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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 15 1 DOENÇAS CRÔNICAS, SAÚDE E SEUS DESDOBRAMENTOS

1.3 CUIDADOS PALIATIVOS, MORTE E O PROCESSO MORRER

A OMS (OMS, 2010) recentemente redefiniu os cuidados paliativos (CP) como:

[...] abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares, em face de uma doença terminal, através da prevenção e do alívio do sofrimento por meio da identificação precoce, avaliação rigorosa e tratamento da dor e de outros problemas, físicos, psicossociais e espirituais.

Os CP constituem, portanto, um campo interdisciplinar de cuidados totais, ativos e integrais, dispensados aos pacientes com doenças avançadas em fase terminal e aos seus familiares. E foi organizando-se na prática e na teoria no final dos anos 1960 (FLORIANI, SCHARAMM, 2007). E no Brasil, esta abordagem de cuidado, começou a ser inserida nos serviços no final dos anos 1990, o que confirma que se trata de uma prática bastante recente (PALMEIRA; SCORSOLINI-COMIN; PERES, 2011)

Os CP visam a oferecer um modo de morrer que acolha o paciente, seu cuidador e sua família, dando-lhes apoio para enfrentar este momento de suas vidas, estendendo o à fase de luto (FLORIANI, SCHARAMM, 2007). Sendo assim, não há espaço melhor para se discutir e colocar em prática que a APS, já que esta se propõe a ser e estar próxima ao paciente e sua família, e a manter relações estreitas com estes.

Os cuidados prestados dentro da abordagem CP, dentro da visão biopsicossocial, devem presar por dois princípios básicos a preservação da vida e o alívio do sofrimento. E a discussão e reflexão sob estes dois princípios básicos, que regem todo o cuidado em saúde, devem ser embasadas em ética e respeito ao paciente e sua família. Dessas reflexões elucidam diretrizes a serem seguidas dentro dos CP, a saber: promover o alívio da dor; conceber a morte como um

processo natural, não a antecipando ou postergando; garantir a integralidade do cuidado (abrangendo todos os cuidados físicos, psíquicos, espirituais e sociais à família e ao paciente); oferecer um suporte em serviços de maneira transversal que proporcione uma vida ativa e com qualidade de vida ao paciente e à sua família; e por fim iniciar quanto mais breve possível o cuidado (PIVA; CARVALHO, 2007).

Os estudos têm demonstrado que poder estar em casa e ser cuidado, traz inúmeros benefícios aos pacientes com doenças crônicas em estágio avançado. De acordo com Floriani e Scharamm (2007), comumente os pacientes costumam preferir ir para suas casas na fase terminal da doença, e este suporte domiciliar em CP exige uma rede de assistência disponível e flexível, que possa oferecer um controle efetivo dos sintomas mais estressores e uma morte digna e humanizada ao paciente, em um ambiente onde, dentro do permitido, suas preferências sejam escutadas. A presença do paciente crônico sem possibilidade de medidas curativas em casa requer da família e de seus cuidadores uma disposição ímpar e humanizada. Entende-se cuidador como o profissional da saúde (equipe referenciada) que atende àquela família ou a pessoa que realiza seus cuidados diariamente, que por vezes é alguém da própria família ou alguém contratado especificadamente para isso. Esses cuidados e consequente dedicação podem levar a conflitos de relações, desgastes psíquicos e até mesmo adoecimento destes indivíduos (KÜBLER ROSS, 1989). Cabe aos profissionais de cuidados paliativos acolher essas pessoas, estando disponível a ouvi-las e acalentá-las.

A família costuma ser a principal origem do cuidador e cuidar significa muito ônus a quem cuida, trazendo sobrecarga e muita dificuldade no dia a dia. Morrer e ser cuidado ao final da vida no lar, não é recorrente em nossa cultura, apesar do desejo de muitos pacientes, os cuidadores preferem que estes sejam remanejados à um hospital ou instituição de saúde (FLORIANI, 2004).

Com a evolução da doença os sintomas se agravam, o que aumenta a sobrecarga do cuidador que pode não ter estrutura para suprir a necessidade do paciente, assim sendo, o cuidado paliativo domiciliar implica desafios importantes, com consequências físicas e psicológicas significativas para a família e os cuidadores (FERREIRA; SOUZA; STUCHI, 2012).

É recorrente encontrar famílias e cuidadores com angústias e ansiedades exacerbadas que, a longo prazo, podem levar à doenças psíquicas com graves

consequências ou até mesmo a reclusão social e abandono de propósitos pessoais em detrimento das necessidades do doente. Outro sentimento comumente observado, nessas famílias, é o sentimento de culpa por desejar fazer outras atividades, mas impossibilitadas pela necessidade constante de cuidados dos doentes de sua responsabilidade. A ambivalência gerada pelo querer vivenciar realidades além da doença do outro e a empatia que tem por este, geram conflitos internos que poderão trazer sofrimento psíquico de relativa importância.

