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4 AS CASAS DE CULTO AFRO-BRASILEIROS DE PERNAMBUCO

4.5 O CULTO À IEMANJÁ

Na pesquisa arqueológica é comum que a materialidade identificada no registro seja a única fonte de dados para compreensão das práticas religiosas do passado humano. Porém, nesta pesquisa além dos dados in situ, há informações que auxiliam na compreensão do ritual.

Diante de todas essas informações à respeito do surgimento dos cultos de matriz africana, o Candomblé mais especificamente, as suas crenças, divindades e funcionamento dos

ritos, pode-se então partir para a compreensão das práticas ritualísticas em ambientes marinhos por meio da Orixá que representa, dentre outras coisas, o mar e a conexão dos grupos afro- brasileiros às suas raízes Ultramarinas, Iemanjá (Figura 18).

Figura 18 - Representações em madeira e aquarela de Iemanjá e suas indumentárias

Fonte: CARYBÉ (1968; 1993).

As oferendas são uma das formas que os grupos Candomblé utilizam para comungar com os seus deuses. Iemanjá é uma das Orixás que recebe esse tipo de devoção, porém diferentemente dos demais Orixás, suas ofertas são destinadas ao ambiente marítimo.

Iemanjá deriva de Yèyé omo ejá, que significa “Mãe cujos filhos são peixe” e tem como origem a Nação Iorubá Egbá, onde ainda existe um rio denominado Yemonjá. Ela seria filha de Olóòkun, um deus (em Benim) ou deusa (em Ifé) do mar (VERGER, 1981).

Inicialmente, Iemanjá era cultuada pelos povos Ebás, que se situavam na região das cidades de Ifé e Ibadan, expandindo a partir do século XIX para Abeocutá e demais povoações de etnia Iorubá, nas proximidades do rio Ogum, sendo associada a esse Orixá (VALLADO, 2010).

O culto de Iemanjá realizado à beira do rio Ogum em Abeocutá na África, transferiu- se no Brasil para o mar. No continente de origem, o mar era o reino mítico de Olocum, literalmente o Dono ou a Dona do Mar, divindade considerada pai ou mãe de Iemanjá. Os orixás que na África estavam associados a um acidente geográfico específico, especialmente aos rios, perderam no Brasil tal associação e tiveram o culto generalizado, Iemanjá perdeu o rio Ogum e ganhou o mar. A nova geografia reorganizou o panteão; a nova cultura rearranjou os patronatos (VALLADO, 2010, p. 02).

Existem diversos cultos e diversas Iemanjás, a depender do local de culto e da Nação que a trouxe a eles. Dando como alguns exemplos Verger (1981) fala que na Bahia dizem haver sete Iemanjás: Iemowô, Iamassê, Eua (Yewa), Olossá, Iemanjá Ogunté, e Iemanjá Assabá. Cada qual possuindo uma origem específica.

Diante dessas nomenclaturas, se observou que o autor fala de uma das interfaces de Iemanjá que se encontra nos arrecifes, chamada de Iemanjá Ogunté. Ela seria a mulher de Ogum, deus da guerra e teria também atributos guerreiros, como a presença de um facão, sendo severa e violenta, detestando pato e gostando de carneiro (VERGER, 1981).

Seu assentamento é realizado sobre pedras marinhas e conchas, sob um recipiente de porcelana azul (Figura 19).Já suas oferendas vão ser de carneiro, pato e pratos preparados à base de milho branco, azeite, sal e cebola (VERGER, 1981).

Em Pernambuco, Iemanjá é tida como um dos Orixás mais velhos, estando dentre as mais cultuadas no estado, ao lado de Xangô. Isso provavelmente se deve à relação do Estado com o mar e seus rios, sendo sua capital entrecortada por estes corpos d’água (LODY, 2006).

As cores de Iemanjá são o branco e o azul claro, já seus fiéis utilizam indumentárias nessas colorações e colares de contas azuis. Já suas oferendas são: carneiro mocho e capado; galinha; patos; guiné (chamada de etu); mungunzá (doce feito à base de milho); e arroz. Seus objetos prediletos são o espelho (ou abebé), sabonetes, pentes, estrelas-do-mar, conchas marinhas e representações de peixes (RIBEIRO, 2014).

