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DA COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO

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CAPÍTULO 2 A EDUCAÇÃO, O PENSAR E A FILOSOFIA PARA CRIANÇAS

2.6 DA COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO

Adentramos finalmente, outro importante ponto da teoria lipmaniana de Filosofia para Crianças: a transformação da sala de aula em uma comunidade de investigação 85. Apesar de a expressão ter sido, inicialmente, reservada aos profissionais dedicados à investigação científica, Lipman (1995), acredita que uma comunidade de investigação, bem pode ser formada, desde que os membros que a componham, estejam igualmente dispostos a usar os mesmos procedimentos no sentido de alcançar alvos análogos.

Podemos [...] falar em ‘converter a sala de aula em uma comunidade de investigação’ na qual os alunos dividem opiniões com respeito, desenvolvem questões a partir das idéias de outros, desafiam-se entre si para fornecer razões a opiniões até então não apoiadas, auxiliarem uns aos outros ao fazer inferências daquilo que foi afirmado e buscar identificar as suposições de cada um. Uma comunidade de investigação tenta acompanhar a investigação pelo caminho que esta conduz ao invés de ser limitada pelas linhas divisórias das disciplinas existentes. Trata-se de um diálogo que busca harmonizar-se com a lógica, seguindo adiante indiretamente como um barco navegando contra o vento, mas no processo seu progresso assemelha-se àquele do próprio pensamento. Consequentemente, quando este processo é internalizado ou introjetado pelos participantes, estes passam a pensar em movimentos que se assemelham a procedimentos. Eles passam a pensar como o processo pensa (LIPMAN, 1995, p. 31-32).

Como podemos ver, a afirmação de Matthew Lipman nos mostra alguns aspectos de uma comunidade de investigação no contexto escolar. Ao propor uma educação que seja diferente do modelo tradicional de ensino, por priorizar a forma e a capacidade do aluno pensar, ao invés de um mero acúmulo de informações desprovidas de um legítimo significado, o caminho apontado por nosso autor, conforme já o dissemos, é o ensino da Filosofia desde as séries iniciais. Para Lipman, o cultivo do pensar bem constitui um dos atributos fundamentais da Filosofia. “Se desejamos estudantes competentes em habilidades primárias de raciocínio – e sem elas não pode haver competência nas habilidades cognitivas de ordem superior – não temos outra escolha senão a Filosofia” (LIPMAN, 1995, p. 28). O trabalho com a Filosofia na escola, no sentido de estimular e incentivar o pensar excelente dos alunos, por meio do desenvolvimento das habilidades cognitivas, só será possível diante da mudança do tradicional modelo de salas de aula pelas comunidades de investigação. Faz parte do processo filosófico não a

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Lipman (1995, p. 31) se utiliza desse termo – em inglês: community of inquiry – considerando, no entanto, tratar-se de um termo cunhado por Charles Sanders Peirce,

mera investigação, mas a investigação dialógica. Quando este processo é apontado como uma forma de habilitar a criança no pensar de ordem superior, na verdade, é porque seu espírito inquisitivo lhe confere o título de reflexivo, pois motiva os alunos, não somente a pensarem sobre as coisas de modo geral, mas principalmente sobre o seu próprio modo de pensar. Fazer Filosofia implica em esclarecer conceitos analisando os significados em busca da verdade. Por isso, para Lipman (1995, p. 18), “a Filosofia tem sido tradicionalmente caracterizada como um pensar que se dedica ao aprimoramento do pensamento”.

Esse movimento autocorretivo da Filosofia consolida-se, como já assinalamos, nas discussões que ela produz. Tais discussões se constituem dentro de diálogos; são estes que dão corpo às discussões, sustentando nosso pensamento, assentados [os diálogos] principalmente, em procedimentos que prezam a organização e o respeito mútuo entre os participantes. Um grupo de alunos que interage entre si, por meio do diálogo, tem a oportunidade de compartilhar da ajuda e da compreensão de cada membro do grupo no enfrentamento da problemática experimentada, a fim de transformar a situação em que se encontram, e consequentemente, aprimorar sua maneira de refletir frente aos problemas.

Para Lipman (1990), a mudança na forma do pensar dos alunos deve conduzi-los a um pensar criativo e crítico, ou seja, o pensar de ordem superior. Isso tudo implica necessariamente, que a organização das maneiras de pensar é o atalho para que possamos atingir tal objetivo; organizar o pensamento por meio da organização da fala, entendendo aqui, o pensamento como fala interiorizada 86. Como então organizar nossa fala interiorizada se não por meio do diálogo?

O único modo de chegar ao pensamento é chegar à sua origem, ou matriz, que é o diálogo. [...] então, se o diálogo é a matriz do pensamento, [...] podemos estimular o diálogo ensinando as crianças a discutir Filosofia na sala de aula [ ] quer dizer, para estimular o discurso, é preciso haver uma comunidade discursiva [...] (LIPMAN, 1990, p. 34).