O cuidar no domicílio, com suas várias exigências como o manejo da dor, o suporte e até mesmo o luto ou aceitação da morte eminente, representa um grande desafio para doentes, famílias e profissionais (FERREIRA, SOUZA, STUCHI, 2012). Parece contraditório que alguém que vá passar por um processo tão doloroso e difícil como a morte fique hospitalizado, permanecendo isolado em seu leito, distante do que lhe é precioso, como a própria casa, seus objetos pessoais e seus familiares, visto que esses somente podem visitá-lo em dias e horários pré-estabelecidos pela instituição, e ainda que passe por cuidados prestados por profissionais de saúde que nesse momento, impõe limitações quanto à ampla demanda de necessidades destes pacientes, ficando meramente centrados em procedimentos técnicos (CARVALHO; MERIGHI, 2005).

Promover e permitir uma escuta ativa de necessidades sociais que vão além da doença de um paciente é uma das ações que a psicologia pode desenvolver dentro de uma equipe multiprofissional. A escuta ativa caracteriza-se não só por ouvir, mas também por dar direcionamento ao que é ouvido de maneira a promover qualidade de vida. O acolhimento de angústias e ansiedades, e a troca de informações também fazem parte de estratégias de intervenção, o que pode ser feito em visitas domiciliares ou até mesmo à beira de um leito de uma enfermaria (ANGERAMI, 1988).

Lidar com as limitações, a doença e a morte eminente do outro é tomar consciência da sua própria finitude e fragilidade, o que repercute muitas vezes em reflexões que podem levar à negação e ao afastamento. Cuidar do outro que representa essa reflexão, pode ser mais além, representa uma dor, não é tarefa fácil, nem para familiares e nem para profissionais.

É relevante trazer a discussão acerca do que o paciente elegível aos CP necessita, e estes devem reafirmar os princípios e diretrizes dessa abordagem já

citados. De acordo com Carlo e Queiroz (2007), os principais cuidados dispensados a estes pacientes são: ter controle da dor e de outros sintomas, ter controle sobre a própria vida, não ter seu sofrimento prolongado, não ser sobrecarga para a família e estreitar laços com familiares e pessoas significativas.

Os CP inserem-se em um conflituoso campo de intervenções, em meio à obstinação terapêutica, a eutanásia e o suicídio assistido, sendo que todas estas modalidades têm repercussão na qualidade de vida do paciente e de seu entorno, com inegáveis implicações éticas (FLORIANI; SCHRAMM, 2011).

Obstinação terapêutica caracteriza-se pelo uso continuado e persistente de medidas que sustentam a vida de pacientes com doenças avançadas, mantendo simplesmente os sistemas vitais biológicos, causando retardo da morte, configurando-se como futilidade médica, no qual as medidas usadas se mostram de pouca ou de nenhuma utilidade para o corpo como um todo (SCHNEIDERMAN; JECKER; JONSEN, 2011). A conduta de “obstinação terapêutica” não visa provocar dano, mas não tem nenhuma utilidade constatável clinicamente, ou seja, é em vão com relação aos objetivos almejados, deste modo deve-se considerar o paciente assistido como um todo (físico, psíquico, social e espiritual) e direcionar o cuidado à qualidade de vida (FLORIANI; SCHRAMM, 2011).

Os CP não se contrapõem à obstinação terapêutica, mas vêm trazer a esta reflexões acerca da bioética e a necessidade ou não de cuidados de alta complexidade. Antes de qualquer discussão, deve-se perguntar o que se configura como assistência ou não, o que é benefício ou malefício ao paciente. Em seguida, é preciso uma discussão bioética, que reflita sobre medidas terapêuticas e a garantia de um cuidado integral e humanizado, assim há possibilidade de uma boa morte e um luto adequado. Outro ponto de contenda é o de como estabelecer o juízo entre quando tomar a decisão de cessar as medidas terapêuticas, porque pode haver conflitos de interesse entre as partes envolvidas e ainda dificuldade de aceitação do processo de adoecimento tanto pelo paciente quanto pela sua família.

O indicado é que haja uma reflexão entre a garantia da integralidade e a humanização do cuidado proposto; estes em momento algum podem ser comprometidos. Elias (2001), traz uma discussão que corrobora com esta proposição: “se os problemas dos componentes individuais nos levam a esquecer os da pessoa que os integra, realmente desvalorizamos o que fazemos para os

próprios componentes” (pág.102). Portanto, esquecer-se da integralidade do

paciente e propor cuidados que inflijam à humanização dos cuidados fere princípios da bioética.

