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No curto-circuito: a ELEtroacústica

No documento 100 anos de música no Brasil (páginas 192-200)

Na música No brasiL

leonardo Martinelli

s poucas cronologias e esboços historiográficos disponíveis sobre a trajetória da música eletroacústica no Brasil são unânimes em identificar “Si bemol” como seu marco inicial. Trata-se do título da peça composta em Paris pelo compositor paraibano Reginaldo Carvalho (1932) no já longínquo ano de 1956. Então residindo na capital francesa, Carvalho – que chegara ao Velho Mundo com o apoio de Villa-Lobos – passou a integrar a massa de discípulos do compositor Olivier Messiaen e foi um dos primeiros pupilos de Pierre Schaeffer, a quem as origens da música eletroacústica estão inexoravelmente atreladas.

Entretanto, a compreensão das práticas musicais eletroacústicas desenvolvidas no Brasil ou por brasileiros deve levar em conta dois fenômenos já conhecidos na historiografia geral da música no Brasil: primeiramente, a nossa condição de assimiladores de estéticas e técnicas criadas e desenvolvidas em um contexto artístico, cultural, social,

econômico e geográfico substancialmente diferente do nosso; em segundo lugar, o processo de aclimatação destas estéticas e técnicas ao nosso ambiente artístico, cultural, social e econômico.

Pensada enquanto um fenômeno mais amplo, as origens e o

desenvolvimento da chamada música eletroacústica se dão pela convergência entre fatores de ordem estética e tecnológica. De um lado, no final do século 19, temos a invenção dos primeiros dispositivos eletrônicos voltados para a captação e reprodução do som por cientistas como Thomas Edison e Emil Berliner. Pelo outro, no início do século 20, temos o gérmen de uma nova concepção de “som musical” pautada pela ampliação do rol de eventos sonoros aceitos como tal (e, consequentemente, a própria ampliação da noção

de instrumento musical), em especial aquilo convencionalmente chamado de ruído, cavalo de batalha de pioneiros como Luigi Russolo e Edgar Varèse.

Grosso modo, podemos entender música eletroacústica como parcela da produção associada a compositores de música clássica desde meados do século 20 até a atualidade, e que tem como principal característica sua difusão por meio de alto-falantes (que podem se juntar a um grupo de instrumentos tradicionais naquilo que é normalmente designado por “música eletroacústica mista”).

Se por um lado o alto-falante revela-se elemento comum à música eletroacústica como todo, pelo outro há infinitos caminhos a serem percorridos no processo de elaboração musical antes de este material ser difundido no espaço de escuta. Estes processos são, num primeiro instante, de ordem estética (remetendo-se à própria definição de música e de som musical trabalhado pelo compositor), técnica (quais os procedimentos e operações que ele irá realizar no trato artesanal de suas matrizes sonoras) e, finalmente, tecnológica (isto é, quais os recursos computacionais e eletrônicos que servirão de suporte para seus procedimentos e operações de ordem técnica).

Apesar de os primeiros sinais que viabilizariam a música eletroacústica nos remeterem ao final de século 19, foi somente após a Segunda Guerra Mundial que enfim o terreno se mostrou fértil para o surgimento desta então nova forma de expressão musical, a partir do aprimoramento e do relativo barateamento dos equipamentos eletrônicos, a criação de diversas emissoras de rádio na Europa e a própria ampliação do conceito de som musical em parte da comunidade musical.

O início da década de 1950 testemunhou a criação de dois estúdios que então integrariam o dínamo da música eletroacústica em seus primórdios. Em 1951 o compositor francês Pierre Schaeffer fundou o Groupe de Recherche de Musique Concrète (ou Grupo de Pesquisa em Música Concreta) ligado à então RTF (Radiodiffusion-Télévision Française). A ideia central da música concreta é a utilização de sons reais, capturados por microfone, enquanto material de base do discurso musical. Uma vez gravados, esses sons podem passar por diversos tipos de alterações, ao ponto

de se tornar impossível o reconhecimento de sua fonte original.

