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A palavra cuidado origina-se do inglês care que significa carga. Para Tronto, “cuidar é ter algum tipo de responsabilidade e compromisso contínuos com alguém, com um grupo, instituição ou alguma coisa” (TRONTO, 1997, p. 187). O cuidado é percebido como um elemento relacional, supõe envolvimento emocional, gasto de energia, trabalho, ou até algum sacrifício em relação ao objeto ou pessoa que cuida.

O ato de cuidar faz parte da História da humanidade; o ser humano e os animais cuidam uns dos outros, aprendem e ensinam a cuidar. Aprendemos a cuidar com nossos familiares, amigos e observando o outro ao cuidar e ser cuidado; assim, é no convívio que aprendemos atitudes de cuidado conosco e com o outro.

Apesar da luta feminista pela desnaturalização dos papéis sociais e historicamente construídos, o cuidado ainda é visto como um atributo feminino e, em

algumas vezes, de forma indissociável (ex. cuidado maternal). Cuidar é comum a diversas culturas, mas sua forma de expressão varia, sendo a família um importante grupo em que se expressa o ato de cuidar.

A família é o primeiro núcleo do cuidado, contudo, dependendo da situação, não é capaz de fornecer sozinha a ajuda necessária para o indivíduo, pois alguns tipos de cuidados requerem uma habilitação diferenciada, às vezes, por ser a própria família o núcleo do problema (maus tratos, vulnerabilidade...). É o Estado que deve assumir os cuidados com esses indivíduos, nessas situações, em nossa sociedade.

As atividades de cuidado humano, apesar de relevantes e diversas, não conferem prestígio social. Algumas razões apontadas por Gomes (2009) referem- se ao fato de essas tarefas se relacionarem à afetividade, estarem associadas ao feminino e por não exigirem, a priori, atributos da razão ou o uso de tecnologias de vanguarda. No contexto familiar, a pessoa cuidadora geralmente é uma mulher, que, ao longo da História, aprendeu a cuidar com outras mulheres e reproduziu, durante gerações, esses valores culturais, que, com o decorrer do tempo, foram se naturalizando agregando-se a atividades domésticas, atribuídas ao feminino. Conforme Guimarães:

[...] a delineação entre esfera pública e privada, ocorrida na sociedade brasileira, do início do século XX não possibilitou que diferentes funções atribuídas a homens e mulheres fossem culturalmente valorizadas de forma semelhante... esfera pública associada aos homens, dotadas de valor e poder, enquanto as atividades exercidas por mulheres, como o cuidado, foram desvalorizadas (GUIMARÃES, 2010, p. 198).

Cuidar não é algo banal, dentre suas funções visa assegurar a vida e sua preservação, sendo consequentemente uma prática complexa, uma atividade de responsabilidade, pois objetiva suprir as necessidades do outro. Por apresentar tais características, o cuidado suscita questões de caráter moral e ético, o que conduz a diferentes posicionamentos.

Noddings (2003) afirma ser o cuidado uma relação dual de quem fornece e quem recebe. Nessa visão, cuidar é um ato de amor, enraizado na receptividade e

na sensibilidade, não existindo a preocupação com as divisões tradicionais de gênero que desvalorizam as atividades exercidas pelas mulheres. Dessa forma, o cuidado é entendido como uma atitude intrínseca ao ser humano, e não uma prática aprendida culturalmente. Para a autora, as pessoas cuidam de alguma coisa ou de alguém por quem tenham consideração ou afeição; caso o objeto ou o ser cuidado fique indiferente, não é possível se falar nessa relação, que só se estabelece se houver reciprocidade.

Essa concepção, denominada como abordagem feminina, foi criticada pela corrente feminista, que não considera o cuidado restrito ao dualismo ser cuidado(a) e cuidador(a), percebe, entretanto, a gama de relações sociais estabelecidas a partir do ato de cuidar, algo que não pode ser confiado somente ao instinto e à reciprocidade, pois, além da emoção, faz-se necessária a razão, para que o objetivo seja alcançado. Tronto (1997) argumenta que o cuidado, além da relação dual, requer compromisso e responsabilidade com o objeto a ser cuidado, distinguindo o

cuidado de e o cuidado com tendo por base os objetos do cuidado.

A autora coloca o “cuidado com” referindo-se a objetos menos concretos, caracterizando-o por uma forma mais geral de compromisso e o “cuidar de” como o envolvimento com um objeto específico, que é o centro dos cuidados. O cuidar, para Tronto (1997), configura-se em uma atividade regida pelo gênero; nesse sentido os papéis tradicionais em nossa sociedade determinam que os homens tenham “cuidado com” (provento do lar, com dinheiro, com a política...) e as mulheres “cuidado de” (filhos(as), alunos(as)...). A fronteira que separa essas definições é muito tênue, mas importante em uma sociedade que define os cuidados a partir do gênero.

A visão feminista é contrária à natureza feminina do cuidado e considera que esse ato envolve um conjunto de interações sociais que ultrapassam a relação cuidador(a) e ser cuidado(a). “As teóricas desse modelo acreditam que ninguém é totalmente autônomo, sendo todas as pessoas vulneráveis, e que todos necessitam de cuidados a cada dia. O ato de cuidar envolve questões de caráter moral que Tronto divide em três dimensões” (TRONTO, 1997, p. 191).

Primeiramente, é importante que exista capacidade de atenção daquele(a) que cuida para perceber as reais necessidades do outro(a), podendo ou não haver sintonia entre o que uma pessoa que está sendo cuidada pensa desejar e aquilo de que realmente necessita. Guimarães ressalta que:

[...] pensar nas necessidades alheias se configura como um reflexo das necessidades de quem pensa, se esta pessoa estivesse no lugar da outra. No entanto, um compromisso capaz de perceber as reais necessidades de quem precisa de cuidado não é simples e exige um bom autoconhecimento, a fim de que a pessoa cuidadora não projete as próprias necessidades como sendo as necessidades de quem está sendo cuidado (GUIMARÃES, 2010, p. 207).

A segunda questão moral, presente na relação de cuidar, diz respeito à

autoridade e autonomia. O cuidado como prática que visa satisfazer as

necessidades de outra pessoa, principalmente quando esta não está em relação de igualdade, ou não tem autonomia, pode gerar relações de autoridade por parte daquele(a) que cuida. “A prática do cuidado em relações de intensa dependência pode desconsiderar a individualidade da pessoa e projetar necessidades da cuidadora na pessoa cuidada” (GUIMARÃES, 2010, p. 208).

Por último, ao levarmos em conta as questões morais do cuidado, é importante salientar seu particularismo. Torna-se bastante difícil organizarmos princípios universais sobre o cuidado, pois está relacionado a situações, pessoas específicas e contextos diversos. “O cuidado, embora universal, deve ser visto com suas particularidades dentro de uma sociedade plural” (TRONTO, 1997, p. 197).

Por conseguinte, é importante salientar que a atividade cuidadora faz parte da experiência humana, é uma condição de vida, em que todos, em algum momento, necessitam de algum tipo de cuidado, e este não pode se vincular exclusivamente ao âmbito familiar, mas também ser encarado como uma questão social e política. O cuidar suscita uma rede de interdependência, seja com outras pessoas, com órgãos públicos, ou de assistência profissional privada, principalmente no que diz respeito ao cuidado de pessoas com deficiência, sobretudo aquelas que são incapazes de sobreviver sem o cuidado. Além de tais

aspectos, destaca-se o quanto o cuidado está vinculado à questão de gênero, construído e naturalizado social e historicamente como uma atividade feminina, doméstica e, por isso, pouco valorizada.

3 METODOLOGIA