• Nenhum resultado encontrado

A cultura consumista como cultura de massa invalida qualquer outro estilo de vida. Caso não haja interesse ou possibilidade de consumo o indivíduo é desconsiderado, tem como destino o fracasso e a humilhação, perde sua relevância social. Esta é constantemente posta à prova em admissão de empregos, acesso a países e até mesmo na busca de parceiros. O sujeito precisa ter qualidades que o torne uma mercadoria selecionável no mercado no qual ele está se ofertando.

Qualidades essas que só são adquiridas e/ou desenvolvidas a partir do coercitivo consumo da renda em boas instituições educacionais, experiências culturais, desenvolvimento pessoal, etc. Assim, o indivíduo deve se autofabricar com ferramentas adquiridas via consumo para se mostrar um concorrente apto e atraente para o cargo almejado, prometendo contemplar ou superar os desejos daquele que o escolheu. Em suma, transforma-se ele mesmo em mercadoria vendável.

Para ser notado, o sujeito precisa não estar apenas a par do que acontece, mas à frente. Estar a par não inclui o destaque. A promessa do diferencial é a que rege a escolha consumidor. Se estar a par dilui a mercadoria no mercado, estar atrás te elimina dele. O consumidor falho – o pobre sem renda ou o estrangeiro que não se adequa à cultura local – não é bem-vindo. Ele não traz nenhuma inovação positiva ou qualquer perspectiva de contribuição. Seria melhor se ele nem existisse e é assim que ele deve se sentir. A possibilidade de inadequação é o maior medo do integrante que alimenta o mercado sociedade de consumidores. Como não há sentimento de pertença com a comunidade, o sujeito se sente inseguro e acaba por buscar no consumo um escape e a solução para o vazio de sua existência. Ele vê a adesão à tendência ao consumismo como forma de ser parte de algo. Comprar seria um ritual de exorcismo dos demônios interiores, das inseguranças e medos alimentados pela cultura consumista. Seja no design, nas previsões políticas ou do clima, estar à frente é o que permite a sensação de adequação por um tempo limitado, tendo fim, é claro, na próxima novidade. Para que a sensação de segurança tenha continuidade é preciso se renovar de acordo com a nova onda que será proposta pelo mercado.

Como trabalhado anteriormente, essa proposta consiste em um leque de opções que falseiam a liberdade de escolha. Há um espectro pré-selecionado do que vai ser ofertado. Essas opções são necessárias para dar a sensação de poder ao consumidor. A variedade de produtos é a sedução para o ato vital da sociedade de consumo. Ao escolher algo dessa pré-seleção o consumidor acha que está agindo de acordo com seu desejo, como se fosseum ato de autoafirmação de uma escolha que tenha ele mesmo como prioridade. Na verdade, este consumidor não se enquadraem um cenário planificado, prescrito, ordenado, restritivo, completamente vinculado e rotineiro como era na sociedade de produtores. Porém, está fazendo exatamente

aquilo ditado por umasociedade de mercado: consumir dentro dos padrões ofertados. Esse sujeito Bauman chama de Homo eligens.

A liberdade oferecida na sociedade de consumidores está estritamente relacionada com a individualização da responsabilidade antes social. De acordo com Bauman (2007, p. 118):

[...] agora cabe aos indivíduos estabelecer os limites de sua responsabilidade por outros seres humanos e traçar a linha que divide o plausível do implausível nas intervenções morais – assim como decidir até onde estão prontos para ir ao sacrificarem seu próprio bem-estar para cumprir as responsabilidades morais de outros.

Contudo, a responsabilidade recaída sobre indivíduo pode proporcionar tanto o maior gozo como o maior sofrimento. As novas tendências com infinitos recomeços e as diversas identidades possíveis também geram insegurança. Afinal, “para cada escolha, uma renúncia”. A aflição está na possibilidade da má escolha. Caso a escolha feita não seja a ideal, a responsabilidade reincide inteiramente sobre o indivíduo gerando nele sentimento de culpa. A incerteza do futuro é tanto a oportunidade de regeneração como a da humilhação. É responsabilidade do indivíduo o tipo de vida que ele deseja levar. Ele tem o que merece. As soluções estão postas, basta o indivíduo ter a capacidade de escolher a melhor para si.

