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Cultura e autonomia do indivíduo: Bildung e Halbildung no capitalismo tardio

Parte I. Diagnóstico de tempo e a tentativa de formulação de um novo modelo: o ensaio

Capítulo 3. Cultura e autonomia do indivíduo: Bildung e Halbildung no capitalismo tardio

Halbildung no capitalismo tardio industrial

Para compreender as mudanças de diagnóstico de tempo presente, é possível seguir a pista deixada pela noção de cultura em “Crítica cultural e sociedade” (1949) a respeito da posição da cultura com relação à sociedade, Adorno retorna a esse tema posteriormente, mas a partir de um outro aspecto do mesmo fenômeno, a saber, do “lado subjetivo” da recepção da cultura: da relação entre formação (Bildung) e quasiformação (Halbildung) em “Teoria da quasiformação”.1 Escrito em 1959 para ser pronunciado no Deutschen Soziologentag em maio do mesmo ano, evento regularmente promovido pela Sociedade Alemã para a Sociologia2, este texto parece ser central para compreender a mudança do diagnóstico de tempo presente efetuada ao longo da década de 1950.

É notável o esforço de Adorno em descrever, logo na abertura, os traços da questão que pretende tratar, a saber, a formação e sua por assim dizer "contraparte", a quasiformação.

1 Cf. ADORNO, Th. W. Gesselschaftstheorie und Kulturkritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1975, p.

66 et seq. O termo Halbbildung foi traduzido no Brasil principalmente por "teoria da semiformação". A dificuldade maior está no termo alemão "halb", pois pode-se dizer que o termo Bildung já encontrou certa consolidação ao ser vertido por formação. Mas “halb” pode ser traduzido por "o meio", ou "metade", ou ainda, tal como se adotou no Brasil, por "semi". Mas a questão central, o que inclui também a referência à interpretação do texto que se defende nesta tese, é que o termo halb possui também algumas nuances que permitem mais uma variação na tradução. Além da ideia de "metade" ou "semi", halb é também empregado como "algo que não é, o que deveria ser" (etwas ist nichts so, wie es sein soll). Esse sentido se torna claro ao se remeter mais diretamente ao texto de Adorno, quando este apresenta a ideia de Halbbildung. Como será visto, a Halbbildung não significa e nem pode significar uma "formação pela metade", uma "semiformação", tal como se faltasse uma parte para completar a formação ou que esta prosseguisse até certo ponto e depois seria interrompida. Pelo contrário, trata- se de outro processo, diferente daquele da Bildung, da formação, tal como pensado no início da ascensão burguesa, mas que se relaciona ao mesmo tempo com este processo. De modo geral e ainda um tanto abstrato – somente a apresentação do texto de Adorno pode sustentar a interpretação que oferecemos aqui desse termo –, o termo Halbbildung em Adorno indica que a "cultura" (burguesa), a partir da qual se constituía a "formação", foi reorganizada de outra forma, de tal maneira a fixar e anestesiar, por assim dizer, os potenciais emancipatórios que a ideia de formação carregava consigo no momento da ascensão da classe burguesa. Por isso mesmo ela não é mais a formação. Não se trata de "percorrer um caminho pela metade" ou de interromper o processo de formação lá onde ele ainda não se completou, mas sim trata-se de oferecer algo no lugar da formação, como se fosse essa. Nesse sentido, Seguindo essa interpretação do texto esboçada acima, é proposto aqui a tradução de

halb pelo termo quasi, advindo do latim. A intenção é evitar a conotação que a palavra "quase" no português

carrega consigo, a saber, que, do mesmo modo que o termo "semi", o "quase" pode referir-se também a um processo que não alcançou seu fim esperado, algo que iria ocorrer, mas não ocorreu completamente. Já o termo

quasi do latim resguarda consigo a conotação que gostaríamos de indicar, a ideia de "como se fosse algo", "da

mesma forma que". Por essas razões é proposto aqui a tradução de Halbbildug por quasiformação, isto é, uma “formação” que ocupa o lugar da formação burguesa tradicional, que se relaciona com a cultura burguesa, mas não é constituída exatamente por essa cultura.

