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Currículos e Identidades na EJA: relação possível e necessária

No documento PROEJA: entre currículos e identidades (páginas 83-90)

3 CURRÍCULOS E IDENTIDADES: discussões iniciais

3.3 Currículos e Identidades na EJA: relação possível e necessária

No contexto da EJA o papel do currículo no que se refere a meta de desenvolver a formação plena dos educandos dessa modalidade de ensino fica ainda mais evidente. Desta forma, na elaboração e materialização do currículo do PROEJA, não se pode desconsiderar que os educandos jovens e adultos, devido ao seu próprio percurso de vida, repleto de experiências adquiridas em seu contexto social, familiar e, em muitos casos, laborais, apresentam uma diversidade de conhecimentos prévios e cada qual possui um repertório social, cognoscitivo e cultural distintos, que marcam sua identidade e que jamais podem ser colocadas a parte do processo de ensino e aprendizagem.

Diante dessa realidade, fortalece-se a necessidade de discussões a respeito de como o currículo escolar se encontra organizado para trabalhar com sujeitos jovens e adultos que já trazem consigo marcas culturais tão fortes, legadas pelo longo processo de formação de suas identidades, desencadeando, assim, a necessidade de sua relação com este currículo instituído

e legitimado nas escolas. Ora, tem-se reconhecido que os saberes e poderes circulam tacitamente nos espaços pedagógicos e são legitimados pelos currículos.

Nesse campo de discussões, pode-se evidenciar os já citados estudos de Apple (1989; 2006), que ao analisar o currículo como conhecimento instituído e legitimado como oficial nas escolas, este discute a ligação entre poder e cultura, explorando como a distribuição cultural e o poder econômico agem entrelaçados ao que é considerado como conhecimento escolar.

Percebe-se os significados das análises dessa ótica que envolve os discursos que são de fato legitimados pelo currículo oficial. Gimeno Sacristan (2000), importante autor de diferentes estudos sobre currículo, já citado anteriormente, compreende que a política é responsável por selecionar, ordenar e mudar o currículo, apontando o importante significado de se perceber sobre o quê e quem estabelece interesses pelo contexto educacional, já que se sabe que ele passa por instâncias administrativas que o regulam e o condicionam.

Quando o educador utiliza o currículo atendendo apenas as prescrições oficiais, está homogeneizando a aprendizagem. Desenvolvendo sua prática dessa forma, tem-se como resultado uma aprendizagem que deixa de ser uma sistematização de experiências para se tornar uma forma empírica de educação, deformando, na visão de Antonio Moreira (1997, p. 25), um dos papeis centrais do currículo, bem como da própria escola, que é o de desenvolver “um projeto de transformação social”.

Assim, a perspectiva da constituição de qualquer currículo elaborado para atender a EJA deve ser a que considere o educando como construtor do seu conhecimento, cujas bases são os seus saberes prévios, ou seja, as características que constituem a sua identidade, consequentemente esta é a orientação para qualquer programa desenvolvido para atender o público dessa modalidade.

Essa orientação pode ser observada, por exemplo, no Parágrafo Único do Art. 5º da Resolução Nº 1 do CNE/CEB (Conselho Nacional de Educação e Câmara de Educação Básica), de 5 de julho de 2000, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, em que ao tratar dos componentes curriculares e das propostas pedagógicas para a EJA, estabelece que:

Como modalidade destas etapas da Educação, a identidade própria da Educação de Jovens e Adultos considerará as situações, os perfis dos estudantes, as faixas etárias e se pautará pelos princípios de equidade, diferença e proporcionalidade na apropriação e contextualização das diretrizes curriculares nacionais e na proposição de um modelo pedagógico próprio.

Com a intenção de respeitar o que estabelece as Diretrizes Curriculares da EJA a respeito da essencialidade dos currículos organizados para atender essa modalidade considerarem as especificidades que a caracteriza, os princípios que estão na base do PROEJA, em evidência em um dos seus documentos de orientação, destaca que a respeito da organização curricular:

[...] Considera-se que a EJA abre possibilidades de superação de modelos curriculares tradicionais, disciplinares e rígidos. A desconstrução e construção de modelos curriculares e metodológicos, observando as necessidades de contextualização frente à realidade do educando, promovem a ressignificação de seu cotidiano. Essa concepção permite a abordagem de conteúdos e práticas inter e transdisciplinares, a utilização de metodologias dinâmicas, promovendo a valorização dos saberes adquiridos em espaços de educação não-formal, além do respeito à diversidade (BRASIL, 2006a, p.48).