Figura 19 - Indumentária e Assentamento da Orixá Iemanjá.

Fonte: Acervo do Museu da Abolição (2019).

Lody (2006) ao falar dessa Orixá, afirma que são realizadas oferendas chamadas Presente de Iemanjá ou Panela de Iemanjá. O autor buscou informações em um dos Terreiros mais tradicionais da cidade de Recife, em Pernambuco, o Terreiro Obá Ogunté (ou Sítio de Pai Adão), que tem como regente a Orixá Iemanjá.

Nesse Terreiro, Iemanjá é o símbolo da maternidade, fertilidade, tem domínio sobre as águas, em especial as marinhas e, por conta disso, seus cultos são nestes ambientes no dia 8 de

dezembro, data coincidente das comemorações à santa católica Nossa Senhora da Conceição (LODY, 2006).

As oferendas que se destinam à Iemanjá são preparadas no interior de uma vasilha de cerâmica (Figura 20), contendo vários objetos, tais como: bilhetes, perfumes, fitas, talcos, bebidas, sabonetes, alimentos que vieram dos Pejis (pata, carneiro, galinha, milho cozido). Também é possível que se tenham até algumas bijuterias ou joias de ouro (LODY, 2006).

Além dessas oferendas, a panela também recebe flore brancas e algumas tinturadas de azul, pois são essas as cores que identificam Iemanjá. Ainda tecidos especiais como cetim e brocado enfeitam a panela, que assume um tom de escultura comunal, em que todos participaram acrescentando suas ofertas ou sugerindo detalhes na decoração (LODY, 2006, p. 98).

Figura 20 - Panela de Iemanjá do Terreiro Ilê Asé Sango Ayrá Ibonã, Cabo, PE.

Fonte: Mattheus Belo (2016).

Lody (2006) afirma que o costume de realizar esse tipo de oferenda à Orixá se iniciou no Terreiro Obá Ogunté pelo seu líder, o Babalorixá Pai Adão, que se propagou por meio de seus iniciados que passaram a ter aptidão para abrir as suas próprias Casas de Culto, realizando as oferendas logo após a realizada pelo Terreiro de Pai Adão.

A oferenda é levada por um ou mais homens iniciados na religião, sendo conduzidas à nado ou por meio de embarcações para que possam ser depositadas. Sendo assim a oferenda é depositada na maré alta, nas ondas ou na confluência do rio com o mar (LODY, 2006).

Um dos simbolismos que se dá à oferenda é o da água como o caminho de chegada dos diversos grupos étnicos africanos, havendo então um sentimento de nostalgia com o retorno à África. Dessa forma, entende-se que “Iemanjá está em todo o mar, é o próprio mar, ou qualquer elemento que habite ou esteja no mar, convivendo com a vida marinha de peixes, conchas, plantas e sereias” (LODY, 2006, p. 98).

A panela, ao tocar as águas marinhas, já pertence à Orixá, e os membros da religião ficam no aguardo de seus pedidos sejam atendidos. Uma vez cumprida essa etapa, os membros festejam (LODY, 2006).

Diante dessas informações é observado que há toda uma intrínseca relação entre a migração forçada dos primeiros africanos para trabalhos nas Américas e a manutenção de suas crenças. Formaram-se cultos dos mais diversos grupos étnicos e as práticas religiosas foram quando não disfarçadas com sincretismos às crenças cristãs, transmitidas de forma oral através das gerações.

É por meio da oralidade que os africanos e seus descendentes puderam manter a memória de suas origens, seus ritos, mitos e demais demonstrações materiais e imateriais de suas culturas. Neste contexto, faz-se necessário entender o papel da memória como ferramenta de manutenção dos grupos e dos indivíduos religiosos, bem como questões que dizem respeito aos conceitos de ritual, rito de passagem. Também é preciso compreender a rede de significados que envolve as relações humanas com o mar.