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O espaço físico onde a família desenvolveria suas relações seria a casa. Esse espaço foi muito valorizado pela revista, de um lado mostrando para sua leitora como esse universo deveria ser cuidado pela dona de casa e por outro estimulando a possuir objetos para cada ambiente, cada cômodo e convencendo de que agindo assim estaria proporcionando conforto e bem estar para sua família, cumprindo sua função.

A casa tinha, portanto, um sentido muito especial para a constituição da família nos anos 60: cabia à esposa organizar um lar feliz, oferecer uma vida tranqüila e um apoio constante ao seu marido. A revista publicava muitas dicas de decoração (assunto que sempre esteve presente na revista) ensinando desde arrumar um armário, como mostrar as tendências da moda em produtos para a casa (mantas, colchas, tapetes, cortinas, almofadas, móveis, eletrodomésticos). Auxiliava na organização de festas e recepções e ensinava como transformar um ambiente de sua casa, como sala, quarto, cozinha em um espaço moderno.

Obviamente que todas essas modificações tinham um custo, pois incitavam a mulher a comprar determinados produtos, anunciados pela publicidade mensalmente na revista.

Claudia publicou um projeto de uma casa, a chamada Casa Claudia126, em novembro de 1961, no seu segundo número. Vejamos:

Realizamos um sonho... A Casa de Claudia

O sonho de tôdas as mulheres é ter sua casinha, por menor que seja. (...) Êste mês, CLAUDIA ajuda as suas leitoras a realizar este sonho.. (...) Claudia lhe oferece este mês o projeto completo de uma casa.(...) Na realidade sua única função é aquela de tratar, direta ou indiretamente, de tudo o que interessa à mulher, em tôdas as suas manifestações. Mas é justamente por isso que a idéia de dedicar-lhe uma casa não escapa às suas atribuições. É à mulher, acima de tudo, que o arquiteto deve dedicar sua obra, no que diz respeito ao lar. Mesmo se a tendência a uma evidente emancipação modificou a sua posição na sociedade, na família e no lar, as características femininas não sofreram modificações substanciais. É sempre a mulher a responsável pela educação dos filhos, pelo êxito do bom andamento da casa, e é sempre ela que se preocupa com o conforto e bem estar na vida familiar. E se CLAUDIA trata da sua maneira de vestir, da sua beleza e de tudo o que lhe diz respeito, deve preocupar-se, também, com o ambiente em que ela realiza as suas tarefas principais: a casa.127

Como evidencia esse artigo, na família e no lar as características femininas continuavam praticamente as mesmas, uma vez que, segundo a revista, não sofreram modificações substanciais e indicam as responsabilidades que caberiam à esposa: educação dos filhos, o êxito da casa (conforto e bem estar familiar).

Essa naturalização dos papéis é o que Joan Scott128 questionava

quando propunha a categoria de análise, os estudos de gênero, pois existe uma diferença biológica entre homens e mulheres, mas essas diferenças não devem ser tomadas para justificar papéis, pois há também diferenças que são historicamente, socialmente e culturalmente estabelecidas e introduzem relações de poder. Os estudos de gênero procuram destacar:

126 Somente em 1977 a Editora Abril passa a publicar mensalmente a Revista Casa Claudia; nesse

momento nos parece apenas uma tentativa de divulgar o projeto de uma casa ideal para a leitora.

127 Revista Claudia, novembro de 1961. p.20. 128 SCOTT, loc.cit.

Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que os perfis de comportamento feminino e masculino definem-se um em função do outro. Esses perfis se constituem social, cultural e historicamente num tempo, espaço e cultura determinados. Não se deve esquecer, ainda, que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos e são, portanto, uma forma primária de relações significantes de poder. Sendo uma de suas preocupações evitar as oposições binárias fixas e naturalizadas, os estudos de gênero procuram mostrar que as referências culturais são sexualmente produzidas, por meio de símbolos, jogos de significação, cruzamentos de conceitos e relações de poder, conceitos normativos, relações de parentesco, econômicos e políticos.129

Nas décadas seguintes percebemos que a casa continua sendo o espaço social de construções de papéis e que estabelecem hierarquias, sendo a mulher a responsável pela manutenção seja dos bens materiais (alimentação, vestuário de todos os membros) e do bem estar da família. Ela era a responsável pela felicidade familiar.

