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Da alegoria à fantasia: a trajetória da baiana de Carmen Miranda

CAPÍTULO 5 – HAVE YOU EVER DANCE IN THE TROPICS?

5.4 Da alegoria à fantasia: a trajetória da baiana de Carmen Miranda

Como vimos, para Zumthor (2007), “performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à atualidade” (ZUMTHOR, 2007, p. 31 ). Para tanto é necessário a presença de um corpo dotado uma competência, mas não um savoire-faire, mas um “saber-ser”. Esse “saber- ser” implica e comanda a presença e a conduta. O autor afirma isso após identificar as origens do termo que se estabeleceu a partir do momento em que foi visto pelos etnógrafos como noção central nos estudos da comunicação oral. Historiador medievalista, Zumthor percebe que as regras de performance (que leva em consideração o tempo, a finalidade de transmissão, a ação do locutor e a resposta do público), são tão importantes para a comunicação quanto as regras textuais de ordem escrita. Dessa forma, não apenas o que está escrito, o que é documentado como oficial tem importância histórica: o audiovisual também tem importância na construção da identidade. Ambos os vieses de construção de identidade são passíveis de enveredar por retóricas holísticas, elegendo as memórias a serem comunicadas de acordo com os objetivos de quem as selecionam.

Tanto na letra das canções como no canto e na voz, esse saber-ser da cicerone Carmen Miranda reivindica em sua presença e na conduta dessas memórias um Brasil múltiplo e harmônico, sem que as diferenças incidam em conflito. O que por um lado não é compartilhado pela maioria da sociedade brasileira, mas por outro é aceito internacionalmente por ter uma aura oficial.

Vimos no capítulo anterior que performance modifica o que é transmitido. “Ela não é simplesmente um meio de comunicação, ela é um meio de comunicação: comunicando, ela o marca” (ZUMTHOR, 2007, p. 32). Carmen Miranda, nos filmes americanos, constrói um novo personagem toda vez que se vestia de baiana. Esse personagem é marcado por seus traços biográficos porque faz parte de sua carreira, mas

aquela figura ali já não é mais a cantora de sambas e marchas que teve grande sucesso na dita “Era do rádio” no Brasil, tampouco a alegoria a transformava em baiana de fato: surge um novo objeto que ainda é marcado por um mosaico cultural que se oficializou como “nacional”. Com essa visão difundida, torna-se difícil alguém que não conhece a performance “original” da baiana conseguir percebê-la de outra forma senão a performatizada por Carmen Miranda.

A baiana começou a ser utilizada na fantasiosa produção Banana da Terra. O filme tinha como mote a história da ilha Bananolândia, situada no Pacífico, que vivia da produção de bananas, mas que estava passando por uma crise e precisava vender as frutas para o Brasil para conseguir prosperar. Quem dirigiu o filme foi o compositor João de Barrro, o Braguinha, que tinha ampla experiência na dublagem de desenhos dos estúdios de Walt Disney. Desse fato extraímos algumas pistas das influências das experiências de Braguinha no longa.A fantasia do argumento principal do filmes se aproximava das histórias fantásticas dos desenhos animados.

Visualmente, Banana da terra tem poucos atrativos. As sequências musicais são o que dão a dinâmica do filme. Mas é nele que percebemos a virada na carreira de Carmen Miranda. Foi a primeira e única vez que usou a alegoria de baiana em filmes brasileiros e usou especificamente para a sequência musical de O que é que a baiana

tem e partir daí criou-se um mito baseado nessa performance.