Quase que ao mesmo tempo era fundado na cidade alemã de Colônia a outra parte deste dínamo, o Studio für elektronische Musik (ou Estúdio de Música Eletrônica), então ligado à Westdeutschen Rundfunks (Rádio do Noroeste Alemão, então parte da Alemanha Ocidental) e encabeçado por Herbert Eimert e Werner Meyer-Eppler, cujos processos se baseavam na criação de novos sons a partir de processos de sínteses sonoras, sem a presença de sons concretos.

Vários compositores importantes do século 20 passaram por estes estúdios, cada um, por sua vez, representando e fomentando pontos de vistas por vezes irreconciliáveis para a questão da música por meios eletrônicos, que nascia repartida pelo debate entre o concreto e a síntese.

Esta oposição só passaria a ser amenizada a partir de 1956, ano em que Karlheinz Stockhausen concluiu o seminal “Gesang der Jünglinge”, obra na qual mescla a linguagem eletrônica com a concreta ao utilizar tantos sons oriundos de procedimentos de síntese como aqueles gravados a partir da voz de um menino-cantor. Porém, antes de “Gesang”, o italiano Bruno Maderna tinha também dado outro passo importante ao compor em 1953 sua “Musica su due dimensioni” (cuja parte eletrônica foi realizada em outro importante estúdio, o Studio di Fonologia Musicale, RAI de Milão, fundado por Maderna e por Luciano Berio). Nesta obra, paralelamente aos sons eletroacústicos registrados em fita magnética, conta-se de forma inédita com a presença de um flautista e um percussionista in loco, inaugurando a era da música eletroacústica mista.

A associação dos estúdios de criação às estações de rádio e de televisão revelou-se importante fator no estabelecimento e desenvolvimento da música eletroacústica na Europa. Isto porque, no pós-guerra, várias estações de rádio do continente passariam a atuar menos como meros “tocadores de vitrolas” de LPs clássicos (como viriam a atuar as rádios clássicas brasileiras) e mais como instituições de fomento musical, que além de estúdios

abrigariam também prestigiados orquestras e corais, além de estabelecer políticas regulares de estreia e encomenda de novas obras musicais.

De volta ao Brasil, Reginaldo Carvalho chegou inclusive a dar passos semelhantes, quando em 1966 assumiu a direção do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, transformando-o no Instituto Villa-Lobos. Reformulada, a instituição passaria a abrigar o primeiro estúdio de música eletroacústica do país, o Centro de Pesquisa do Som e da Imagem. Já no ano seguinte Carvalho chamaria o compositor carioca Jorge Antunes (1942) para ministrar o “Curso de introdução à música eletrônica, concreta e magnetofônica”.

Naquele momento, Antunes já reunia de forma mais completa os predicados importantes aos pioneiros da música eletroacústica ao ter realizado estudos formais tanto em música como em acústica, essenciais em tempos em que esta prática era realizada de forma quase artesanal – usando-se gravadores de rolo, cortando-se fitas com tesouras e emendando-as com colas – sem as interfaces amigáveis dos softwares dos computadores modernos. Além de formação, Antunes dava continuidade de forma mais consistente à caminhada iniciada por Carvalho com obras como “Pequena peça para mi

bequadro”, “Harmônicos” (ambas de 1961) e “Valsa sideral”, de 1962.

Entretanto, em 1968, com a promulgação do Ato Institucional no. 5 pela ditadura militar, Antunes viu-se obrigado a sair do país, então rumando para a Europa para mergulhar ainda mais no universo em que Carvalho tinha nadado apenas à superfície. Para seu posto no Instituto Villa-Lobos a instituição acata a sugestão de Antunes de assimilar aos seus quadros Marlene Fernandes (1937), paranaense então recém-chegada de uma temporada de estudos no Instituto Torcuato Di Tella, na Argentina.

Apesar do clima de tensão instaurado no país, Carvalho e Fernandes continuam a fazer do Instituto Villa-Lobos um dos principais pólos da música contemporânea no Brasil e a desenvolver de forma pioneira atividades sistemáticas como centro de criação eletroacústica. Entretanto, a vocação como centro independente de criação do instituto seria abruptamente interrompida em 1972 com o afastamento de Carvalho de sua direção, que então passaria a ser comandado pelo general do exército Jayme Ribeiro da Graça.

da música contemporânea da instituição foram decisivos nos rumos que a música eletroacústica iria tomar no país. Com a extinção de seu primeiro, o país passaria por um grande hiato institucional. Isto porque nossas principais rádios não-comerciais – instituições que de forma natural podemos encarar como potenciais abrigos e incentivadores da música eletroacústica a partir do modelo europeu e mesmo norte-americano – então insistiram no rudimentar modelo de funcionamento a partir da simples difusão de fonogramas de obras clássicas, modelo este ainda base do modus operandi da Rádio MEC (fundada em 1936 a partir da assimilação governamental da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, emissora particular criada em 1922 por Roquette Pinto) e da Rádio Cultura de São Paulo (fundada em 1977).

