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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 O CONCEITO DE CULTURA E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO DE

2.1.3 Cultura segundo Denys Cuche (1999)

De acordo com Cuche, a noção de cultura faz parte de uma reflexão imanente às ciências sociais, necessária para se pensar na humanidade com foco na unidade dentro de sua própria diversidade, ultrapassando a concepção biológica. As diferenças entre povos vêm sendo compreendidas através dessa noção de cultura, visto que justificar com base em raças não é mais plausível.

O sociológo afirma que o processo de hominização do homem se fez passando de uma adaptação genética ao meio ambiente natural para uma adaptação de teor cultural, processo iniciado há, aproximadamente, quinze milhões de anos. Até que a evolução humana alcançasse o status homo sapiens sapiens, houve uma progressiva redução dos instintos, que foram substituídos pela cultura. Hoje a cultura permite a adaptação ao seu meio, como também possibilita que o homem adapte o meio às suas necessidades. Assim, o autor observa que a cultura viabiliza a transformação da natureza e a compreensão do comportamento humano, que não é natural.

Cuche (1999) frisa que o contato entre culturas ocorre em modalidades que variam, com resultados completamente distintos. O conceito de cultura sofreu uma profunda renovação a partir das pesquisas acerca de aculturação, que aparece como uma das modalidades convencionais da evolução cultural de cada sociedade. Explica que uma sociedade complexa possui diferentes grupos sociais, organizados hierarquicamente, o que se configura, por sua vez, em uma separação em hierarquias culturais. Segue ressaltando que a cultura proveniente do grupo dominante não determina o caráter dos grupos sociais dominados, os quais possuem uma cultura autônoma e resistente. Há forte conexão entre defender a autonomia cultural e preservar a identidade coletiva, visto que o estudo da identidade cultural de um determinado grupo só pode ser realizado em uma concepção ampla, compreendendo as suas relações com os grupos sociais vizinhos.

De acordo com Cuche (1999), a reflexão sobre o homem e a sociedade ao longo do século XIX, por meio de um procedimento positivo, levou à criação das disciplinas científicas sociologia e etnologia. Esta assume o papel de buscar respostas objetivas às questões relativas à diversidade humana. Partindo da premissa da unidade do homem, herança da filosofia iluminista, os fundadores da etnologia viam como desafio pensar na diversidade dentro da unidade. O sociólogo salienta que os estudos etnológicos seguiram dois rumos explorados simultaneamente: o primeiro com foco na unidade e

menor atenção temporariamente à diversidade, seguindo um esquema evolucionista; o segundo ocupava-se por mostrar que a diversidade não contradiz a unidade fundamental da humanidade. O autor afirma que o conceito de cultura surge neste contexto como importante instrumento para refletir sobre as possíveis respostas a essas questões. Os fundadores da etnologia e filósofos buscariam descrever o que é cultura conforme ela aparecia nas sociedades humanas.

Cuche (1999) lembra que a etnologia iniciante não se isentou de implicações ideológicas ou ainda julgamentos de valor. Porém, como se tratava de uma disciplina em formação, foi possível fazer uma reflexão que excluísse o debate envolvendo a antítese cultura x civilização, conservando certa autonomia epistemológica. O conceito de cultura foi introduzido nos países onde nascia a etnologia com desigual sucesso. No entanto, afirma que não houve entendimento entre as diferentes “escolas” quanto a saber se era necessário utilizar o termo cultura, em sua forma singular, ou culturas, de forma plural, considerando um conceito universalista ou particularista.

Em conformidade com Laraia, Cuche (1999) atribui ao antropólogo britânico Edward Burnett Tylor o pioneirismo ao precisar etnologicamente o conceito atual de cultura, definindo cultura e civilização como sendo um conjunto de crenças, a moral, os conhecimentos, direitos, artes, costumes e demais habillidades que constituem um complexo de hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Cuche chama atenção para o fato de esta conceituação ser objetiva e descritiva, dispensando pretenções normativas. Todavia, esta descrição apresenta a cultura conforme a totalidade da vida social do homem, em uma dimensão coletiva que dispensa a perspectiva restritiva. A aquisição da cultura é inconsciente, independente de herança biológica.

