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D UAS E XPLICAÇÕES PARA A D ECISÃO DO T RIBUNAL

SURGIMENTO DA DOUTRINA DAS QUESTÕES POLÍTICAS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

2.3 D UAS E XPLICAÇÕES PARA A D ECISÃO DO T RIBUNAL

Pode-se dizer que, no julgamento do HC nº 300, à exceção de Pisa e Almeida, os demais Ministros do Supremo Tribunal Federal criaram a sua doutrina das questões políticas, a qual, no entanto, nada tinha a ver com a doutrina forjada por Marshall, no caso Marbury vs. Madison. Todavia, sem saber, estavam se antecipando a um julgamento isolado da Suprema Corte, levado a efeito mais de meio século depois (1946), o qual foi apontado por Araújo (1998, p. 191), conforme visto no primeiro capítulo, como um leading case da doutrina das questões políticas nos Estados Unidos, precisamente porque os juízes norte-americanos se abstiveram de julgar, apesar da existência de parâmetros constitucionais a amparar uma decisão judicial. Tal como viria a ocorrer com a

Corte norte-americana em Colegrove. v. Grenn, o Supremo Tribunal Federal, em 1892, fechou os olhos aos direitos individuais para evitar o confronto com o poder político. Lá, ficou sacrificado o direito à igualdade; aqui, o direito à liberdade.

Nota-se de comum nos dois casos a demonstração de fraqueza dos juízes. No caso norte-americano, a Suprema Corte não se escusou em reconhecer, ainda que implicitamente, “que a Constituição conferia um direito cuja tutela competia ao poder judicial assegurar”, recusando-se a decidir o pedido porque, pela “natureza do conflito, o Tribunal não dispunha dos meios de protecção necessários” (ARAÚJO, 1998, p. 12). Já no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal não admitiu que não tinha forças nem condições de enfrentar o poder arbitrário do Executivo de então, optando pelo recurso ao subterfúgio de que não era possível separar os direitos individuais da questão política. Mas nem por isso a fraqueza dos seus membros deixou de ser apontada como a principal causa para a decisão de 1892.

Com efeito, além do que já ficou reproduzido linhas atrás, Mangabeira dizia que o Supremo Tribunal Federal foi o “órgão que, desde 1892 até 1937, mais falhou à República”. Apesar de a Constituição conferir-lhe a sua guarda e o seu destino, levantando para tanto as muralhas da inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos de seus juízes, nesse período, segundo o escritor baiano, o Tribunal nunca teve sete homens com a coragem de Pisa e Almeida, “para arrostarem a impopularidade, enfrentarem o Governo, ou desprezarem o perigo, e confessarem o direito, garantirem a liberdade, defenderem a Constituição e, por esse meio, salvarem o regime, cuja guarda lhes fora confiada”. O que se verificou foi o contrário, ou seja, que “nos dias de perigo, todas essas muralhas de aço não bastavam para resguardar da fraqueza a maioria judicante” (MANGABEIRA, 1999, p. 83-85 – grifo do autor desta dissertação).

Essa tese da fraqueza dos Ministros do Supremo Tribunal Federal para enfrentar a personalidade autoritária de Floriano Peixoto tem sua força no registro do seguinte fato, ocorrido um ano depois (1893), por ocasião do julgamento do caso Wandenkolk:

E a situação era tão grave e ameaçadora que os membros do Supremo Tribunal reuniram-se à véspera do julgamento do habeas corpus Wandenkolk. Eis como Rui Barbosa narra os fatos: “A maioria dos ministros daquela corte se reunira, na véspera, para assentar a sentença do outro dia. Um dos seus mais graduados membros, magistrado integérrimo, abatido pelo tormento do aspecto do horizonte, mandara, por um dos seus pares, magistrado também, instar comigo pela renúncia do habeas corpus requerido. A condescendência da decisão com os desejos do poder salvou, talvez, a vida aos ameaçados. Mas a sedição naval respondia, três dias depois, à tibieza da justiça, da mesma forma como, nos Estados Unidos, trinta e seis anos antes, a sentença de Taney, propícia ao cativeiro, abalando a confiança pública no grande tribunal da União, precipitou a guerra civil” (MANGABEIRA, 1999, p. 357).