Outro aspecto importante é o do processo de luto, que para ser adequado (com sofrimento amenizado) deve-se manter o convívio familiar até a hora da despedida (KÜBLER-ROSS, 1991). O luto caracteriza-se por um processo interior de adequação a perda de algo ou alguém importante (KÜBLER-ROSS, 1989). Pode por vezes ser bem elaborado, ou não. Há indícios que é adequado, ou seja, bem elaborado, quando vivenciado em sua totalidade, estando a todo momento perto do ente que padece e por fim falece.

Kübler-Ross (1989) relata que existem cinco estágios pelos quais passam a família e o paciente frente à finitude da vida, e estes estágios, por vezes, não são bem delimitados e sequenciados. O primeiro estágio é o de negação e isolamento, nele há frente ao diagnóstico uma negação da existência deste e de falar sobre este. O segundo estágio é o da raiva, os sentimentos predominantes, nessa fase, são os de revolta, questionamento e projeção de ódio. Já o terceiro estágio é o da barganha, quando acontece uma negociação ou tentativa de conseguir ficar bem (cura), perante um propósito maior, com relatos de espiritualidade e crenças. O quarto estágio é o da depressão, quando o maior sentimento vivido é o da perda e suas consequências emocionais dolorosas. E por fim o quinto estágio, o da aceitação, o que predomina, nesta fase, são gestos de resignação perante a morte e de término de reflexões acerca de sua vida, como uma despedida. Em todos os momentos é importante que haja acompanhamento de profissionais da área de saúde proporcionando o caminhar por estes estágios e sua vivência adequada.

Segundo Pitta (1990) a dor, a doença e a morte foram aprisionadas em um consenso de costumes, que as colocam no espaço hospitalar sob códigos e formas de relação. Mas como elaborar a perda se não a vemos e sentimos ou passar pelo enlutamento? Antes a dor perante à morte era gritada, já na contemporaneidade impera outra lei, a de ser feliz sempre, e a morte é interditada, escondida nos hospitais, seus rituais comercializados e seu luto tratado (ARIÉS, 2003).

A sociedade preza por esconder suas angústias e dificuldades, e a maior delas é a morte. O que não é entendido deve-se esconder e recalcar, a morte seria algo doloroso demais para ser tratado abertamente e por todos, instaurando-se uma

cultura de não falar e deixar ser visto temas sobre a morte (ARIÉS, 2003). Ainda segundo Ariés (2003), a morte em si carrega o sentido de fracasso, e como tal não deve ser explicitado.

Porém para quem está frente à finitude de sua vida ou está em doença avançada, é significativo permitir a reflexão da repercussão disto para si e sua família. Têm-se que falar e ecoar sentimentos sobre a morte e seu processo. O doente crônico não tem a clássica definição e mais aceitável da morte, como sendo um acidente (algo que não deveria ocorrer, mas que acaba por acontecer) ele a vive, a repensa e a reflete em suas ações. A morte passa a ser algo presente em sua vida, e como isso é vivenciado defini a qualidade de vida deste doente. Cabe aos profissionais que acompanham o paciente crônico estarem atentos a este movimento psíquico e trazer qualidade de vida a este contexto e nesse momento.

Um aspecto fundamental diz respeito à necessidade de canais de comunicação abertos entre cuidadores, familiares e pacientes. É de extrema importância que todos conheçam a realidade da doença, o que ela pode ocasionar e ainda, como será feito o plano terapêutico (KÜBLER-ROSS, 1991). É necessário que as medidas de cuidados em saúde voltadas ao paciente crônico, em especial os CP, tenham também como objetivo, além dos tratamentos clínicos da doença, a rotina de uma vida normal e cotidiana, possibilitando ao paciente uma coerência e igualdade entre suas necessidades pessoais e de ser humano, com as necessidades da enfermidade que o aflige. Mantendo suas relações sociais e familiares, e permitindo reflexões a todos os envolvidos, assim a terminalidade da vida e suas consequências ecoa e se resolve nos diferentes contextos envolvidos (KÜBLER-ROSS, 1989). E não há espaço melhor que a rede de atenção primária, que geograficamente e afetivamente está próxima ao paciente, para vivenciar essa etapa de sua vida.

O que diferencia a visão dos profissionais de saúde sobre a morte é ter esta como companheira de trabalho (KOVÁCS, 2005). As doenças crônicas com pobres prognósticos e o avançar do processo de adoecimento, o sofrimento da família e o próprio padecer do paciente, a todo o momento, trazem a reflexão da morte aos profissionais de saúde. E são poucos os momentos que permitem ao profissional refletir e expressar seus sentimentos perante a perda eminente ou real do paciente que há tempos acompanhou. Kovacs (2005), em seu estudo para educação da

morte, relata que os profissionais de saúde, na sua formação, deveriam ter a possibilidade de uma educação para a morte, e preparar-se para lidar com a morte daqueles que estão sob seus cuidados.

1.4 FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS PARA A APS E PARA OS CUIDADOS