Verifica-se, pois que a proposta do Programa é possibilitar ao alunado da EJA uma formação plena, sendo necessário para isso que a trajetória escolhida seja a da formação profissional em paralelo à escolarização, o que poderá desta forma possibilitar um importante instrumento na política de universalização da Educação Básica e ampliação da formação para o mundo de trabalho; e isso deve acontecer respeitando o princípio que se baseia no acolhimento específico das trajetórias escolares descontínuas de jovens e adultos dessa modalidade.

Michael Foucault (1999, p. 12), ao analisar as discursividades dos indivíduos na sociedade e sua relação com as esferas de poder, refere-se aos “saberes locais, regionais, ao saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam”, defendendo assim o importante papel desses saberes na construção da cientificidade; logo, para o autor, é necessário o reaparecimento dos “saberes sujeitados”, pois dos saberes locais dessas pessoas, desses saberes considerados desqualificados, que deve partir a construção do conhecimento.

Nesse contexto, os discursos dos educandos da EJA, que representam a sua trajetória de vida, precisam ser (re)significados a partir de investigações do seu contexto histórico, social e cultural e ser considerados na organização dos currículos escolares, levando-se em conta que o currículo é um campo de significação que pode promover a formação de sujeitos críticos, criativos e participativos; tal perspectiva, inclusive, como já destacado, está na base de fundamentação do PROEJA, o que se questiona, porém, é: como essa postura vem sendo desenvolvida nos diversos cursos que atendem a modalidade a qual se destina o Programa?

Com a intenção de refletir sobre esse questionamento é que se delimitou o objeto de estudo da pesquisa, apresentado anteriormente, pois sabe-se que a Educação de Jovens e Adultos convive diariamente com uma problemática, que é essencial para o resultado de um processo eficaz de aprendizagem: trata-se da organização de um currículo que contemple as demandas e potencialidades do público por ela atendido, levando em consideração as experiências e os saberes adquiridos nos seus fazeres e a identidade cultural dos educandos dessa modalidade de ensino.

Salienta-se, contudo, que nas relações sociais podem ser observadas não somente os “imperativos de razão prática”, isto é, o fato de que “uma sociedade e seus membros têm de sobreviver”, mas também os “imperativos de razão simbólica”, ou seja, o fato de que “uma sociedade e seus membros sobrevivem de uma maneira culturalmente marcada em um mundo significante” (CUNHA, 1986, p. 97).

Assim, é interessante considerar as diferenças sociais marcantes na vida da maioria dos jovens e adultos que buscam na EJA um recomeço educacional, como também atentar para o fato de que esses homens e mulheres concebem, representam e imaginam o mundo de uma maneira específica e expressiva a partir de seu meio social.

Logo, sem dúvida, um dos principais desafios enfrentados no processo educacional na EJA e, consequentemente, no PROEJA, é como materializar a ação educativa proposta teoricamente, tornando possível aos diferentes educandos a apropriação dos conceitos científicos relevantes que lhes possibilitem lidar de maneira inteligente, criativa e crítica com sua realidade sócio-histórica, bem como ter acesso aos bens materiais e culturais socialmente produzidos.

Nessa perspectiva, o papel do currículo tornar-se-ia muito significativo, pois sua estrutura e as formas como é posto em prática na tentativa de contribuir para o direcionamento das atividades que possibilitarão essa formação de cidadãos, devem está diretamente relacionadas às práticas, expectativas e visões de mundo dos sujeitos que se inserem no Programa.

Essa perspectiva é, também, analisada pelo autor Valdo Barcelos (2010, p.26), no livro Educação de Jovens e Adultos: currículo e práticas pedagógicas, quando em vários pontos da discussão destaca o papel da cultura no desenvolvimento do processo educacional de qualidade, destacando que a prática curricular deve

[...] pautar-se pela busca de uma formação aberta à diversidade, contemplando, dessa forma, as diferentes dimensões e possibilidades do humano. Tais como a afetividade, o conhecimento geral sobre os processos culturais, o acesso aos bens e valores sociais e ecológicos do mundo em que vive. Enfim, educação para ser educação precisa ser envolvida como desejo de instituição de pessoas que não só busquem um posto de trabalho, mas que estejam buscando a realização de seus desejos e mesmo de seus sonhos.

No entanto, o que se tem observado é certa tentativa de homogeneização, com propostas gerais para esta modalidade de ensino, sem que efetivamente se consiga uma diferenciação do ensino regular, como se esse grupo de alunos fosse universal e, ainda, considerando o currículo apenas “como o conjunto daquilo que se ensina e daquilo que se aprende, de acordo com uma ordem de progressão determinada, no quadro de um dado ciclo de estudos” (FORQUIM, 1993, p. 188).