Tem-se feito referência a um outro fator que teria levado o Supremo Tribunal Federal à decisão contrária aos presos políticos de 1892, qual seja, a falta de preparo intelectual dos seus Ministros para o trato com as questões novas de Direito que a República suscitou. Isso é debitado, antes de tudo, ao fato de a maioria dos quinze Ministros nomeados para a sua composição inicial ter origem no Supremo Tribunal de Justiça do Império e, também, à formação intelectual dos juristas da época, mais próxima das Ordenações Filipinas e do Direito Público francês do que do Direito norte-americano. Castro Nunes, por exemplo, ensina:

Nos primeiros tempos da República o Tribunal não tinha a consciência do seu papel no regime. Este representava para muitos dos juízes que o compunham e que traziam do Império uma bagagem intelectual copiosa e até brilhante, mas inadequada à compreensão das novas instituições, um sistema pouco conhecido e que teria de receber na órbita judiciária uma aplicação perturbada pelos preconceitos da educação jurídica haurida nas fontes romanas, reinícolas, nas tradições do antigo regime e nos expositores do direito público francês (NUNES, 1943, p. 168).

Esse mesmo pensamento é exposto por Brossard. Em discurso proferido na sessão solene do Supremo Tribunal Federal, realizada em novembro de 1989, em

comemoração ao Centenário da Proclamação da República, lembrando que o Brasil, em questão de horas, “mudara de face”, experimentara profundas transformações, inclusive no âmbito do Judiciário, o ex-Ministro produziu a seguinte reflexão a respeito dessa instituição judiciária:

O Supremo Tribunal Federal é uma criação da república, na medida em que o novo regime lhe conferiu atribuições que ele não tinha ao tempo do Império; convém notar, porém, que foi constituído mediante o aproveitamento de antigos membros do Supremo Tribunal de Justiça, que lhe formaram a maioria. Amadurecidos sob outro regime, bons conhecedores das Ordenações Filipinas, eram, no entanto, alheios às novidades do mecanismo americano importado com a república; era natural que lhe não sentissem as originalidades e não medissem suas virtualidades; em verdade, as instituições de inspiração norte-americana adotadas eram praticamente ignoradas entre nós (BROSSARD, 1991, p. 14).

Para ilustrar o grau de desconhecimento do papel das instituições novas criadas pela Constituição de 1891, em especial do Judiciário, e que as teses defendidas por Rui Barbosa “eram novidades chocantes para o Tribunal”, Brossard reproduz a seguinte narrativa do jurista baiano:

O que por aquele tempo se conhecia, no Brasil, das instituições aqui recém- adotadas, deu-no-lo a ver, certo dia, de um relance, o caso, que vamos contar.

Distinguia-se, então, no Supremo Tribunal Federal, entre os seus ministros, um magistrado que passava pelo mais instruído entre os seus pares, conta em que também o tínhamos, e temos. Notavelmente versado nas letras jurídicas, juiz do maior crédito profissional, fecundo argumentador e expositor, nas causas que relatava, ou discutia, chegara do norte com extraordinária nomeada, adquirida em brilhante carreira judiciária, e, nos pleitos de mais vulto, veio a ser aqui a bandeira e o guia daquela corte, que o prezava, talvez, como o seu melhor ornamento.

Um dia, encontrando-nos em um bonde, por sinal que na Praia do Flamengo, onde a esse tempo residíamos, nos interpelou ele com expressão de séria estranheza, perguntando:

Ouvi dizer que o senhor vai acionar a União, em nome dos militares e paisanos reformados e demitidos pelo Marechal Floriano, para obrigar o governo federal a reintegrá-los ou indenizá-los. Será possível?

Mas como?

Muito simples. É que, no regime de agora, não só os atos administrativos, mas até os legislativos, em sendo contrários à lei constitucional, são nulos, e a justiça é o poder competente, para lhes declarar a nulidade, pronunciando-lhes a inconstitucionalidade.

O meu interlocutor não se convenceu, obrigando-me a lhe apontar os textos da nova Constituição, onde estribava a minha tese, e assim nos separamos prometendo-lhe eu, para o familiarizar com a novidade, pô-lo em relação com a grande obra de Carson acerca da Suprema Corte dos Estados Unidos, obra de que daí a dias, lhe ofereci um exemplar.

Tempos depois esse ministro mergulhava a fundo no direito norte-americano, com as produções do qual sortiu em abundância a sua copiosa livraria; e essas noções, cuja primeira invocação entre nós tão extravagante lhe parecera, nele, como juiz, e, mais tarde, como advogado, vieram a ter um aplicador hábil, convencido e freqüente.

As nossas alegações na causa, trazidas, posteriormente, a lume no livro ‘Os atos inconstitucionais’, puseram a doutrina desses princípios ao alcance de todos, a ação movida por nós vingou em todos os trâmites do seu curso, e os nossos constituintes, civis ou militares, alcançaram a reparação devida.