Por outro lado, o retorno de Jorge Antunes ao Brasil marcaria os rumos que a música eletroacústica iria trilhar de forma mais sistemática no país. Durante sua estada na Europa, Antunes mergulhou fundo nas vanguardas musicais vigentes. Em Paris, além de seu doutorado, o compositor realizou curso de aperfeiçoamento no Groupe de Recherches Musicales, onde atuou como compositor-estagiário sob a orientação de gigantes da música concreta, tais como o próprio Pierre Schaeffer, além de Guy Reibel e François Bayle. Antes, em Utrecht, na Holanda, especializou-se em música por computador (então um equipamento raro e extremamente caro) sob a orientação de Gottfried Michael König, Greta Vermeulen, Stan Tempelars e Fritz Weiland, trabalhando com o computador Electrologia X-8, uma realidade então pouco acessível a artistas. Em 1973 Antunes retornou ao país para assumir uma cadeira no curso de música da Universidade de Brasília, dando o primeiro passo no casamento da música eletroacústica no Brasil com o universo acadêmico.

A década de 1970 registra dois pontuais, mas interessantes fatos ligados à questão da música eletroacústica. Em 1975 uma pesquisa capitaneada por Guido Stolfi e Celso Oliveira (então pesquisadores da Universidade de São Paulo) resultou na construção daquele que provavelmente é o primeiro sintetizador modular brasileiro. Dois anos mais tarde, na Universidade de Brasília, Aluísio Arcela desenvolveu o “Sistema de

geração espectral dinâmico para síntese de sinais musicais”, projeto que preconizou o Laboratório de Processamento Espectral no Departamento de Ciência da Computação da referida instituição. Essas ações são exemplos pontuais, quase pitorescos, na medida em que estas pesquisas não geraram equipamentos que entraram em circulação em escala no meio musical. Isto porque não apenas o Brasil, mas uma série de outros países vêm-se numa relação de dependência para com os Estados Unidos em termos de tecnologia de áudio tanto em termos de hardwares (computadores, interfaces e periféricos) como de softwares (terreno este compartilhado com a Europa, em especial com os programas desenvolvidos pelo instituto parisiense IRCAM).

Entretanto, antes de a música eletroacústica brasileira se lançar de forma definitiva rumo à institucionalização universitária, em 1981 a cidade do Rio de Janeiro foi outra vez palco do pioneirismo no ramo com a fundação do primeiro estúdio privado, o Estúdio da Glória.

O Estúdio da Glória iniciou suas atividades em 1981, montado em um espaço adaptado de um ateliê no bairro que empresta seu nome ao estúdio. Inicialmente a empreitada reuniu os compositores Rodolfo Caesar (1950), Tim Rescala (1960), Tato Taborda (1960) e a flautista Sandra Lobato em um regime de compartilhamento de equipamentos e recursos. Ao longo da década de 1980 e parte da década seguinte, o Estúdio da Glória firmou- se como principal pólo de produção eletroacústica no Brasil, servindo de espaço de criação não apenas para seus fundadores, mas também de nomes consagrados, como Jocy de Oliveira (1936), Luis Carlos Csekö (1945) e Vânia Dantas Leite (1945) – que já dispunha de um estúdio particular na década de 1970 – e de jovens músicos que realizaram no estúdio sua formação em eletroacústica, como Arthur Kampela (1960), Aquiles Pantaleão (1965) e Rodrigo Cicchelli Velloso (1966).