O modo mais adequado para entrar na questão, naquele momento, parece ter sido a apresentação das tentativas de solução daquilo que ficou conhecido na esfera pública alemã como "crise da formação" [Bildungskrise], geralmente confundida com a “crise da educação”, a crise na Erziehung.Para Adorno, aquilo que se manifesta como a crise da formação não está diretamente ligado a este campo da educação, ao campo destinado somente à Erziehung, embora se relacione obviamente com aquela. Não se trata de um "mero objeto da disciplina técnica pedagógica"3, a crise no campo educacional é indício de uma crise muito maior e que atinge outros aspectos sociais.

Ao mesmo tempo, não se trata também de restringir essa crise à um objeto da "sociologia de hifens".4 Os sintomas de colapso da formação não se apresentam somente com relação àqueles que, de saída, estão na base da pirâmide social e, portanto, não possuiriam tempo necessário para o "cultivo do espírito" e do contato mais constante e próximo com a cultura. Para Adorno, os sintomas da “crise” se apresentam também naqueles que também são considerados "formados" [Gebildeten].5 Ou seja, trata-se de investigar alguns aspectos daquilo que é conhecido como formação, muito próximo do sentido que a tradição alemã ofereceu no decorrer de sua história6, mas que no momento presente apresenta-se em crise.

Por isso, os sintomas não se remetem diretamente às "insuficiências do sistema e dos métodos da educação".7 Esses sintomas não decorrem somente das carências específicas desse sistema, o que poderia indicar que somente reformas pedagógicas, "que são indispensáveis"8, seriam suficientes para resolver a questão. Mais que isso, tomar meramente a reforma pedagógica como única forma de tratar da crise da formação, tendo em vista somente o aspecto pedagógico institucional, é possível que se contribua ainda mais para essa crise, pois estaria em mira apenas a relação dinâmica ensino-aprendizagem no interior do sistema educacional. A formação extrapola o objeto imediato da pedagogia. Um dos principais sintomas dessa crise consistiria exatamente na fragmentação do problema, do objeto, a tal ponto de não mais encontrar uma solução para um problema mais amplo, que se estende por

3 ADORNO, op. cit., 1975, p. 66. 4

Ibidem. Adorno se utiliza dessa terminologia, "sociologia de hífens" ou "filosofia de hífens" de modo pejorativo, como se a junção de nomes por hífens tratasse de circunscrever o conceito da coisa, mas sem o trabalho do conceito, sem a reflexão sobre ele. Também se refere, obviamente, à “filologia de hífens” heideggeriana.

5

Ibidem.

6 Cf. BOLLENBECK, G. Bildung und Kultur. Glanz und Elend eines deutschen Deutungsmusters. Insel Verlag,

1994. O livro traz um ótimo mapeamento dos termos formação e cultura mediante o significado, isso faz com que a pesquisa de Bollenbeck retorne até o momento do estabelecimento da língua alemã com Lutero.

7

ADORNO, op. cit., 1975, p. 66.

toda sociedade. Para Adorno, não se pode esquecer da força da "realidade extra pedagógica"9, que exerce um poder gigantesco sobre todos, inclusive sobre a própria instituição escolar. A crise não se refere especificamente ao "sistema" de educação, mas também e talvez principalmente àqueles que "devem ser educados".10

O problema da tentativa de isolamento dessa questão a um campo específico do saber não se restringe somente à pedagogia. Do mesmo modo, "reflexões e pesquisas"11 isoladas, as quais tendem a limitar um aspecto da realidade social onde se teria algum efeito sobre a crise da formação, que influenciaria positiva ou negativamente essa crise, não podem fornecer uma resposta satisfatória. Nem mesmo as pesquisas que visam apresentar a atualidade e os vários aspectos da relação entre a formação e a sociedade. O principal motivo, segundo Adorno, é que essas pesquisas tomariam o próprio conceito de formação como um dado, como se tal conceito correspondesse a um processo que se apresenta distintamente claro para todos. A categoria da formação estaria "definida antecipadamente"12, de modo que não haveria qualquer questionamento entre a formação, sua história e aquilo que ela corresponde na sociedade.

