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Da Bossa Nova à Tropicália

No documento Arnaldo Antunes, trovador multimídia (páginas 113-117)

A prática de misturas estilísticas caracteriza a cultura popular, tornando-se vital para sua existência; e, no caso brasileiro, percebe-se, inclusive, uma tradição de os gêneros musicais trocarem informações entre si a ponto de o presente sempre se alimentar do passado, embora isso ocorra de forma diferenciada ao longo de nossa história. No final dos anos 1950, desenvolveu-se no Brasil um estilo musical que se convencionou chamar de Bossa Nova. De uma forma geral, nessa época os músicos se voltaram para a pesquisa de um estilo musical compatível com as novas linguagens que se desenvolviam no Brasil e no exterior, criando, assim, um ritmo e uma harmonia inusitados ao romperem, principalmente, com um tipo de sensibilidade ligada aos excessos, já arraigada na Canção Popular Brasileira.

Dessa maneira, foram rejeitados pelos bossanovistas os arranjos aparatosos de violinos e metais, os quais, desde os anos 1930, substituíram as regionais200; bem como também o foram as orquestrações com grande variedade de instrumentos musicais, concepção de Pixinguinha e Radamés Gnattali, quando arranjadores da gravadora Victor. Da mesma forma ocorreu em termos vocais, ou seja, a performance dos cantores que, nos anos 1940 e 1950, obedecia ao estilo operístico, soltando a voz e exibindo-a com floreios, em apresentações exuberantes que mitificavam o artista, também foi rejeitada. Nesse contexto, a liderança de João Gilberto é reconhecida, principalmente por seu cantar à meia voz, sentado em seu banquinho, sem ênfase emotiva e, sobretudo, por sua famosa “batida” no violão - performance diferente, por exemplo, das que aconteciam no palco da Rádio Nacional.

Assim, segundo Santuza Cambraia Naves, as canções que inauguram a Bossa Nova - “Desafinado”, de 1958 e “Samba de uma nota só”, de 1960 - ambas de Tom Jobim e Newton Mendonça, são transformadas pela interpretação de estilo conciso e racional de João Gilberto. Ainda de acordo com a pesquisadora, “João introduz, a partir de uma releitura do samba tradicional, não só uma harmonia peculiar como também uma maneira não-usual de lidar com a voz e o violão. Uma e outro se

200 “...conjuntos pobres em termos de instrumentação e que apenas serviam de base para orientar o intérprete. (...) Assim, em vez da tosca simplicidade dos regionais, a canção popular passou a receber orquestrações ricas de sopros e cordas, em que os instrumentos não eram mais utilizados para ‘dar o tom’ e sim, de maneira contrapontística, para possibilitar uma relação mais complexa entre o intérprete e os instrumentos”. NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.10/11.

integram, provocando uma tensão criativa; dessa maneira, o violão já não atua apenas como acompanhamento”:

A grande orquestra é substituída por um conjunto menor, mais camerístico: violão, piano, percussão e baixo. Também a voz segue este parâmetro intimista, passando a se colocar de outra maneira: é uma voz pequena, que dialoga com o instrumento musical em vez de exibir sua própria potência. 201

No mesmo contexto, Tom Jobim, mesmo com formação musical erudita, realizou os mais variados experimentos na canção popular. Diferentemente da objetividade de João Gilberto, muito próxima às propostas da Poesia Concreta, bem como do construtivismo de arquitetos e artistas plásticos da época, o estilo de Tom Jobim se voltava para os recursos sinfônicos, “a partir do ponto de vista do modernismo musical, representado, por exemplo, por Villa-Lobos”, ainda conforme Santuza Cambraia Naves. Dessa maneira, João Gilberto - com o ritmo e a batida - e Tom Jobim - com sua harmonia requintada -, trouxeram para a Bossa Nova contribuições específicas, mas que se complementavam.