O antropólogo teuto-americano Franz Boas é citado por Cuche (1999) como sendo o primeiro a realizar pesquisas in situ a fim de observar culturas primitivas. Neste sentido, Boas é considerado o inventor da etnografia. Em suas obras, buscava pensar a diferença, entendendo que a essencial diferença entre humanos se concentrava no aspecto cultural, e não no racial. Segundo Cuche, o antropólogo via o relativismo cultural como um princípio metodológico, que implicava uma compreensão relativista de cultura. Considerava que cada cultura era única, representando uma totalidade singular, buscando pesquisar o que fazia a sua unidade. Dessa forma, uma prática particular somente poderia ser explicada dentro de um contexto cultural. Segundo o autor, um aspecto do relativismo cultural defendido por Boas, que poderia ser

considerado um pricípio ético, enfatiza o respeito e a tolerância entre culturas diferentes, conferindo-lhes o direito à proteção uma vez que estivessem ameaçadas.

O etnocentrismo é abordado em Cuche (1999) como criação do sociólogo americano William Graham Sumner, que define o termo como a visão das coisas em que o grupo de que fazemos parte é o centro de tudo e os demais grupos são avaliados e medidos em comparação com o nosso próprio grupo. Segue afirmando que o etnocentrismo desenvolve o orgulho e a vaidade em torno de um grupo, estimulando um sentimento de superioridade que leva à exaltação de si em detrimento dos grupos distintos. Quanto aos costumes, um grupo tende a aceitar apenas os seus hábitos como válidos, menosprezando os costumes alheios, o que pode ser observado em atitudes intolerantes de teor religioso, político ou cultural.

Houve uma série de críticas às ações da antropologia cultural americana, afirma Cuche (1999). De modo mais extremo, apresentavam-se as teses dos culturalistas em tom reducionista, quase caricatural, especialmente na França. O autor afirma que o culturalismo era tratado com um aspecto globalizante, visando a um sistema teórico unificado, quando o ideal e justo seria falar dos culturalismos. Complementa dizendo que a antropologia cultural sempre recebeu críticas internas. Progressivamente, novas propostas teóricas sobre o culturalismo foram lançadas, de modo a corrigir as propostas anteriores, sendo possível observar considerável evolução no pensamento dos pesquisadores durante suas carreiras.

Cuche (1999) aponta que os culturalistas eram constantemente acusados de essencialismo ou substanticialismo – ideologia que entende a cultura enquanto uma realidade em si. No entanto, tal crítica cabia somente ao antropólogo americano Alfred Kroeber, que compreendia a cultura como um nível autônomo do que é real, seguindo suas próprias leis, com ligação ao domínio superorgânico. O antropólogo alegava que a cultura possuía uma existência própria, que escapa do controle dos indivíduos e independe de suas ações.

Quanto aos antropólogos pertencentes à escola cultura e personalidade7, a maioria se posicionou contra a reificação da cultura, considerada um risco, afirma o autor. Frisa que a antropóloga americana Margareth Mead entendia a cultura como uma

7 Cuche (1999) apresenta esta corrente teórica americana, que contava com pesquisadores abertos à interdisciplinaridade e preocupados em considerar a psicologia científica e a psicanálise quanto às suas aquisições. Com uma visão oposta à de Freud, entendiam que a origem cultural poderia explicar os complexos da libido. Questionavam os mecanismos de transformações que faziam com que indivíduos de mesma natureza adquirissem personalidades distintas, acreditando que a pluralidade de personalidades era correspondente à pluralidade de culturas.

abstração, ou seja, uma ilusão. Os indivíduos, por sua vez, existiriam e seriam os responsáveis por criar, transmitir e transformar a cultura. Segundo esta perspectiva, o antropólogo não seria capaz de observar um campo de cultura, mas sim de estudar comportamentos individuais. Por fim, Cuche lembra que os culturalistas próximos a Mead buscavam então entender as culturas a partir das ações dos indivíduos, que seriam a própria cultura, de acordo com a antropóloga.