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Da descoberta da penicilina (1928) ao Prémio Nobel (1945)

No documento Volume Completo (páginas 127-150)

R E S U M O

Introdução

A descoberta da penicilina por Alexander Fleming, em 1928, é um dos acontecimentos mais marcantes da história da ciência, da medicina e da farmácia do século XX. Se conjugarmos a inovação científica com os benefícios ao nível da saúde pública e, consequentemente, os ganhos no plano da economia civilizacional, podemos afirmar que a descoberta da penicilina foi a conquista mais relevante da história da ciência novecentista.

A penicilina não foi mais um fármaco novo nem mais um acontecimento científico isolado2.

A descoberta da penicilina abriu o caminho a novos investimentos científicos no domínio da antibioterapia e consequentemente à descoberta de novos antibióticos3; estimulou a investigação

A descoberta da penicilina por Alexander Fleming, em 1928, é uma das descobertas científicas mais marcantes da história da ciência, da medicina e da farmácia do século XX. Os autores sublinham o valor da descoberta e a transformação da penicilina em medicamento. De seguida expoem o resultado da sua investigação relativa à recepção da penicilina em Portugal na segunda metade dos anos quarenta.

* Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra/CEIS20 (Grupo de História e Sociologia da Ciência). Rua Filipe Simões, 33 – 3000-186 COIMBRA. aleop@ci.uc.pt

**Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra/CEIS20 (Grupo de História e Sociologia da Ciência). Rua Filipe Simões, 33 – 3000-186 COIMBRA. jrpita@ci.uc.pt

1 O presente artigo insere-se no projecto de investigação Público e Privado: História Ecológico-Institucional do

Corpo (1900-1950). O caso português financiado pela FCT/POCTI/HAR/49941/2002 (Investigadora Responsável,

Profª Doutora Ana Leonor Pereira) em curso no Grupo de História e Sociologia da Ciência do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, CEIS20 em articulação com o projecto História da

Farmácia em Portugal (1900-1950). I./ HISTOFAR, projectos em curso no CEIS20 / Universidade de Coimbra.

2 Entre os estudos recentes sobre a penicilina, sublinhamos LAX, 2004. Veja-se, também, WAINWRIGHT, 2002: 529-538.

3 Sobre a história dos antibióticos veja-se a síntese WEATHERALL, 1990: 161-186. Veja-se, também, WAINWRIGHT, 1992 e PARASCANDOLA, 1980. Nesta obra são publicados estudos sobre a recepção da penicilina em diversos países, como os Estados Unidos da América, Suiça, Japão, bem como sobre a investigação antibiótica em diversos países.

científica neste domínio; suscitou estudos clínicos sistemáticos; desencadeou novos investimentos técnicos e tecnológicos com vista à produção industrial de antibióticos; motivou estudos no domínio da tecnologia farmacêutica; esteve na base de novos desafios e investimentos económicos a nível industrial; ampliou o mercado dos medicamentos a nível do comércio grossista e nas farmácias; colocou novos desafios aos médicos; acima de tudo, proporcionou a cura de patologias infecciosas para as quais não havia qualquer terapêutica medicamentosa eficaz e, nesta medida, reflectiu-se na estatística demográfica com a dominuição dos óbitos em todos os níveis etários. Portanto, a penicilina não pode nem deve ser encarada unicamente como mais uma descoberta científica, mas antes como aquela descoberta que desencadeou alterações profundas no tratamento de doenças infecciosas, proporcionou o investimento científico no estudo de outros antibióticos e teve profundas implicações sócio-demográficas e económicas.

À luz do que expusemos, compreende-se que a abordagem histórica da penicilina implica uma enorme complexidade de factores e de condicionantes. Pode falar-se de uma história da penicilina antes da sua descoberta por Fleming4 e de uma história da penicilina após a descoberta

do antibiótico pelo cientista escocês e, como é óbvio, da história da penicilina protagonizada por Fleming. Após a sua produção industrial, nos anos 40, a penicilina transformou-se num fármaco imprescindível no arsenal terapêutico de tal modo que é corrente falar-se da história dos medicamentos antes e depois da aplicação da penicilina — o primeiro antibiótico. E, também, da história da farmácia e da medicina antes e depois da penicilina. Mas, ainda, da história das doenças humanas antes e depois da penicilina e portanto até da história do corpo saudável e doente, antes e depois da penicilina. Uma das aplicações mais interessantes da penicilina foi no combate à sífilis5, uma doença que denunciava a necessidade de reforçar os alicerces científicos

da higiene pública, não apenas no plano curativo mas também ao nível preventivo6.

A penicilina salvou, e continua a salvar, milhões de vidas, por isso se encontra entre “os grandes medicamentos do século XX”7 e entre os “medicamentos que modificaram o mundo”8.

Em 2003 passaram 75 anos sobre a descoberta da penicilina. Em 2004 completaram-se 75 anos sobre a publicação dos primeiros resultados científicos da descoberta da penicilina. Em 2005 celebra-se o cinquentanário do falecimento Alexander Fleming. A notoriedade do cientista, o valor da descoberta e as repercussões sócio-económicas-civilizacionais são razões nobres para apresentarmos uma breve abordagem histórica da descoberta da penicilina, incluindo o início da sua comercialização e expansão pelo mundo, isto é, grosso modo, na segunda metade dos anos 40 do século XX9. No presente estudo daremos conta, também, dos resultados na nossa

4 Para a história da pré-história dos antibióticos teríamos que referir os trabalhos de Pasteur e Joubert em 1877, as tentativas de Emmerich e Loew, em 1899, entre outros autores. Veja-se, por exemplo, CHAST, 1995: 236.