Como podemos perceber na imagem a seguir (FIG. 15), Em 1935, o filme

Alô, carnaval trazia a atriz e cantora com outro ornamento carnavalesco, não

necessariamente uma fantasia, apenas uma roupa com destaque no brilho, de um período em que ainda se podia ver o cabelo, cena rara na memória dos brasileiros. Na performance de Querido Adão, sequência musical de maior destaque no filme, os movimentos da cantora são mais elásticos e ela usa toda a extensão do palco para interpretar a marchinha cujo tema era a parábola do pecado original. Em Querido Adão, Carmen usa calças longas e uma blusa igualmente folgada, enquanto que em O que é

que a baiana tem seus movimentos são contidos em decorrência do peso de seu traje e

do curto espaço destinado a encenação. Certas saias da cantora chegavam a pesar doze quilos, os turbantes pesavam, em média, cinco quilos, os brincos eram feitos com madeira pesada (CASTRO, 2005, p. 279).

É evidente a preocupação de Carmen Miranda com os acessórios que traz no figurino. O eminente perigo de algum se deslocar ou cair travam alguns movimentos, principalmente os da cabeça, que segura um turbante, que não foi o maior colocado em

sua cabeça durante a carreira, mas talvez Carmen Miranda ainda não tivesse destreza para portá-lo com segurança. Ao contrário de Querido Adão, performance na qual seus movimentos são muito mais elásticos.

FIGURA 15 – Movimentos

FONTE: Frames de Alô, amigos (1935) e Banana da terra (1938)

Carmen Miranda estava, até o lançamento de Banana da Terra, há quase dez anos encenando um personagem que pouco variava e que eram baseados em sua própria biografia: eram cantoras do rádio que se apresentam em casas de show famosas e cassinos. Com a baiana, um novo texto começa a ganhar sentido no corpo de Carmen Miranda e o seu corpo deixou marcas no imaginário nacional acerca do que é a baiana. Vimos no primeiro capítulo dessa pesquisa que foram as baianas migrantes que inauguraram as festas religiosas e disseminaram o samba no Rio de Janeiro. E por estarem nas origens sociais desse gênero musical, tiveram destaque que sustentam até hoje nas escolas de samba, com uma ala as destacando. A idealização de uma baiana opulenta contrasta com a realidade social dessas migrantes, mas a construção do imaginário rico acerca desse personagem se deu em grande parte às representações da canção de Caymmi e da performance de Carmen Miranda. A baiana da luso-brasileira era opulenta, dominava os códigos do modus operandis daquelas mulheres e se legitimava midiaticamente por ser branca, distante da baiana migrante, mas próxima de ícone do progresso e da civilização, afinal:

Mesmo que de maneira virtual, a performance está ligada a um processo comunicacional que pressupõe uma audiência e um determinado ambiente musical. Assim, a performance define um processo de produção de sentido e conseqüentemente, de comunicação, que pressupõe regras formais e ritualizações partilhados por produtores, músicos e audiência, direcionando certas experiências frente aos diversos gêneros musicais da cultura contemporânea (JANOTTI JR apud SOARES, 2009, p. 177).

Existia, dessa forma, uma tensão entre a baiana performatizada e o cotidiano das baianas, mas como estas, na lógica do consumo, figuravam como outsiders, a performance tinha que se fazer reconhecível e aceitável aos estabelecidos, o que evidenciava as diferenças, mas evitava polêmicas.

Os filmes produzidos pela Fox nos quais Carmen Miranda participou tiveram o aspecto visual enriquecido com a técnica do tecnicolor, que consistia em capturar as imagens em filmes com quatro cores para tornar a película colorida. A técnica potencializou a representação da opulência da baiana com os brilhos dos tecidos do seu figurino, com a maquiagem marcando os lábios e os olhos e nos adereços para as orelhas e pulso. Tanto a baiana de Irving Cummings quanto a de Braguinha a alegoria da baiana rica era a forma de incidir luz sobre aquele elemento de uma região específica, permeada desse status de lugar fundador do Brasil. Classificamos como alegoria por acreditarmos que, em um nível mais profundo de interpretação, podemos perceber que, de certa forma, ali está um objeto representado para dar a ideia de outro: a baiana era o personagem que representava a riqueza de uma região ao mesmo tempo em que tinha em si, principalmente quando performatizada por Carmen Miranda, o sincretismo multicultural ideal para o reforço das representações escolhidas para compor a retórica holística sobre a identidade nacional brasileira. Isso se justifica no fato de Banana da terra estar inserida em uma política nacionalista do governo de Getúlio Vargas e Uma noite no Rio fazer parte da política de boa vizinhança fazendo com que ambas as baianas figurassem como estandartes da cultura brasileira: era um personagem sintetizando uma cultura.