Canção também emblemática da Bossa Nova, principalmente depois de gravada por João Gilberto, “Chega de Saudade”, de 1958, é parceria de Vinicius de Moraes com Tom Jobim e pertencente à fase heroica do movimento. E, como em “Desafinado” e “Samba de uma nota só”, nessa canção há completa integração entre letra e música. Para tanto, “Chega de Saudade” se divide em duas partes bem definidas pela sonoridade, bem como pela dualidade do amor, ou seja, alegria e tristeza como resultado de união e separação. Dessa maneira, a primeira parte da canção, em modo menor, associado geralmente à tristeza, trata da separação; e a segunda, em modo maior, associado à alegria, trata da esperança de retorno da mulher amada: “mas se ela voltar, se ela voltar/ que coisa linda, que coisa louca/ pois há menos peixinhos a nadar no mar/ do que os beijinhos que eu darei/ na sua boca”.202

No início da década seguinte, a Bossa Nova, estilo musical bastante referenciado à Zona Sul do Rio de Janeiro, começa a ter projeção internacional. Em 1962, músicos norte-americanos, o saxofonista Stan Getz e o guitarrista Charlie Byrd, dão à canção “Desafinado”, versão instrumental e; no mesmo ano, vários músicos brasileiros se

201 Op. Cit. p. 13.

apresentaram na sala de espetáculos Carnegie Hall203, em Nova York, o que resultou no disco Bossa Nova at Carnegie Hall. Além disso, músicos de renome, tais como Ella Fitzgerald, Miles Davis, Sarah Vaughan, Herbie Mann e Gerry Mulligan, gravaram composições bossanovistas nos Estados Unidos. E, em 1967, Tom Jobim grava com Frank Sinatra o disco Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, que eterniza a canção “Garota de Ipanema”.

Nessa mesma época, entretanto, o movimento começa a declinar com a introdução de novas informações na Canção Popular Brasileira, embora isso não significasse o fenecimento do estilo. Afastando-se do clima intimista de Ipanema, espaço conhecido como “Beco das Garrafas”, em Copacabana, desenvolveu estilo musical que se utilizava de vários instrumentos jazzísticos, bem como de interpretação mais expansiva, com performances de artistas como Elis Regina, Wilson Simonal, Jorge Ben e Leny Andrade, por exemplo. Além disso, pocket-shows, dirigidos por Luís Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, com declamação, dança e humor, intercalavam as apresentações musicais do “Beco”. Nesse contexto de misturas, surge também a pareceria de Baden Powell com Vinicius de Moraes em composições influenciadas por ritmos baianos, tais como pontos de candomblé, rodas-de-samba e toques de capoeira; bem como dos violonistas espanhóis de orientação modernista.

Ainda nos anos 1960, marcados pelo otimismo do governo de Juscelino Kubitscheck e pela construção de Brasília, síntese de sua utopia desenvolvimentista, novas questões apareceram no debate político e cultural, as quais já haviam sido gestadas nos anos 1940, por intelectuais preocupados com a nossa condição de subdesenvolvimento, ligados, na época, à Comissão Econômica para América Latina, Cepal. Com ideologia semelhante e em busca de transformações sociais, em 1961, é criado o Centro Popular de Cultura, CPC, formado por jovens artistas engajados e universitários, comprometidos com uma política cultural que se acreditava mais consciente. Nesse contexto, são rejeitadas, por exemplo, estéticas consumidas pela elite, e valorizadas as canções populares consideradas afinadas com questões políticas, sociais e, sobretudo, com os postulados nacionalistas.

203 “João Gilberto, Tom Jobim, Luiz Bonfá, Oscar Castro Neves (e seu conjunto), Agostinho dos Santos, Sérgio Ricardo, Carlos Lyra, o sexteto Bossa Rio, Roberto Menescal, Milton Banana, Normando Santos, Bola Sete, Carmen Costa, José Paulo (ritmista) e Chico Feitosa.” NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.24.