Uma família respeitável para a Revista Claudia deveria ter no mínimo três coisas: casa, comida e roupa lavada. Nesses primeiros anos de seu lançamento cabia ao homem fornecer os recursos financeiros para a manutenção do lar, e cabe à mulher saber administrar esses recursos, organizando e mantendo as tarefas em dia.

Para compor a casa e torná-la confortável para a família a revista mantém na década de 70 a prática de publicar as novidades e dicas de como decorar, na maioria das vezes com objetos e móveis fabricados pela indústria brasileira. Nessa perspectiva, a revista apostou na montagem de ambientes inteiros em estúdios fotográficos com o intuito de reproduzir o ideal de um lar, o que aguçava o sonho e o consumo de suas leitoras.

A revista tentava percorrer todos os setores da casa de suas leitoras. Vejamos alguns títulos do que foi publicado: “Arrumar armários” (maio de 1971); “Como refrescar sua casa no verão” (novembro de 1973); “Tecidos e papel de parede” (março de 1974); “Sugestões para o escritório de seu marido” (maio de 1975); “Idéias originais para o seu banheiro” (abril de 1976); “Idéias para o jardim”

129MATOS, Maria Izilda S. de. Outras histórias: as mulheres e estudos dos gêneros – percursos e

possibilidades. In: MATOS, Maria Izilda S. & SOLER, Maria Angélica (orgs.). Gênero em Debate: Trajetória e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: Educ, 1997. p.97.

(maio de 1976); “Fazer a cortina dos seus sonhos, aproveitando as toalhas de banho” (agosto de 1977).

Nos anos 70, porém, o tom da economia havia mudado, o que acabou levando a revista à reformulação do projeto no que se refere aos assuntos práticos da casa, ou seja, era preciso orientar as mulheres a gastarem com moderação. Tínhamos: “Reforme sua casa com pouco dinheiro” (março de 1971); “Como decorar uma casa pré-fabricada” (julho de 1973); “Viva bem em pouco espaço” (setembro de 1979).

A preocupação com o orçamento doméstico fazia-se presente desde fevereiro de 1970, quando Claudia entrevistou Delfim Neto, que era o então ministro da fazenda. Este mostrou-se otimista afirmando que:

Existe confusão entre aumento global do custo de vida e aumento de comestíveis, sobretudo dos gêneros de primeira necessidade. No ano de 1969 houve, realmente, alguns produtos que aumentaram mais que o percentual de aumento global, que vai ficar por volta de 24%, a mesma coisa, aliás, que em 1968. Acontece que êsses aumentos decorrem quase sempre de fatôres climáticos, muitos dêles imprevisíveis. [...] A inflação permanece sob contrôle e a tendência para 1970 é boa em todos os setores. Além dêstes fatôres positivos, o índice do produto bruto nacional continua ultrapassando expectativas: 8,4% em 68 e irá além dêste percentual em 69. E uma boa notícia para as donas de casa: as expectativas agrícolas para êste ano são excelentes, principalmente no que diz respeito aos gêneros alimentícios em geral.130 (Delfim Neto – ministro da fazenda

do governo Médici).