É importante destacar também que Uma noite no Rio foi produzido após

Serenata tropical, filme esse que causou mal estar diplomático entre Estados Unidos e

Argentina, portanto as representações do país apresentado em Uma noite no Rio tentavam retratar a cultura brasileira de forma menos equivocada. Assim, a baiana de Cummings destoava pouco da de Braguinha.

Em Entre a loura e a morena, de 1943, Carmen Miranda foi apresentada ao sexto diretor em sua carreira, terceiro nos Estados Unidos, o coreógrafo Busby Berkeley. Foi no filme dele que a baiana foi passando de uma alegoria da cultura brasileira para uma fantasia fruto da imaginação de Berkeley. Como percebeu Castro (2005, p. 358), “a maioria dos vestidos e chapéus que (Berkeley) criou para Carmen bem Entre a loura e a morena estava tão distante da concepção original das baianas que

só os arqueólogos enxergariam uma conexão – a partir dali, as batas e balangandãs, por exemplo, se foram para sempre” (CASTRO, 2005, p. 358).

Como nunca havia trabalhado com a técnica do tecnicolor em seus filmes, Berkeley aproveitou para usar esse recurso ao máximo. Carmen Miranda foi importante nesse sentido: sua vibração de cores na maquiagem e no figurino daria destaque visual à película, por isso Berkeley se deu uma licença artística desprezando as regras antes estabelecidas para a representação da baiana para seguir sua imaginação, apoiado na revolução das cores trazida pelo tecnicolor. A representação da baiana vai, portanto, de uma alegoria de Banana da terra e Uma noite no Rio, para uma fantasia em Entre a

Loura e a morena (FIG. 16).

FIGURA 16 – Baianas

FONTE: Frames de Banana da terra (1938), Uma noite no Rio (1941) e Entre a loura e a morena (1943)

Percebemos também que existe uma mudança de postura da baiana nos Estados Unidos. Em Chica chica boom chic, a baiana é cordial, clama por proteção do militar interpretado por Don Ameche enquanto que em Entre a loura e a morena, lançado três anos depois de Uma noite no Rio, as sequências musicais, especialmente em The lady in the tutti frutti hat, trazem uma baiana mais sensual, quase erótica, trazendo bananas eréteis e morangos numa simulação de coito.

A marca de Berkeley como diretor era combinar o elemento humano com os acessórios em cenas longas, sem cortes que necessitavam de habilidade no uso das câmeras uma vez que não existia zoom à época (CASTRO, 2005, p. 355). Não raro, o elemento humano era colocado literalmente como suporte para os adereços. A luz entrava como elemento fundamental nessa forma de conduzir a cena, como podemos ver na imagem abaixo (FIG. 17), da sequência final de Entre a loura e a morena.

FIGURA 17 – As luzes de Berkeley

Fonte: Frames de Entre a Loura e a Morena (1943)

Tecemos até aqui análises ligadas a questões acerca dos gêneros musicais, das composições, das vozes e dos trajes. Portanto, para completarmos a análise, é importante destacar que essas baianas performatizadas por Carmen Miranda possuíam um corpo que se exibia de forma particular estabelecendo uma dança e apresentando gestos que completavam a performance do cicerone nas representações do Brasil nas sequências musicais que destacamos nessa pesquisa. Partimos agora para a discussão acerca das memórias impressas nesse corpo e que terá seu sentido estabelecido a partir da dança e dos gestos de Carmen Miranda. Mais uma vez iremos usar da comparação para percebermos as rupturas e as continuidades desses elementos na performance desse cicerone, tentando principalmente, perceber a configuração das memórias regionais e as retóricas holísticas impressas nos gestos e na dança.