Percebemos o valor educativo do diálogo para o desenvolvimento do pensamento mais habilidoso. O diálogo enquanto interação sócio-linguística, é

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Respaldamos nossa afirmação na premissa vigotskiana, já citada no capítulo 1 desse estudo. Em seu livro Pensamento e Linguagem (1998, p. 62), Vygotsky assevera que “O desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos lingüísticos do pensamento e pela experiência sócio-cultural da criança. Basicamente, o desenvolvimento da fala interior depende de fatores externos: o desenvolvimento da lógica na criança [...] é uma função direta de sua fala socializada”.

fundamentalmente importante em todo esse processo. Lorieri (Comunicação Pessoal87, 2001), nos diz da importância das conversas com nossas crianças, porém nos adverte para a qualidade das mesmas – ele não sugere ‘qualquer’ conversa – mas sim, conversas organizadas de modo a proferirmos bons diálogos com os alunos no contexto da sala de aula. Sobre isso, Lipman (1995a, p. 54) diz: “em relação aos objetivos comportamentais, a matiz comportamental do pensamento é a fala, e a matiz do pensamento organizado (isto é, do raciocínio) é a fala organizada”. Essa interação, previamente instigada e deliberadamente organizada por meio de procedimentos que configuram um diálogo filosófico, é o que vai instituir a comunidade de investigação dentro da sala de aula. “Por investigação quero dizer perseverança na exploração autocorretiva de questões consideradas, ao mesmo tempo, importantes e problemáticas” (LIPMAN, 1990, p. 37).

Outro ponto interessante apontado por Lipman (2001, p. 72) e seus colaboradores, diz respeito ao fato de que o incentivo às crianças para que as mesmas pensem filosoficamente, indubitavelmente transforma as salas de aula em comunidades de investigação, onde podemos perceber “um compromisso com os procedimentos da investigação, com a busca responsável das técnicas que pressupõem uma abertura para a evidência e a razão”. Os autores nos dizem também que os processos que movimentam a comunidade de investigação, a partir do momento em que são “internalizados pelas crianças, tornam-se hábitos reflexivos nos indivíduos”.

Com os pressupostos lipmanianos, observamos que o fato do aluno interagir numa comunidade de investigação, possibilita-o construir uma visão de mundo que considera o ponto de vista do outro, pois ao se atentar para o que o outro fala, desejando compreender sua intenção, o aluno tem a chance de revelar o que a idéia do outro provocou em si mesmo, experimentando as palavras do companheiro de modo a construí-las novamente e só então, atribuir-lhes sentido próprio. Ao experimentar o exercício do pensar na comunidade de investigação, a opinião do outro desperta no aluno uma pré-disposição para que ele reveja sua idéia, verificando-a quanto a sua autenticidade, consistência e significado ao sustentar sua argumentação.

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Palestra proferida pelo Professor no IV Encontro Nacional de Educação para o Pensar, acontecido em Janeiro de 2001 na cidade do Recife; Educação Dialógica e Desenvolvimento Cognitivo.

No entanto, de acordo com Ann Sharp88, “essa habilidade envolve nossa capacidade plena de imaginar e sentir [...]. Essas características não nos são dadas no nascimento. Elas são desenvolvidas através da prática – vivendo racionalmente e imaginativamente em comunidade com os outros” (1995, p. 12).

Um último aspecto que gostaríamos de apreciar ao construirmos esse tópico, diz respeito aos sentimentos que emergem nas crianças que interagem em uma comunidade de investigação. Afinal, em se tratando de pessoas, não podemos dissipar nos alunos, aspectos que fundamentalmente os constituem como seres humanos. E que como tal, podem despertar atitudes que venham a comprometer o objetivo do trabalho desenvolvido na FpC. Mesmo porque, o modelo educacional que muitos experimentaram desde o início de sua vida escolar, pressupõe uma postura de total abandono a si mesmo, para [com] responder [individualmente] o que lhe é proposto em monótonos exercícios, os quais lhes serão cobrados autoritária [pelo professor] e competitivamente [pelos colegas].

Viver em comunidade, dentro de uma realidade como a que acabamos de mostrar, mais do que uma utopia, é um exercício de futilidade. Portanto, de acordo com essa perspectiva, a transformação da sala de aula comum em sala de aula como a comunidade de investigação, parece-nos ser uma interessante alternativa na construção de pessoas não somente mais reflexivas, mas também, mais autênticas e socializadas, dada a forma de ser que seus participantes aprendem uns com os outros, em todos os aspectos.

Tal comunidade pressupõe respeito: respeito pelos procedimentos da investigação, respeito pelos outros enquanto pessoas, respeito pelas tradições em que o outro foi criado, respeito pelas criações dos outros. Assim, existe um componente afetivo para o desenvolvimento da comunidade de investigação em sala de aula que não pode ser subestimado. As crianças devem passar de uma postura de cooperação, em que obedecem as regras da investigação porque querem ser reconhecidos, para uma postura em que consideram que a investigação é um processo colaborativo. Quando elas realmente colaboram, o que importa é o nós e não apenas o sucesso pessoal. (SHARP, 1995, p. 12).

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