É possível entender a incerteza como um motor da sociedade de consumidores. O medo do fracasso e a necessidade de estar à frente das tendências coage o indivíduo a tomar decisões de maneira imediatista, impensada. A ansiedade o domina. Parece sempre estar faltando algo ou que algum imprevisto vai surgir. A contínua preocupação demanda do indivíduo máxima atenção para responder com rapidez a qualquer movimentação. De acordo com Robert Sapolsky23, esse estado mental ativa áreas do corpo que começam a agir em estresse. Utilizamos essa opção de funcionamento quando nos vemos em perigo e é preciso agir rapidamente. Este é um mecanismo de curto prazo que o corpo humano dá prioridade para as atividades que vão garantir um melhor desempenho na luta pela sobrevivência como secreção de hormônios e aumento da pressão para o sangue chegar mais rápido aos músculos

23 SAPOLSKY, Robert. Why zebras don’t get ulcers? The Acclaimed Guide to Stress, Stress-Related

em detrimento de atividades de mais longo prazo que são desligadas como crescimento, reprodução de tecidos, digestão e reprodução biológica. Logo, o estresse e ansiedade que nos é imposto constantemente é uma das causas de deterioração de funções de longo prazo também no corpo humano.

Nicole Aubert24 descreve esse estado como “estado de emergência”. Nele algumas tarefas são qualificadas como urgentes pelo indivíduo de forma que ao realizá-las no tempo premeditado, gera-se uma sensação de alívio.

Dificilmente haveria outra proeza capaz de oferecer um alívio mais eficaz (ainda que de curta duração) para o complexo de inadequação do que um esforço extraordinariamente intenso empreendido com e sob a influência de um estado de emergência. (BAUMAN, 2007, p. 122).

A tarefa em si é o de menos, a relevância que ela tem diz respeito a intensidade, a sensação de controle do tempo e de concretização – tão em falta na sociedade líquida25 - que ficam após a realização. É também pelo estado de emergência que preenchemos os buracos vazios em nossa agenda que trazem à tona questionamentos que nos desconfortam. Quanto menos pensamos, melhor.

Nem o aprendizado nem o esquecimento podem escapar do ímpeto da “tirania do momento” (tudo é urgente para que não se reflita a respeito), auxiliada e instigada pelo contínuo estado de emergência e do tempo dissipados numa série de “novos começos” heterogêneos e aparentemente (embora de forma enganosa) desconectados. A vida de consumo não pode ser outra coisa senão uma vida de aprendizado rápido, mas também precisa ser uma vida de esquecimento veloz. (BAUMAN, 2008, p. 124).

Tudo deve ser resolvido “pra ontem”. E tudo o que foi resolvido deve ser esquecido porque novas emergências aparecem a todo instante. Não é cabível parar porque o movimento é o único capaz de trazer a satisfação. Ela sempre está por vir. Mas nunca chega. Caso chegue e se estabeleça, o motor da incerteza que aquece o mercado para. O alcance da satisfação permanente é letal ao sistema mercadológico. Para evitar que isso aconteça, a cultura consumista insinua que aquele que encerrou suas buscas falhou nelas ou está entediado. Essa falta de movimento não é bem vista

24 AUBERT, NICOLE, Le culte de l`urgence, p.62-3 apud Bauman, 2007, p. 46.

25 Liquidez é um termo cunhado por Bauman para se referenciar à volatilidade e inconsistência da atual sociedade de consumo que se move pela rapidez, exageros e descartes.

na sociedade porque sem estar a par ou a frente, o consumidor se torna obsoleto no mercado. Ele deve se renovar em vez de permanecer com seus bens e estilo de vida que logo serão superados. É preciso se desfazer rapidamente daquilo que não faz parte do espectro pré-selecionado pela moda do momento, por mais que sua vida útil material não tenha acabado. A síndrome consumista é feita de excessos, desperdícios e produção de lixo.

