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CAPÍTULO II- Enquadramento teórica

2. Cultura de escola

A escola é hoje um dos principais veículos de que a sociedade se serve para o processo de socialização dos indivíduos, para a transmissão dos valores culturais que sustentam a sociedade. Deste modo, "os sistemas educativos acabam por ilustrar os valores que orientam a sociedade e que esta quer transmitir" (Carvalho, 2006:1). É neste sentido que se pode falar, globalmente, de

uma cultura escolar5.

A cultura escolarviria, por seu turno, a fundamentar a especificidade da cultura de escola,

que se tornou mais visível e compreensível, sobretudo a partir de meados do século XX, com o contributo dos estudos e investigações acerca da cultura organizacional, com a descentralização e

maior preocupação com o nível meso de intervenção e da construção de uma pedagogia centrada

na escola-organização. Tais estudos e análise vieram, no fundo, trazer mais visibilidade para uma nova dimensão epistemológica de análise centrada nas contextualizações e idiossincrasias locais, aliando assim à cultura escolar o reconhecimento da cultura de escola (Morgado & Pacheco, 2009). A cultura escolar encerra assim em si mesma um conjunto de valores, cognições, vivências, técnicas, processos e estruturas administrativas, políticas e mesmo psicológicas, que identificando a organização a distingue de todas as outras, mesmo que similares e comungando de um processo global comum.

Deste modo, e como refere Carvalho (2006, p.2), a cultura apresenta-se desde logo como suporte crucial para a criação de uma:

5 Quando se fala de cultura escolar estamos a referir-nos à cultura específica da escola, em geral, enquanto organização, enquanto veículo privilegiado

de ensinamento e socialização. Por seu lado a cultura de escola é mais restrita, já que se refere mais concretamente ao conjunto de valores, entendimentos, práticas e normas que constituem a cultura de cada escola ou subsistema educativo em particular. Daí a importância desta distinção levada a cabo por Morgado e Pacheco (2009).

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linguagem e categorias conceptuais comuns, que permitam aos membros comunicar eficazmente, como também na definição de critérios de inclusão ou de exclusão do grupo e no estabelecimento de relações de intimidade e amizade. Além disso, é fulcral nas questões de poder e estatuto no seu interior […] e no modo de interpretar e atribuir significado aos acontecimentos.

Esta linguagem e categorias concetuais encerram em si mesmas não só todo um conjunto de valores, como também uma narrativa simbólica que fundamenta o entendimento de determinadas práticas e lógicas, conferindo-lhes critérios de inclusão ou exclusão, sustentando interpretações e entendimentos.

Este parece ser, aliás, o entendimento de Morgado e Pacheco (2010, p.1) quando afirmam que falar de cultura escolar é "admitir a existência de discursos, processos e práticas de regulação escolares, dimensionados em função de referentes técnicos largamente partilhados…", o que acaba por ancorar uma "identidade difícil de dissociar de uma cultura escolar específica reveladora, não só dos valores, crenças e ideologias que a organização escolar partilha, mas também das

dinâmicas, dos modos de acção e das práticas que se desenvolvem no seu interior" (Idem:p.2).

Esta partilha comum de valores, crenças e ideologias acaba por verificar-se não só globalmente, meso, por parte dos professores em geral, na comunhão de uma cultura escolar, como também, e

talvez sobretudo, a nível mais contextualizado, micro, por parte dos professores de uma escola, ou

de um subsistema educativo, gerando assim específicos sentimentos de pertença e promovendo uma certa unidade a nível simbólico (Morgado & Pacheco, 2010).

Esta narrativa cheia de simbologias próprias, contextualizadas, acaba por estender-se não só

aos valores e crenças, mas também à perceção e interpretação de atitudes6 e práticas,

nomeadamente a prática curricular, o que, de acordo com Morgado e Pacheco nos permite igualmente falar de cultura curricular, já que o currículo, sendo um elo de ligação geracional (Madeleine Grumet, 1988), consolida tal ligação numa contextualização histórica, social e autobiográfica (Pinar, 2007). Por isso o currículo assume-se desde logo como fator central na identificação e caraterização da cultura escolar, já que se apresenta como processo interpessoal em que participam os diversos agentes educativos, para além de expressar igualmente a sua dimensão política, colaborativa, de empreendimento social e enquanto sistema articulado da prática de tomada de decisões (Pacheco, 2006).

Deste modo, e na medida em que se consubstancializa "numa série de regularidades,

tradições, discursos e práticas ritualizadas, que governam a organização e a prática do ensino e da

aprendizagem, a cultura escolar é algo que perdura ao longo do tempo e que contribui para a

6Recorda-se, a propósito que uma atitude é fundamentada psicologicamente por um valor e por uma crença, que motivam a atitude de adesão ou

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construção de uma identidade própria " (Morgado & Pacheco, 2000, p.9) por parte de cada escola, acabando por fundamentar grande parte do que nela se passa, vive e constrói, num sistema de padrões de significado.