Para Adorno, pelo contrário, o conceito de formação e o processo social a que se refere não estão imediatamente claros. Mesmo quando o tema da formação é tratado nos "momentos parciais sistematizados no interior do todo social”13, tal como a ideia de "formação" voltada especificamente para uma determinada área do saber, o que é conhecido como "qualificação" ou "especialização", essemodo de compreender não consegue dar conta da crise da formação. Porque não se trata de ter uma boa ou má Ausbildung, não se trata especificamente de se qualificar melhor ou não para uma atividade determinada. O erro de uma tal investigação está em que esses momentos parciais do todo social deveriam ser compreendidos em seu movimento específico antes mesmo de tomar o conceito de formação como um dado a partir do qual pudesse ser pensado nos termos de uma boa ou má especialização. Mais precisamente: o diagnóstico é que tanto o conceito de formação não foi trabalhado e problematizado suficientemente, quanto o pensar sobre as áreas "parciais do todo social" também não foram devidamente trabalhadas e problematizadas no sentido de compreender o caráter da crise da formação.

9 Ibidem. 10 Ibidem. 11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Ibidem.

A questão central se impõe. Consiste em compreender a partir das regras do movimento da sociedade e, por sua vez, a partir do conceito de formação, como que se sedimenta uma espécie de "espírito objetivo negativo"14, um espírito que se contrapõe à formação e, ao mesmo tempo, se relaciona com ela. Esse “espírito” é, para Adorno, a expressão da “crise da formação”. Tomado no seu sentido atual, a formação se transformou, historicamente, no interior do movimento social, em outra coisa, em algo que se refere a ela e, ao mesmo tempo, não é ela mesma, porque nega seus pressupostos:

"Ela [a formação] se tornou quasiformação socializada, a onipotência do espírito alienado. Para gênese e sentido, ela [a quasiformação] não precede a formação, mas se segue dela. Tudo fica aprisionado no interior das malhas da socialização, nada mais tem natureza disforme; aquela rusticidade, a antiga não-verdade, mantêm-se em vida e se reproduz continuamente. Suma da autodeterminação de uma consciência exteriorizada, ela [a quasiformação] se agarra de modo indispensável em elementos culturais aprovados. Mas, sob seu encanto, estes elementos gravitam [em torno dela] como algo podre na direção da barbárie".15

A quasiformação se segue da formação. Ela não é uma etapa anterior para a formação, mas se coloca como se fosse esta. Não é etapa que foi interrompida por algo exterior. A quasiformação é a "formação" que o espírito alienado impôs no decorrer da história. Mais do que isso, ao contrário do sentido inicial que a formação burguesa carregava consigo, sentido este que estava limitado à classe que a corresponde, a quasiformação foi "socializada", isto é, não somente se tornou possível ter acesso a ela praticamente todas as pessoas que vivem nas sociedades capitalistas avançadas, como também e principalmente ela se tornou um dos elementos constituintes da sociedade atual.

Este é um dos motivos pelos quais o termo Halbbildung não pode ser compreendido como "semiformação", tal como este texto é costumeiramente traduzido para o português16. A quasiformação é outra forma de organizar e se relacionar com a "cultura", a qual, em outro momento histórico, esteve relacionada à formação burguesa. A quasiformação não precede à formação, ela não é um momento desse processo, não é etapa, mas sim outra coisa, algo que se sucedeu à formação e que no estado atual tende a substituir no lugar antes ocupado pela formação.

14 Ibidem.

15

Ibidem.

A tese central posta aqui é a de que ocorreu uma socialização total da sociedade, mas não no sentido de permitir a emancipação.17 Não se trata de uma suplantação da dominação de modo a permitir às mulheres e aos homens o acesso mais igualitário e livre possível aos produtos sociais. O que foi "socializado" é a dominação e o bloqueio do surgimento da autonomia; a quasiformação foi socializada, mesmo para aqueles que são “mandantes”, mesmo para os capitalistas. Por outro lado, trata-se de indicar também que a “socialização” significa que nada mais se passa fora do interior de suas "malhas”; todo elemento exterior, que era considerado "natural”, pertencente à "natureza" que constituía os indivíduos foi alijado na atual sociedade. Nada há que possa causar surpresa por ainda pertencer a uma "natureza disforme". A quasiformação, para Adorno, como sintoma, é a "suma" [Inbegriff] da autodeterminação de uma consciência exteriorizada, uma consciência que não se reconhece mais a si mesma. Essa consciência é produto do "espírito alienado de si", as relações sociais.