Prenunciando o surgimento do construto Música Popular Brasileira, MPB, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, por exemplo, criam musicalidade que concilia o cosmopolitismo da Bossa Nova ao discurso nacionalista. Entre diversos projetos políticos, Carlos Lyra, quando diretor musical do Teatro de Arena, levou para o palco os músicos populares com os quais teve contato na direção do CPC da União Nacional dos Estudantes, UNE. E Sérgio Ricardo, com estética politizada envolvida com o cinema e o teatro, compôs trilha sonora para o filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Nesse contexto, com discussão política acentuada pelo golpe militar, em 1964, surge a chamada “canção de protesto”. E, mais tarde, no III Festival Internacional da Canção, em 1968, Geraldo Vandré tornou-se símbolo desse estilo, com os versos bem marcados de “Pra não dizer que não falei de flores ou Caminhando”: “caminhando e cantando e seguindo a canção somos todos iguais braços dados ou não”.

De uma forma geral, depois de 1965, os festivais lançaram artistas que, mesmo

promovendo rupturas, retomavam lições da Bossa Nova, cada qual à sua maneira. Chico Buarque de Hollanda, Edu Lobo, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil são alguns dos nomes presentes nesses eventos promovidos inicialmente pela TV Record e, depois, pela TV Globo. E, após o ano de 1967, mesmo com a famosa passeata contra a guitarra elétrica, o pop, que misturava o erudito e o popular, discutindo também questões estéticas e políticas, começou a fazer parte da Canção Popular Brasileira, de forma cada vez mais assumida pelos artistas. Segundo Luiz Tatit, a exemplo do que ocorre na música pop anglo-americana, de Bob Dylan a John Lennon, cujos versos de apelos humanos e críticos, bem como a sonoridade elétrica são promovidos pela indústria do disco; surgem também no Brasil “formas independentes e alternativas de convivência com a inexorável realidade capitalista, além da necessidade urgente de reformulação dos anseios ideológicos do século, até então consolidados no confronto da ‘direita’ com a ‘esquerda’.”

Se a simplicidade musical do iê iê iê de Roberto Carlos em nada lembrava as soluções avançadas que a bossa nova propôs ao samba, a comparação do modo de compor rocks no formato da jovem guarda com o modo de compor marchinhas no formato carnavalesco não era totalmente descabida. O emprego de acordes consonantes e as oscilações exclusivamente diatônicas da melodia eram pontos em comum que aproximavam os dois artesanatos e produziam uma certa ambiguidade na audição final. Por trás do pop ‘comercial’, como era visto o iê iê iê típico, havia o pop brasileiro

tradicional – a marchinha sempre foi mais pop que o samba – que lhe dava certa autenticidade. Não importa o quanto esse aspecto era consciente na produção de Caetano. O fato é que ‘Alegria Alegria’, que já flertava com a jovem guarda, trazia a chancela da marcha (talvez por flertar também com ‘A Banda’ de Chico Buarque), ‘É proibido proibir’ iniciava-se com sinais da marcha que depois se dissipavam e ‘Baby’ conservava no arranjo de Rogério Duprat uma levada mais lenta de marcha – algo em torno da marcha-rancho – que ‘zelava’ por sua feição de música brasileira. No entanto, seu diálogo principal era nitidamente travado com a canção pop norte-americana. Nem a melodia, nem a letra, nem o título da composição escondiam esse propósito. 204

Nessa perspectiva, no final dos anos 1960, havia uma tendência de se pensar criticamente a arte e a cultura brasileiras a partir de uma nova relação com a diferença. A Tropicália compromete-se, portanto, com todos os aspectos da realidade nacional, como o erudito e o popular, o rural e o urbano, o nacional e o estrangeiro, o brega e o

cool, a tradição e a vanguarda, agregando, inclusive, elementos de diversos gêneros

musicais e categorias artísticas. Dessa maneira, em muitas canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil esses aspectos se entrecruzam. Nas canções “Clara” e “Baby”205, por exemplo, encontra-se, por um lado, sofisticação harmônica, melódica e poética na primeira; e, por outro, singeleza irônica, na segunda. Além disso, “a Tropicália se esforça por demolir outra oposição marcante: entre a linguagem acessível da música popular e a metalinguagem erudita da crítica (e da literatura)”, conforme Santuza Cambraia Naves em Da Bossa Nova à Tropicália.

No documento Arnaldo Antunes, trovador multimídia (páginas 113-117)

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