Com a ida de Caesar para a Inglaterra entre 1988-1994 – onde realizou seu doutorado em música eletroacústica –, aos poucos o Estúdio da Glória deixou de atuar de forma institucional e como coletivo artístico. Além disso, esta guinada na trajetória do estúdio carioca pode ser também interpretada

como o resultado de dois fenômenos que atualmente moldam a cena eletroacústica brasileira. Por um lado, temos a domesticação da atividade a partir do barateamento de microcomputadores e equipamentos de captação e gravação de sons surgidos com a era do áudio digital (fenômeno este também presente em outros países); de outro, as universidades brasileiras, por meio de seus cursos de música, tomaram para si a missão de criar estúdios e laboratórios que, em geral, visam a instrução, a criação e a difusão do repertório em música eletroacústica.

Na virada entre as décadas de 1980-90 a consolidação dos cursos de música nas instituições de nível superior em diferentes pontos do país fez das universidades brasileiras o principal abrigo de compositores alinhados às poéticas clássicas contemporâneas, tendo em vista que desde a década de 1960 as precárias orquestras do país já haviam excluído a participação da música nova de sua programação e nenhuma outra instituição havia assumido o papel de fomentador e financiador da música de invenção por compositores brasileiros ou aqui radicados.

Locados no gueto acadêmico – e frequentemente afastados da cena musical cotidiana dos teatros, salas de concertos e outros tipos de instituição – diversos compositores passaram a agir em prol da fundação de estúdios e laboratórios de música eletroacústica, que se multiplicaram a partir da década de 1990, tais como o LaMuT (Laboratório de Música e Tecnologia da UFRJ), fundado em 1992; em 1993 temos a fundação do Laboratório de Linguagens Sonoras (LLS) do curso de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, o LCM (Laboratório de Computação e Música) da UFRS, e o NICS (Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora) da Unicamp; por volta de 1996 iniciam-se as atividades do LAMI (Laboratório de Acústica Musical e Informática) da USP.

Em 1994, o curso de música da Unesp tem a fundação de seu estúdio (na época em parceria com a Faculdade Santa Marcelina) capitaneada pelo compositor Flo Menezes (1962), que por meio da universidade institucionaliza o Studio PANaroma (nascido como estúdio privado em 1991, na época em que o compositor residia na Itália).

Formado em composição pela USP, antes da fundação do estúdio Menezes teve entre 1986-1990 sua iniciação eletroacústica no estúdio de Colônia e especializara-se no Centro di Sonologia Computazionale da Universidade de Pádua, na Itália. Como poucos no país, Menezes soube aproveitar o apoio institucional e financeiro que escoram o ambiente universitário paulista (que neste caso específico, além da própria Unesp, inclui também a FAPESP) para ampliar as prerrogativas dos estúdios de música eletroacústica universitários (isto é, instrução, criação e a difusão) ao criar, em 1995, o Concurso Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo (CIMESP – que até o momento contou com sete edições, a última realizada em 2007), e principalmente, a Bienal Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo (BIMESP, atualmente em sua nona edição, realizada em 2012), até então o único evento regular de grande de difusão de obras eletroacústicas brasileiras e estrangeiras.

Tais feitos já seriam o suficiente para justificar a proeminência do Studio PANaroma na cena eletroacústica brasileira. Porém, soma-se ainda a estas ações uma série de outras atividades cuja regularidade mostra-se mesmo ímpar neste nicho. Desde 1996 o estúdio publica a série de CDs “Música Maximalista”, e que atualmente já conta com catorze volumes. Além dos concertos da bienal, o estúdio tem uma série regular de apresentações ao longo do ano, o “T-Son”, que já conta com mais de setenta apresentações com obras eletroacústicas realizadas tanto no PANaroma como em outros. Por último, via PANaroma, Menezes idealizou e instaurou o PUTS (PANaroma/Unesp – Teatro Sonoro), por definição uma orquestra de alto-falantes instalada no auditório da Instituto de Artes de Unesp que se configura como o único lugar verdadeiramente apropriado de escuta de peças eletroacústica do Brasil. Além de Menezes, o PANaroma foi a base de criação para obras de compositores como Edson Zampronha (1963), Sergio Kafejian (1967), Paulo Zuben (1969) e Fábio Scucuglia (1985), entre outros. Entretanto, para além do ambiente universitário – onde de tempos em tempos testemunhamos o surgimento, se não de estúdios completos, ao menos de laboratórios básicos em universidades estaduais e federais em diferentes pontos do

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