Há ainda algo peculiar à quasiformação: ela se agarra a "elementos culturais aprovados"18 no interior das "malhas da socialização", ou seja, o tema da quasiformação também se relaciona com a indústria cultural. O termo "elemento" descrito na citação acima, aponta de saída para a intenção de Adorno ao citá-lo: não se trata da "cultura", mas de certos “elementos” daquilo que foi outrora a cultura burguesa.19 Esses elementos estão dissociados da cultura no interior da qual eles surgiram, isto é, eles são oferecidos sem o contexto social a partir do qual possuíam seu sentido. Era essa “cultura” que fornecia a "vida" desses "elementos"; a cultura burguesa era o ambiente, por assim dizer, onde esses elementos culturais floresciam. Em suma, a cultura burguesa era a matriz da formação. Por isso que Adorno utiliza a figura da putrefação, da morte, pois esses elementos culturais reapresentados pela indústria cultural, sem a cultura a qual faziam parte, estão mortos. Sua “vida” foi extirpada no momento em que a formação passou a ser quasiformação, ou seja, no momento em que os elementos culturais foram extirpados da cultura a qual faziam parte e retrabalhados no interior da indústria cultural de acordo com a "demanda", de acordo com a exigência do lucro. Por isso, apesar de ter sido “socializado” mediante a indústria cultural, esses elementos

17 Como visto anteriormente, a emancipação significa, no interior da tradição da Teoria Crítica, a mudança

estrutural da sociedade no sentido de realizar os melhores potenciais disponíveis. Uma das consequências seria a socialização da sociedade no sentido de permitir a todos os integrantes um acesso aos produtos dessa sociedade de modo igualitário. De modo irônico, Adorno afirma que a sociedade foi socializada no sentido que a dominação social, a "integração total" está presente para todas as classes, para todas as pessoas.

18 Ibidem.

19Em A mudança estrutura da esfera pública Habermas apresenta o momento da ascensão da cultura burguesa a

partir da noção de esfera pública e como esta mudança marca também a passagem para a sociedade moderna. Cf. HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

estão muito distantes dos potenciais que eles apresentaram no passado, de forma que não seria possível, por sua vez, reproduzir o projeto contido na formação sem mais.

Não obstante toda informação e esclarecimento [Aufklärung]20 que se difunde nas condições sociais "atuais", isto é, não obstante a produção de conhecimento e desenvolvimento das mais diferentes esferas do saber, a quasiformação se tornou “forma dominante da consciência atual", o que faz necessário produzir uma "teoria abrangente"21 sobre ela. Essa teoria deveria procurar compreender qual é o papel da cultura no interior do processo social em que essa mesma cultura está mediada pela indústria cultural, ou seja, compreender a partir do ponto de vista da produção de bens culturais como que se produz, do ponto de vista "subjetivo", a constituição da consciência individual nessas condições: a produção da quasiformação. É nesse ponto que o ensaio sobre a quasiformação está relacionado diretamente com a noção de cultura desenvolvida na parte anterior. Adorno questiona de saída o significado da noção de cultura como algo separado da sociedade, de tal modo a correlacionar a organização desta com a própria noção de cultura.

Sobre a noção de cultura, Adorno afirma que ela não pode ser considerada, de saída, "sacrossanta", principalmente depois que os "hábitos [Gepflogenheiten] da quasiformação" foram instaurados.22 Mais do que isso, a cultura não pode ser encarada como "sacrossanta" porque a própria formação tradicional, a formação burguesa, nada mais era do que a cultura tomada a partir do "lado da apropriação subjetiva";23 ela pertence ao universo de compreensão do sujeito. Uma possível teoria da quasiformação também pertenceria a esse lado da apropriação subjetiva. É nesse sentido que a cultura, inicialmente, pode ser tratada a partir de um duplo caráter. Por um lado, ela se remete à sociedade; ela é algo que decorre da sociedade e de sua organização e história próprias. Por outro, e ao mesmo tempo, ela perfaz, nas condições atuais, a mediação entre a sociedade e a quasiformação.

