A. A competência da União na produção normativa e harmonização em sede do direito processual penal da União Europeia
Relativamente ao direito processual penal da União Europeia, a sua base legal encontra-se no artigo 82.º TFUE.
Pela forma como está formulado, não é possível haver harmonização do processo processual penal da União Europeia com base no número 1 do artigo 82.º TFUE. Caso fosse possível, não faria sentido incluir no número 2 um catálogo exaustivo referente aos domínios de harmonização, relativamente aos quais os Estados-Membros têm ao seu dispor o “travão de emergência”.
Assim, somos do entendimento de que o número 1 diz respeito apenas à harmonização ao nível do processo penal latu sensu, i.e., apenas relativamente a aspetos da cooperação entre os Estados-Membros em domínio da justiça penal292. Por consequência, todas as iniciativas para o aumento da cooperação e implementação direta do princípio do reconhecimento mútuo (desde que não afetem o direito penal nacional stritu sensu), terão como base jurídica o artigo 82.º/1 TFUE.
Por sua vez, o número 2 permite que a União leve a cabo ações com vista à harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros em matéria penal. No entanto, a unificação das normas nacionais não é uma opção viável. A única opção será a criação de regras mínimas.
Fazendo uma leitura conjunta dos artigos 82.º/2 e do 67.º/3 TFUE, é fácil ver que a harmonização do direito processual penal está então limitada ao “estritamente necessário” ou ao necessário para «(…)facilitar o reconhecimento mútuo das
sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça» com respeito pelos direitos fundamentais e
dos diferentes sistemas e tradições jurídicas dos Estados-Membros.
É de notar também que, apesar de não impedir que os Estados-Membros estabeleçam um nível mais elevado de proteção para além das regras mínimas, as disposições do Tratado dizem respeito à harmonização mínima. Ora, somos da
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Vânia COSTA RAMOS, Direito Penal Europeu Institucional: o quadro “pós-lisboa” – por mares nunca dantes navegados, edificar-se-á novo reino?, 2010
opinião que a harmonização em matéria de direito penal se deve reger não por um
standard mínimo (como o da CEDH, por exemplo) mas sim por níveis de proteção
mais elevados.
Como já foi dito, as regras mínimas de harmonização dizem respeito a: (i) admissibilidade mútua dos meios de prova entre os Estados-Membros; (ii) direitos individuais em processo penal; (iii) direitos das vítimas da criminalidade; (iv) outros elementos específicos do processo penal, identificados previamente pelo Conselho através de uma decisão. Para adotar essa decisão, o Conselho delibera por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu.
Neste sentido, tanto a adoção do Programa de Estocolmo como do Roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processo penais293, foram um passo importante na direção certa. No entanto, até à data não foi aprovado nenhum ato jurídico da União no domínio da proteção dos direitos dos arguidos que estabelecesse um standard europeu em todos os Estados-Membros. Consequente, a proteção do direito dos arguidos permanece na esfera interna de cada Estado-Membro.
Poderíamos ainda alegar que os Estados-Membros partilham de um certo nível de harmonização, uma vez que têm de respeitar o standard mínimo comum da CEDH, standard que a própria o UE tem de respeitar de acordo com o artigo 6.º TUE. No entanto, a adoção de mínimos que vão ao encontro do disposto na CEDH não se coaduna com a ideia de uma verdadeira comunidade de Direito que se pretende atingir com a União Europeia, nem é suficiente para fazer frente à situação atual.
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B. Princípios gerais e instrumentos europeus do direito processual penal Como base nos instrumentos aprovados principalmente no âmbito do Programa de Estocolmo, assim como com base na jurisprudência do TFUE e do TEDH, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, já é possível identificar um leque razoável de princípios do direito processual penal e que iremos elencar de seguida.
a. Direito a um processo equitativo
Talvez o maior direito processual penal, que engloba, nos termos do artigo 6.º CEDH, «(...)qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada,
equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida».
Este direito é também consagrado no artigo 47.º Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
b. Direito de ser informado
Nos termos do artigo 5.º/3, a) CEDH, o acusado tem o direito de informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada.
Neste âmbito e no seguimento do Roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais foram aprovadas as Diretivas 2012/13/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho de, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal e 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal.
O direito à liberdade e à segurança encontra-se previsto nos artigos 6.º CDFUE e 5.º CEDH.
d. Presunção de inocência
O artigo 48.º CDFUE consagra o direito a um processo equitativo em geral e o direito à presunção de inocência em particular.
e. Direito ao patrocínio e apoio judiciário
Nos termos do artigo 5.º/3, c), o acusado tem direito a defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem.
Neste contexto e no âmbito do Roteiro anexo ao Programa de Estocolmo, foi aprovada a Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares.
Embora estes instrumentos normativos representem um avanço significativo no desenvolvimento do direito processual penal da União Europeia, este ainda não produziram efeitos práticos e revelam-se insuficientes para reequilibrar, ao nível da União, a posição da acusação e da defesa no âmbito do processo penal294. É fácil perceber que há ainda um longo caminho a percorrer até à criação de um verdadeiro direito processual penal da União Europeia, sendo necessário não só a aprovação de várias medidas, mas também a sua efetiva implementação e transposição para a ordem jurídica dos Estados-Membros.
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Vânia COSTA RAMOS, Direito Penal Europeu Institucional: o quadro “pós-lisboa” – por mares nunca dantes navegados, edificar-se-á novo reino?, 2010