Fundamentando, por isso, toda uma simbologia, todo um sistema interpretativo e simbólico, a cultura de escola acaba naturalmente por influenciar as práticas e formas de leitura da indisciplina, o que faz com que alguns autores (Garcia & Santos, 2006; Damke, 2009) considerem este fenómeno como uma construção da escola, em parte, da perceção social dos professores resultante das elaborações construídas no âmbito da cultura escolar. De acordo com os referidos autores "a cultura da escola compreende as formas como a disciplina é pensada e construída, bem como são elaborados os esquemas interpretativos e as práticas em relação aos eventos de indisciplina" (Garcia & Santos, 2006, p. 204).

Na linha de pensamento dos referidos autores, então o entendimento e perceção dos comportamentos de indisciplina estariam amplamente ancorados na cultura de escola, nas simbologias nela desenvolvida, nas narrativas microssistemicamente construídas. Neste sentido poderíamos então afirmar que a cultura de escola constitui uma importante referência para a leitura e interpretação das expressões de indisciplina e respetivas intencionalidades, podendo mesmo dentro desse âmbito ser pensada não apenas como resistência a regras e limites, mas igualmente como resistência cultural (Garcia, 2009).

Esta importância da cultura de escola na perceção da indisciplina é igualmente sublinhada por Damke (2009, p. 6113), para quem este fenómeno acaba por fundamentar a perceção social dos docentes a tal respeito, já que "as expressões de indisciplina reconhecidas pelos professores numa escola podem não representar indisciplina na outra, devido ao contexto cultural do próprio ambiente". Por conseguinte e perante tal entendimento, não nos parece difícil revelar que a perceção social dos professores acerca do fenómeno da indisciplina escolar pode ser muitas vezes o reflexo de microssistemas culturais, de culturas de escola, que expressam uma construção social, ou seja, mostram que "os professores podem aprender a pensar a indisciplina a partir de relações mantidas com a cultura de uma determinada instituição" (Ibidem).

Esta determinação é igualmente partilhada, entre outros, por Frago (1995), para quem a cultura de escola é algo de intrínseco e específico da própria instituição, sustentando todo um conjunto de sinergias que desenvolvem a dinâmica do funcionamento da escola, as suas ideias, hábitos e representações, que os professores, na sua interação institucional do quotidiano carregam e compartilham e comungam, alicerçando assim um modo específico e comum de pensar, de

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interpretarem e perceberem a indisciplina na escola, implicando, assim, influências sobre as suas práticas" (Damke, 2009, p. 6113), de entre as quais, acrescentaríamos nós, avulta também o desenvolvimento curricular.

Constituindo um macrossistema, a educação e o sistema educativo, foram sendo equacionadas cada vez mais num conjunto complexo de variáveis que têm exigido posturas e análises epistemológicas cada vez mais rigorosas e adequadas a tal complexidade. Apesar de até há

relativamente pouco tempo a análise ter incidido sobre o nível macro, ela tem-se voltado

progressivamente para o nível meso e micro, numa preocupação do que carateriza a escola

enquanto sistema e organização e do que a especifica contextualizadamente na operacionalização da sua práxis, no desenvolvimento e consolidação das forças sustentadoras da sua prática educativa.

Esta viragem fez com que progressivamente se fosse deixando para plano secundário a perspetiva funcionalista que encarava a escola como mero veículo transmissor da cultura exterior, da sociedade em que está inserida, para passar a ser encarada como agente construtor de uma cultura própria, de sinergias e simbologias específicas, com identidade própria, dotada de autonomia, capaz de direcionar a sua ação para o aluno na sua dimensão total (Leite, 2003), mas

numa perspetiva micro, contextualizada, construtora de uma práxis curricular, onde o currículo se

configura como um projeto-em-construção (Pacheco & Morgado, 2003) e cuja organização e funcionamento "envolve os distintos protagonistas educativos, em especial professores e alunos, de modo que a acção educativa considere os desígnios nacionais estabelecidos para a formação, mediante a escolha de opções gerais, sempre adequadas a cada contexto específico" (Morgado & Pacheco, 2010), a cada cultura de escola.

Em suma, a escola enquanto organização, enquanto instituição, é detentora de uma cultura

escolar própria, que a distingue de tantas e tantas outras organizações. Mas cada escola é uma escola, num território educativo específico, com interações, simbologias e narrativas características, construtora de uma cultura específica que sustenta e orienta as práticas e as interações entre os agentes educativos que a compõem.