Reinaldo M. Fleuri (apud BARCELOS, 2010, p.16) ressalta, em um de seus textos, as sérias consequências de quando o currículo é entendido dessa forma limitada, pois na concepção do currículo como um “conjunto único e universal de conhecimentos”, fica subtendido que tais informações devam ser transmitidas de forma linear, homogênea e progressiva, sendo, ainda, que essa transmissão só pode ser feita por “pessoas devidamente formadas e autorizadas, a outras pessoas supostamente ignorantes”, ou seja, entende-se o professor como o único detentor de conhecimento e desconsidera-se todos os saberes já adquiridos pelo educando.

Na EJA, as ausências do currículo, quando ele não é entendido como resultado das determinações culturais, quando deixa de ser situado historicamente e passa a ser desvinculado da totalidade social, política e econômica; pode acarretar problemas sérios e profundos no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes desta modalidade. Consequentemente, o currículo volta-se exclusivamente para questões técnicas e metodológicas.

Nesse âmbito, para que o currículo do PROEJA no IFMA não reproduza esses equívocos, este deve assumir um papel estratégico, especialmente no que concerne à formulação e reformulação de seu Projeto Pedagógico, buscando o aproveitamento significativo do tempo escolar, valorizando o patrimônio cultural do educando como ponto de partida para o incentivo do saber produzido no âmbito da escola e tomando como base para o planejamento e execução de suas atividades as múltiplas identidades que caracterizam o seu público.

Essas ações se constituem em um grande desafio, principalmente pelo fato de que a integração entre ensino médio e Educação Profissional na modalidade EJA é algo novo para a educação brasileira, logo, o que torna necessário também, que educadores e educadoras não apenas discutam “este Programa em suas variadas dimensões e potencialidades, mas também [...]” possam se engajar “[...] nos esforços que os diversos atores comprometidos com esta proposta já estão desenvolvendo” (BRASIL, 2006a, p.02).

Tais esforços que vêm sendo realizados por diversos segmentos e instituições, como destacado em reflexões anteriores, possibilitam uma visão mais ampla e adequada sobre as particularidades da EJA e que são essenciais como ponto de partida para qualquer ação no âmbito dessa modalidade.

Sendo assim, é importante salientar que o PROEJA, enquanto programa voltado para a EJA, na organização do seu currículo escolar deve considerar vários fatores, tornando-se amplo, flexível e jamais deve ser considerado como neutro. O currículo não deve ser pensado “como uma ‘coisa’, como um programa ou cursos de estudos”, mas “como um ambiente simbólico, material e humano que é constantemente reconstruído” (APPLE, 1989, p. 210).

Logo, a análise envolvendo as relações existentes entre a organização do currículo da EJA e a forma como os sujeitos que compõem essa modalidade se percebem neste currículo instituído e legitimado nas escolas torna-se um campo vasto de investigação.

Assim, analisar a organização curricular na perspectiva de entender como essa organização representa ou oculta às múltiplas identidades dos educandos da EJA no PROEJA constitui uma questão fundamental que precisa ser pesquisada e discutida, por isso, a delimitação da pesquisa em torno de alguns cursos oferecidos pelo IFMA para atender tal Programa e que serviram de amostra para tal análise.

Porém, entendeu-se que, antes de iniciarmos a análise da organização e prática curricular em um aspecto mais delimitado, no caso as dos Cursos de PROEJA do Campus Centro Histórico do IFMA, era necessária uma breve reflexão acerca dos discursos em torno das teorias curriculares, bem como, da categoria identidades estabelecidos atualmente, principalmente, com base nos Estudos Culturais; objetivando enfatizar as teorias do currículo que defendem a importância em conhecer e considerar quem são estes jovens e adultos como um dos elementos fundamentais para a base de qualquer ação educacional no campo da EJA.

Identificou-se, como apresentado neste último tópico do presente capítulo, que essa relação é um dos princípios orientadores estabelecidos como guia para a elaboração das propostas curriculares de qualquer curso ofertado na linha do PROEJA.

No que se refere ao questionamento de como na prática esse vínculo vem se desenvolvendo é que o estudo se propõe no capítulo seguinte a analisar, a partir de diversos eixos, “a ação dos currículos” dos dois cursos do PROEJA oferecidos pelo IFMA no Campus Centro Histórico, para que através dessa amostra possa-se buscar entender até que ponto esse princípio vem sendo seguido.

No documento PROEJA: entre currículos e identidades (páginas 83-90)