Daí avante qualquer sujeito dava sota e az na matéria. Mas o espanto, que o meu atrevimento, à primeira notícia, causara a um dos mais celebrados luzeiros da nossa magistratura, evidenciava quão pouco se havia descido, até então, abaixo da superfície, na compreensão de normas constitucionais, que eram, entretanto, base fundamental do novo regime (RUI BARBOSA, apud BROSSARD, 1991, p. 15-16).

Esse diálogo ocorreu, segundo Brossard, logo após os decretos de Floriano Peixoto, de abril de 1892, com base nos quais foi declarado o estado de sítio no Distrito Federal, efetuadas as prisões e os desterros já referidos. O interlocutor de Rui Barbosa era Joaquim da Costa Barradas, relator do acórdão do Supremo Tribunal Federal, que julgou o HC nº 300.

Reforça a idéia de que o desanimador resultado do primeiro caso político levado ao Supremo Tribunal Federal deveu-se em grande parte à falta de familiaridade dos seus Ministros com o direito novo que o Brasil passou a experimentar com a República, a maneira equivocada com que o Relator Barradas, na justificação oral de seu voto, tratou a

doutrina das questões políticas, formulada por Marshall, no caso Marbury v. Madison. Dela dá notícia Rui Barbosa, em dois dos seus mais de vinte artigos publicados após o julgamento do HC nº 300. Num deles, diz:

Mas, relatando aos seus colegas o caso Marbury vs. Madison. s.ex. [o ministro Barradas] não pôde ser fiel à verdade. Percebia-se que o ilustre jurisconsulto possuía da matéria as informações superficiais e truncadas, que se obtém nos expositores mais conhecidos (RUI BARBOSA, 1956, p. 159).

O Relator Barradas havia feito referência ao precedente Marbury v. Madison com o intuito de mostrar que a Suprema Corte dos EUA, “num caso político”, havia declarado a sua incompetência, e que, em razão da similitude da hipótese posta no habeas corpus, deveria o Supremo Tribunal Federal decidir no mesmo sentido. Para demonstrar “a falácia dessa comparação”, que o caso julgado pela Suprema Corte em 1803 era diverso daquele decidido pelo Supremo Tribunal Federal, e, mais ainda, que Barradas incidira em grave erro quando expôs que a declaração de incompetência da Corte dera-se em virtude da natureza política do caso, Rui Barbosa fez minuciosa exposição do caso Marbury v. Madison, para, a certa altura, esclarecer:

Assim, o mandamus foi recusado, não pela incompetência constitucional da justiça, mas pela incompetência constitucional da Corte Suprema, para conhecer da questão em instância originária. A petição devia ser apresentada a um tribunal inferior, e só por via de recurso poderia chegar à Corte Suprema. MARSHALL reconheceu o direito de Marbury, reconheceu o poder da justiça, para obrigar o governo a respeitá-lo, indeferindo o requerimento unicamente por erro do peticionário na escolha do tribunal, que devia julgá-lo (RUI BARBOSA, 1956, p. 164-165).

O ambiente do Supremo Tribunal Federal, nessa época, era de “deplorável confusão de idéias”, como bem definiu Manoel Murtinho, ao proferir seu voto no habeas corpus impetrado contra o sítio decretado em 1897 (COSTA, 1964, p. 46). Não havia efetivamente consciência da maioria dos seus Ministros da relevância das funções do Tribunal para a estabilidade da República. Isso só foi percebido na medida em que Rui

Barbosa, vendo que a mudança das instituições reclamava também a mudança de mentalidade, que os direitos individuais corriam sérios riscos com um Judiciário submisso ao poder político, propôs-se a doutrinar a respeito da nova ordem, chamando sempre a atenção para a necessidade da independência e força moral dos Ministros. No tocante às questões políticas, o esforço que fez para ensinar, explicitar, aclarar a doutrina de Marshall não teve como principal objetivo justificar a ausência do Judiciário nessas questões. Seu zelo maior foi pela ressalva à fórmula, ou seja, que ao Judiciário incumbia a proteção dos direitos individuais, não importando as circunstâncias em que tivessem sido violados51.

51 É de Levi Carneiro este comentário: “Na petição de habeas corpus e nos debates subseqüentes, proclama

Rui Barbosa alguns dos princípios que mais caros lhe seriam e a que, por toda a vida, se dedicaria. Não triunfantes desde logo, em breve começariam a ter a consagração da jurisprudência do mais alto tribunal e, por fim, até dos textos constitucionais. Dentre eles, avulta o que aponta como ‘fundamental de todas as constituições livres: onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça’. É a expressão de sua constante confiança no Poder Judiciário e da missão decisiva, que lhe reconhece, de equilíbrio e salvaguarda do regime federativo” (CARNEIRO, 1956, p. 24).