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CAPÍTULO 4. EM CONCLUSÃO: A DINÂMICA DE CONSTITUIÇÃO DO

4.1. DA COMUNIDADE À COMUNIDADE

Nos diálogos em que a comunidade constrói sentido com relação a ela mesma, os termos “quilombo” e “quilombola” são utilizados para fazer menção a um fenômeno recente em seu cotidiano. Fica claro que a identificação da comunidade não é com os termos, mas com a referência à ancestralidade negra a que ele remete e aos direitos que a Constituição lhes garante. A identificação como remanescente de quilombo, da mesma forma, é recente, e atribuída à política pública de titulação dos territórios dessas comunidades. O pouco uso do termo no cotidiano e a falta de familiaridade com o mesmo, trocado frequentemente por palavras semelhantes, demonstram que, antes da política pública, o sentido de comunidade se dava baseado em outras relações e identificações, que não de remanescentes de quilombo.

Dentre os aspectos operados pela comunidade para descrever sua etnicidade, essência da identidade compartilhada e baseada na ancestralidade negra, a família assume um papel de destaque. Em suas manifestações, ela aparece como o correlato discursivo da própria ideia de comunidade, descrita como sendo uma grande família. São as relações de parentesco que objetivam a descendência dos ex-escravos da fazenda do Morro Alto e legitimam o direito ao território às novas gerações.

No entanto, essa grande família, como se considera a comunidade, não se restringe exclusivamente às relações de parentesco. Pessoas “de fora” são acolhidas e passam a fazer parte da comunidade de direito, uma vez que vivam em

harmonia com a comunidade negra, apoiem sua luta e compartilhem do sentimento de irmandade. Assim se constituem diversos parceiros da comunidade, alguns de tal forma incorporados ao cotidiano da localidade que hoje fazem parte da Associação e são autodeclarados quilombolas.

O caso do morador africano acolhido pela comunidade reflete bem essas relações de parceria na qual vínculos comunitários são estabelecidos. Sua presença representa objetivamente a etnicidade que vem sendo construída pela comunidade na atribuição de sentido ao processo de identificação como quilombola. O tom da pele, mais preto do que qualquer um da comunidade, o forte sotaque e as indumentárias africanas conferem à sua figura um caráter de entidade, a qual expressaria as origens da comunidade. A ideia de ensinar um idioma africano aos quilombolas é uma forma de acionar elementos da cultura africana no cotidiano dos demais moradores locais.

A origem africana através da descendência direta dos ex-escravos constitui um dos principais vínculos com o território. Os escravos libertos permaneceram pelos morros e pelas principais áreas da antiga fazenda. Dessa forma, as famílias foram se consolidando e construindo elos por todo o território. Os espaços são frequentemente acionados para referenciar as histórias, origens e movimentos das famílias pelos morros. O vínculo entre as diferentes localidades é justificado pela ocupação e movimento das famílias através desses espaços.

Quando uma senhora conta que sua avó, ex-escrava de Rosa Osório Marques, foi "caçada no mato a cachorro", apontando para o morro em frente à sua casa, está produzindo um discurso que territorializa. Sua fala expressa a ancestralidade através da descendência e o vínculo com os morros, que já se fazia presente nos tempos da sua avó e até hoje constitui o seu território.

O território quilombola é descrito pela comunidade a partir de marcos e espaços da mesma forma relacionados aos tempos da fazenda e dos antigos. Os cemitérios onde estão enterrados seus antepassados são apontados como os principais limites físicos. Os morros, assim como as lagoas, também são cenários de muitas histórias e surgem sempre associados a deslocamento, subsistência e refúgio para fugas e esconderijos. As ruínas de construções da fazenda, como as

senzalas, casas grandes e o chão das casas mais antigas, são preservados e referidos como marcos importantes do território da comunidade, com potencial de exploração turística.

A ancestralidade negra se manifesta ainda em ações da comunidade, principalmente das mulheres, no sentido de resgatar técnicas, saberes e práticas dos antepassados que foram, aos poucos, se perdendo com a modernidade. As bonecas de pano negras, os cobertores de trapo e o artesanato com fibras de bananeira expressam uma cultura, um saber que se perpetuou ao longo das gerações, mas que, enquanto prática, foi esquecida.

A condição quilombola, consolidada pela autoidentificação da comunidade como tal, encontra seu espaço de evidência nos discursos dessa comunidade. O Maçambique, o artesanato com fibras locais, as histórias, mitos e tradições, mantidos por gerações, são as principais manifestações discursivas que estabelecem os aspectos formadores da etnicidade no processo de identificação da comunidade como remanescente de quilombo. Nos projetos e planos para o desenvolvimento do território, principalmente com relação ao turismo, a identidade étnica é vista como um modo de vida típico, embora não fique muito claro que elementos garantem essa peculiaridade. Nos discursos cotidianos e nas assembleias, as principais referências a um cotidiano quilombola estão relacionadas à rusticidade, em referência ao modo de vida de seus ancestrais.

Em última análise, o que se percebe é que a comunidade atribui aos quilombos, enquanto política de reconhecimento, uma mudança de rumo na sua história e na relação com o território. O longo processo de negociação com o Estado, desde a abertura do processo de identificação e titulação do território junto ao INCRA em 2001, desencadeou uma intensa transformação na forma de organização da comunidade a partir da tomada de consciência de sua condição social enquanto comunidade de direitos. As assembleias mensais entraram para o cotidiano e as discussões que ali eram proporcionadas influenciaram intensamente os processos de territorialização e identificação enquanto comunidade quilombola.

Os vínculos sociais, as relações de parentesco, as tradições do território e diversos outros elementos que constituem sua história coletiva passaram a ser

ressignificados e compartilhados, constituindo, assim, uma identificação coletiva que repercute diretamente em seu processo de territorialização.

No entanto, durante todo o período em campo, a autoafirmação enquanto comunidade quilombola, descendente dos antigos escravos de Rosa Osório Marques, injustiçados no passado por não receberem do Estado as terras deixadas por ela em testamento, aparece claramente presente no seu cotidiano discursivo. Por mais que o termo “quilombo” não seja o mais utilizado para explicitar essa condição, a referência constante a uma ancestralidade negra que conecta a comunidade ao seu território e ressalta seu espírito de grupo e de luta surge como o principal atributo que, segundo a comunidade, os legitimam como tal.

Na construção do sentido quilombola, a comunidade orienta-se ao passado para reconhecer na família, na história, na cultura e no modo de vida dos antepassados elementos formadores de uma identidade étnica compartilhada. A etnicidade, construída com base em elementos de seu cotidiano que têm origem ou remetem à ancestralidade negra, é acionada para construir referências de um território quilombola.

No processo de territorialização, a comunidade, ou seja, a grande família que descende dos ex-escravos e as pessoas que assim se identificam, é considerada tanto como o elo fundamental com os ancestrais, como a entidade a partir da qual seus valores e sua cultura se perpetuaram no território, o qual é referido discursivamente como a grande referência existencial da comunidade.