Em se tratando das condições atuais, na Alemanha do final da década de 1950, essa mediação entre a sociedade e a quasiformação estabelecida pela cultura está circunscrita à noção de cultura como "cultura do espírito" [Geisteskultur]. Essa noção foi posta em oposição à práxis social diretamente envolvida com a reprodução material da vida. Nessa oposição, cultura (do espírito) e práxis social, "espelha-se" [spiegelt sich]24, afirma Adorno, algo que

não ocorreu historicamente e que pode fornecer o caminho para a compreensão da dominação

20 Ibidem. 21 Ibidem. 22 Ibidem. 23 Ibidem.

massiva da quasiformação: a emancipação completa [volle Emanzipation] da burguesia25. Se a emancipação da classe burguesa tivesse ocorrida de fato e se tivesse sido realizado tudo aquilo que esta classe prometia, principalmente com relação à realização de seus ideais, até em seu último termo, não haveria provavelmente essa tendência de separar a cultura como algo que pertence ao espírito e práxis social propriamente dita.

Adorno interpreta essa tendência de compreensão da cultura como algo puramente “espiritual” – tal como esta apareceu em “Crítica cultural e sociedade” –, é resultado da história da burguesia. Esta teria se emancipado "até um certo momento no tempo" [einem

Zeitpunkt] e ela, enquanto classe, não foi estendida "igualmente para toda humanidade".26 A burguesia não cumpriu aquilo que pretendia e apregoava ao suplantar a ordem social anterior, o feudalismo, prometendo estender seus direitos para toda a humanidade. Se no momento de sua sublevação revolucionária ela se via como aquela classe que estaria imbuída de mudar a ordem social anterior, tal como se ela mesma fosse a humanidade como um todo, seu penhor revolucionário prosseguiu até o momento no qual ela atingiu o poder e suplantou de fato a ordem feudal. A partir desse momento ela teria se desviado de sua meta. Não levou até o fim seus princípios os quais a distinguiam da ordem anterior. A igualdade e a liberdade foram "bandeiras" que sociedade burguesa conseguiu realizar parcialmente, justamente porque ela não permitiu expandir para toda a sociedade esses ideais. Por isso a "humanidade não cabe" na definição de classe burguesa.27 Uma mostra desse limite é o fracasso dos movimentos revolucionários nos países ocidentais onde se quiseram "efetivar o conceito de cultura como liberdade" e acabou por se "repelir" [zurückwerfen] as ideias de liberdade e igualdade, tornando estas muitas vezes "tabus".28

Mesmo no campo filosófico essa tendência de “espiritualização” da cultura se expressa de modo contumaz. Na linguagem da "filosofia desgastada", pode se dizer que a cultura se tornou um "valor" [Wert]29, sendo mais um indício de que a classe burguesa não conseguiu estabelecer concretamente seus ideais. A cultura espiritualizada se torna "valor" em detrimento da práxis social. Esse processo de espiritualização, para Adorno, confirma sua impotência enquanto mera cultura, subsistindo às cegas tanto em relação à "vida real das

25 Adorno utiliza aqui a noção de emancipação como mudança profunda da organização social. Esse é um dos

motivos pelos quais a tradução de Mündigkeit não corresponde sintaticamente ao termo “emancipação” tal como descrito aqui neste contexto. A maioridade [Mündigkeit] está relacionada à noção de autonomia individual, a capacidade de pensar por si e fazer experiências tal como Adorno defende na década de 1960. Cf. o último capítulo dessa tese.

26 Ibidem. 27 Ibidem. 28

Ibidem.

pessoas", como também no que diz respeito às "relações que estão em movimento" [bewegenden Verhältnissen] presentes na sociedade.30 A cultura, tal como foi visto na parte anterior, compreendida dessa maneira, torna-se desligada da realidade social, da produção e reprodução da sociedade, enfim, desligada da práxis diária e da produção material da vida. Frente a esse processo de espiritualização, a cultura não permanece "indiferente", afirma Adorno. Nela se transformam e se amortizam os elementos que a fizeram pertencer de modo imediato a algo humano; ela se reifica. Adorno cita nessa ocasião uma observação de Max Frisch a respeito de que houve com as pessoas que se dedicavam a cultivar os chamados "bens culturais" [Kulturgütern] e que foram capazes, ao mesmo tempo, de executar as tantas atrocidades do nacional-socialismo. Tal acontecimento não indica somente o "índex de uma