Assim funciona a tática de greenwashing. Como trabalhado em sua tese de pós-graduação, Érico Luciano Pagotto (2013, p. 44) da Universidade de São Paulo (USP) explica que esse conceito vem da junção das palavras “green + wash”, uma lavagem verde ou um banho de tinta verde. A técnica se refere ao discurso ecológico como forma de marketing para promover uma imagem ambiental positiva sem haver medidas comprovadamente sustentáveis na produção geral daquele produto. São utilizados selos verdes, cores terrosas, estampas com animais ou paisagens da natureza, palavras que remetam a situações ecologicamente sustentáveis como “floresta”, “vegetal” ou “orgânico”. Contudo, sabemos que significante e significado não precisam guardar uma relação26. Outra tática de greenwashing é a adoção de políticas de recolha de produtos antigos para reciclagem em troca de desconto na compra do próximo produto. Pagotto aponta que o objetivo é:

“[...] reduzir a experiência de consumo à simples troca de bens materiais, desconectando-a, a ótica do consumidor, de todos os processos e impactos (sociais, econômicos, ambientais, etc) da produção de bens, como deliberadamente fazê-lo crer que os impactos deste consumo seriam menores ou sequer existiriam”. (PAGOTTO, 2013, p. 51)

Assim, não há conflito ético perceptível no consumo do produto. O consumidor se sente satisfeito e sem culpa. Satisfeito por ter o último produto lançado no mercado e sem culpa porque ao adquiri-lo contribuiu da “melhor forma” para a questão ambiental. A utilização do greenwashing estimula o desligamento do consumidor com o produto antigo para que se consuma o novo que aparenta ter mais vantagens.

26 Ver mais em: PAGOTTO, Érico Luciano. Greenwashing: os conflitos éticos da propaganda ambiental. Dissertação (pós-graduação em Mudanças Sociais e Participação Política) - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, 2013.

Sem laços que o prenda, o consumidor retoma sua busca pela felicidade sem marcas do passado. Os sucessivos recomeços comprimem no presente a eternidade, pois a cada momento há infinitas possibilidades a serem exploradas. A ideia de eternidade então se descola do âmbito divino, do que é inalcançável pelo homem e se torna parte da rotina de todo ser integrante da sociedade de consumo. Todos os indivíduos agora vivem na eternidade do momento. Que é seguido por outro momento. São consecutivos pontos de eternidades que tornam os momentos cada vez mais breves. Os comprimidos da eternidade podem ser entendidos pelo conceito de tempo “pontilhista”27. Nesse tempo cada instante é considerado um ponto específico e inexplorado, a possibilidade de ser nada ou tudo. São pontos soltos que não formam uma linha, muito menos um plano, não há ordem causal. Qualquer rumo pode ser tomado. Não há mecanismo ou desejo de previsibilidade, mas uma eterna flutuação entre momentos fragmentados fazendo com que as relações ocorram de forma episódica. O que aconteceu deve ser rapidamente esquecido para que o novo tome forma na mesma velocidade. O presente não carrega o passado e não deve se ater ao futuro. As pontes são destruídas com o objetivo de atingir o prazer idealizado porque o vínculo pode trazer desconforto. Um erro do passado, medo da consequência futura. Quanto mais independente de situações, mais próxima está a satisfação, pois reduz-se a responsabilidade a eventos que não são de interesse central do indivíduo.

A facilidade da desconexão significa tornar indolor a mesma. Para evitar o desconforto são eliminados fatores da experiência física. É mais fácil gastar dinheiro que não vemos sair da nossa carteira, nos afastarmos de uma pessoa bloqueando ou deletando de nossas redes sociais da internet, comprar algo sem cruzar olhares com um vendedor e comer sem dividir a mesa nos obrigando a puxar qualquer assunto. A máxima da era da comunicação é não precisar interagir integralmente, escolher como, quando e para quem se expor. O consumo permite esse comportamento porque é uma atividade solitária e pontual. Mesmo quando é realizado em grupo, não exige vínculos duradouros e o sujeito pode se retirar quando bem entender. Bauman apelida essa prática de consumo grupal por “comunidade de guarda-casacos”. Seria como a reunião de espectadores que deixam suas capas no guarda-casacos antes de assistir

27 Termo proposto por Michel Maffesoli em L’instant eternal. Le retour du tragique dans les sociétés

alguma apresentação artística. Eles vivem uma experiência momentânea de comunidade ao se confinarem em um espaço a fim de consumir o bem ou serviço comum aos seus gostos. A vantagem é que, além de poder sair quando quiser, ao fim da apresentação todos podem ir embora para onde for. Não é necessário estabelecer vínculos ou acordos de direções.

Documentos relacionados