Entretanto em outubro de 1973, ainda no período Médici, ocorreu a primeira crise internacional do petróleo, fato este que afetou o Brasil, pois o país importava mais de 80% do total de seu consumo. A inflação começou a voltar a crescer, e tudo indicava que os anos do “milagre econômico” tinham se esgotado. Como analisou Paul Singer:

Há, no entanto, já vários sinais de que o Milagre se aproxima do seu fim. São sintomas de inflação reprimida, que começaram a aparecer no ano passado, quando pecuaristas, frigoríficos e açougueiros reduziram a oferta da carne, em protesto contra os preços oficiais, julgados insuficientes. [...] Faltam à mesa do consumidor, ao lado da carne, o leite e (durante um período) o feijão, produtos considerados essenciais à dieta popular. Mas faltam também automóveis: para certos tipos de carro, o comprador tem que esperar dois meses e meio a entrega, a não ser que pague um “extra”, o que indica que está se constituindo verdadeiro mercado negro de veículos. E há escassez de matérias-primas: os fabricantes de refrigeradores estão produzindo 15% abaixo da sua capacidade devido à dificuldade de obter matérias-primas.131

Embora a Revista Claudia não tenha discutido o assunto no plano político e econômico, alguns artigos vão indicar que o país passava por uma crise, pois em várias seções vemos uma tentativa de ajudar a dona de casa, a família, no sentido de controlar o orçamento doméstico. Temos assim: “Como fazer economia no supermercado” e “Cardápios econômicos” (março de 1973); “Eletrodomésticos: como fazê-los durar?” (março de 1974); “Diversas maneiras de usar a mesma roupa.” (abril de 1974); “Economize, organizando o orçamento doméstico” (maio de 1974); “Como conter os gastos supérfluos.” (setembro de 1974); “Conserve suas roupas por mais tempo” (março de 1975); “Como contornar uma crise financeira” (abril de 1975); “Como aplicar o dinheiro e sair lucrando” (abril de 1976); “Esticar o seu dinheirinho”, “Como usar bem o seu ferro elétrico” e “Automóvel: como economizar gasolina” (agosto de 1976); “O que você mesma pode fazer para consertar” (setembro de 1976); “Que tal um aquecedor solar?” (abril de 1977); “Gaste pouco e fique bem vestida” (junho de 1977); “O requintado sabor da carne de segunda” (julho de 1977); “Investir o 13º. Salário” (dezembro de 1977); “Gaste pouco e fique na moda” (fevereiro de 1978); “35 receitas para se fazer pão em casa” (julho de 1978); “Você já pensou quanta coisa se desperdiça no lixo? Aproveite esse material”. (outubro de 1978).

A revista e os anunciantes ainda apostavam no consumismo de suas leitoras, mas demonstravam a idéia de que esse consumo deveria ser planejado e que Claudia as ensinaria a comprar bem. Entretanto os apelos publicitários ainda faziam parte de quase a metade do periódico.

Se a crise econômica não afetou a publicidade da revista, o assunto sobre como economizar nas compras para casa mantiveram-se presentes nos anos 80, pois a inflação amedrontava toda a sociedade brasileira nesse período, o que leva novamente a revista a trazer idéias que fossem “baratas” e equilibrassem o orçamento doméstico. Em março de 1982 publica o artigo: Orçamento doméstico a melhor arma contra a inflação.

Casa, comida, escola dos filhos, despesas domésticas em geral, tudo isso fica sob controle da dona-de-casa. Portanto, ela é a responsável pela parte mais significativa do orçamento familiar. Numa época de dinheiro curto, esta responsabilidade toma vulto, e administrar bem os gastos se torna fundamental. Para ajudá-la nesta tarefa, aqui estão três modelos de orçamento testados por mulheres como você.132

A casa era o espaço legítimo da mulher, onde esta exercia seu “poder de mando”, organizando, administrando os recursos financeiros e afetivos para garantir a harmonia familiar. O estímulo a consumir produtos para a casa foi a tônica de Claudia; ao despertar o sonho de consumir, convencia sua leitora da utilidade e da praticidade que aqueles objetos trariam aos vários ambientes de seu lar. Do sonho ao consumo a revista conduzia a mulher a suas representações: dona de casa, esposa e mãe.