros e cortinas nas janelas. Quando Benevides dava seus suspiros ao ver Luci, o jovem mudava de cor: era como se o insultassem naquilo que ele possuía de mais sagrado (ÉLIS, 1965, p. 99-100).

O nosso entendimento é que este comportamento configura o patriarcalismo no Brasil, herdado do colonialismo português que se aclimatou na nossa terra, transfigurando-se, de maneira mais patente, nos nossos sertões mais longínquos e agrestes. É um machismo inerente à nossa formação ideológica, portanto. Ao homem é permitida a liberdade sexual, mesmo que esta liberdade implique em infidelidade conjugal – nenhum dos pretensos amantes de Luci (nada nunca comprovado) é criticado, ao contrário, são louvados –:

Esta atenção dispensada por Luci a mim, por via da sogra, criou em torno de minha pessoa uma espécie de resplandor. Passei a ser olhado com inveja. Odorico achava que eu já tivera relações com ela: – Você não me engana, seu barra. Esses tipos metidos a sisudos, como você, são danados (ÉLIS, 1965, p. 101)!

Os homens da pensão parecem sempre competir pelas atenções de Luci, como numa festividade que teria o sexo da bela jovem como prêmio. A mulher, que até este ponto não se pronuncia, existe como objeto, não como sujeito: prova inconteste da misoginia sertaneja (brasileira? Ocidental?). Porém, se por este prisma a mulher-objeto corresponde ao seu lugar- social de inferioridade dentro do patriarcalismo latifundiário, o conto, por outro, constrói-se como um contralugar: ora, os mesmos desejos, as mesmas paixões, a mesma sensualidade

avassaladora que impulsiona os sonhos e alimenta a insônia do narrador masculino são os mesmos que movem a desperta vizinha da porta ao lado. Se a persona social da mulher é de inferioridade e vista sempre como objeto sexual no nosso paternalismo agrário estrutural, sua persona interior iguala-se ao do homem: como seres humanos são ambos movidos por suas paixões, por seus desejos, por suas libidos.

Assim, partindo dos conceitos estabelecidos por Sigmund Freud da tripartição do sistema consciente-inconsciente em ego, id e superego, compreendemos os cavalos neste conto como metáfora do id humano, onde estão contidas as nossas paixões. Como animais puramente instintivos não haveria uma repressão interna aos seus desejos. Assim, como imago da libido das personagens, representam as pulsões sexuais das mesmas:

É fácil de ver que o ego é a parte do id que foi modificado por influência directa do mundo externo, por intermédio do perceptivo-consciente; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação superficial. Além disso, o ego procura trazer a influência do mundo externo para que actue sobre o id e suas tendências, e procura substituir pelo princípio da realidade o princípio do prazer que reina sem peias no id. No ego, a percepção desempenha o papel que no id cabe à pulsão. O ego representa aquilo a que podemos chamar a razão e o bom senso, em contraste com o id, que contém as paixões (FREUD, s.d., p. 25).

Por conseguinte, as percepções da realidade obtidas pelo ego de Nicolas – os sons equinos vindos de fora da pensão – transmutam-se, nos sonhos do narrador, numa representação de suas pulsões sexuais, suas saudades da companheira, ele, como todos os outros homens presentes na pensão, tão famélicos de mulher (ÉLIS, 1965, p. 99).

Essa utilização da metáfora que relaciona a pulsão sexual, o desejo da carne, a sensualidade do corpo, à fome, configura a mulher, o objeto deste desejo famélico, no pasto dos homens sertanejos, dos peões, tangerinos e almocreves presos naquela estalagem pela cheia das águas do rio.

Igualando as personagens, invertendo as posições ontológicas e estruturais entre as protagonistas, Nicolas pode ser visto também como um cavalo, o fato de passar a tarde inteira sonhando acordado, imaginando amores com Luci, iguala-o ao animal, nesta inversão, é Luci quem o cavalga, quem o controla, é ela quem deve abrir a porta para o relacionamento:

– ‘Cês já viram gente dormir andando? – interrogou o Odoreco. – Ah, isso é mentira. Já ouvi contar, mas não creio. – Pois eu já vi […]. – Não acredito. O único bicho que dorme caminhando, dizem, é o cavalo. Assim mesmo, olhe lá! Agora me chamaram. Tinha certeza que me haviam chamado pelo nome, claramente. Só poderia ser Luci (ÉLIS, 1965, p. 111 – grifos nossos).

Quando termina o diálogo dos jogadores de carteado no quarto do narrador- protagonista, o novo parágrafo abre-se, num novo monólogo interior, com o sucinto: agora me chamaram. Obviamente, somos remetidos à imaginação do narrador que talvez ouvira Luci chamando-o (nunca saberemos), numa clara demonstração da crença na onipotência do pensamento: ela o quer, o seu desejo alcança a mente de Nicolas.

A posição frasal da oração, no entanto, torna-a ambígua: sua mente pode ter criado uma ligação com o fato de dormir caminhando – sonhar acordado consigo mesmo –, é como se a conversa se referisse ao próprio Nicolas, e ele, inconscientemente, se desse conta do fato: é ele o cavalo.

A isso corresponde, novamente, à cena de abertura, o homem inveja a liberdade sexual dos animais, e o seu desejo era poder relacionar-se, com total liberdade e fúria orgásmica, com a potranca que era Luci. Igualam-se, desta feita, como animais movidos por suas glândulas, como bestas que se chamam, que se procuram. Ambos são cavalos, quebrando o discurso misógino do patriarcalismo não no nível do enunciado, mas no nível da estrutura que decai para um naturalismo cru, ao definir-se, o narrador, como homem ausente de mulher, aproximando-se a algumas passagens do conjunto textual produzido pelo autor maranhense

Aluízio Azevedo42:

Até sua voz era outra ao me dizer: – De primeiro ainda se podia dormir, mas agora… Nesse ponto, como sentisse dificuldade em expressar seu pensamento, interrompeu o sopro da voz e, derramando os olhos nos meus, perguntou: – Ouviu esta noite? Não obstante desconexa, apreendi tão profundamente a intenção da frase, captei-a com toda a minha carne e com todas as minhas glândulas de homem ausente de mulher. Foi de tal forma inteligível sua pergunta que senti medo. Me senti enleado por aquele olhar doce que, mais do que qualquer outra coisa, era um apelo, um convite, um chamado, primário grunhido de besta chamando besta, rudimentar gesto biológico, mudo e irracional, provindo dos sombrios mistérios da espécie (ÉLIS, 1965, p. 104 – grifos nossos).

Ao perceber que Luci também sente os mesmos desejos que ele, que ela também tem corpo, que tem glândulas, Nicolas supõe, no entanto, como representante deste patriarcalismo rural, imediatamente, que a revelação dos seus sufocantes desejos físicos é uma confissão, uma confissão de infidelidade: Sentia que não sabia o que fazer. Bem contava o Odoreco que ela era infiel (ÉLIS, 1965, p. 104).

Se por um lado, portanto, quando o discurso indireto do narrador sobre Luci reafirma a misoginia brasileira, inferiorizando-a como ser humano, igualando-a a uma égua que um

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