5 Cf. ANJO,1948. Nesta obra o autor exalta as propriedades da penicilina no tratamento da sífilis.

6 No caso da sífilis a aplicação da penicilina tinha a ver com a terapêutica curativa e neste plano a sua eficácia era evidente.

7 Cf. SCHALCHLI, 2000: 4-9.

8 Cf. National Geographic, Maio, 2005, rubrica intitulada “The World by Numbers”. O historiador da farmácia John Swann refere como “medicamentos que modificaram o mundo” os seguintes: ópio, vacina antivariólica, salvarsan, insulina, penicilina, enovid e talidomida.

9 Veja-se, por exemplo, o que é dito por ESCANDE, 2000: 23-36; neste artigo o autor refere que o papel de Fleming na descoberta dos antibióticos é de pouca importância e que “se for preciso nomear como pais da descoberta

investigação da recepção da penicilina em Portugal e da penicilina na terapêutica medicamentosa no nosso país, na segunda metade dos anos 40, bem como das representações de Fleming em Portugal, sobretudo na ocasião da sua morte em 1955.

O presente estudo apoia-se nalgumas conclusões de pesquisas transversais que temos desenvolvido no Grupo de História e Sociologia da Ciência do Centro de Estudos Inter- disciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, CEIS20, nos projectos findos sobre a recepção da penicilina em Portugal e sobre a recepção de Fleming em Portugal, e nos projectos em curso sobre a história da farmácia em Portugal na primeira metade do século XX e sobre a história ecológico-institucional do corpo10.

Alexander Fleming: de Lochfield para Londres com 14 anos

Alexander Fleming nasceu a 6 de Agosto de 1881, na Quinta de Lochfield, em Darvel, na Escócia11. Foi o terceiro filho do segundo casamento do seu Pai, Hugh Fleming, com Grace

Morton. Alexander Fleming tinha sete irmãos, quatro do primeiro matrimónio e três do segundo casamento do seu Pai. Quando Alexander Fleming tinha sete anos ficou órfão do Pai. Frequentou a escola em Loudoun Moor, perto de Lochfield; aos 10 anos de idade mudou para uma Escola de maiores dimensões, perto de Darvel e dois anos depois transitou para a academia de Kilmarnock.

fundamental dos antibióticos, a história só deverá reter dois nomes: René Dubos, em Nova York, e Howard Florey, em Oxford” (p. 24). Entre alguns cientistas e historiadores da ciência, sobretudo de língua francesa, esta questão tem sido destacada. Tenha-se presente que os nacionalismos atravessam toda a história da ciência e da técnica.

10 No Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra/CEIS20 foi desenvolvido um projecto sobre a recepção da penicilina e de Fleming em Portugal: Fleming em Portuga. Integrado neste projecto de trabalho foi premiado o Licº Paulo Jorge Granja com o Programa Gulbenkian de Estímulo à Investigação (1998) com o projecto específico O fármaco do século XX: a penicilina. A introdução da penicilina e dos antibióticos em Portugal, estando no prelo a publicação de uma obra sobre a temática em questão. Entre 2003 e 2005 desenrolou-se no GHSC/ CEIS20 o projecto de investigação História da Farmácia em Portugal (1900-1950). O caso português financiado pela FCT (POCTI/HAR/49941/2002). Entre comunicações apresentadas em reuniões científicas e publicações científicas mais directamente relacionadas com o presente artigo assinalem-se: João Rui Pita; Paulo Granja; Ana Leonor Pereira,

A introdução da penicilina em Portugal, comunicação apresentada sob a forma de poster no “1º Congresso Luso-Brasileiro

de História da Ciência e da Técnica”, realizado em Évora e Aveiro, pelo Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora e pelo Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência e da Técnica da Universidade de Aveiro, nos dias 23 a 27 de Outubro de 2000. João Rui Pita; Ana Leonor Pereira, Progressos da

farmácia e da medicina. I. De Galeno a Fleming, Conferência proferida no “Colóquio sobre a ciência: débito ao passado

e perspectivas de futuro”, realizado no dia 2 de Março de 2000 no Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra. Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, Fleming na imprensa portuguesa nos anos 40 e 50 do século XX, Comunicação apresentada no Colóquio Saúde Cultura e Sociedade — Fontes portuguesas, realizado em Coimbra a 6 de Março de 2001, no auditório da sede da Secção Regional de Coimbra da Ordem dos Farmacêuticos e organizado pelo Grupo de História e Sociologia da Ciência do CEIS 20. João Rui Pita, Fleming e a descoberta da penicilina, conferência proferida na sede de Coimbra da Associação Nacional das Farmácias no dia 10 de Dezembro de 2004. Ana Leonor Pereira, João Rui Pita, Alexandre Fleming na imprensa portuguesa, comunicação apresentada no II Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos, realizado no Porto, na Universidade Fernando Pessoa, em 17 e 18 de Março de 2005. Relativamente a publicações assinalem-se, PITA; GRANJA; PEREIRA, 2000: 213-214; PITA; PEREIRA; GRANJA, 2001: 193- 198; PEREIRA, PITA, 2005: 432-437. Veja-se o mesmo texto editado em CD-Rom.

11 Para um estudo biográfico de Alexander Fleming ver a obra de MAUROIS, 1959a. A tradução inglesa foi feita por Gerard Hopkins, e editada em Londres por Jonathan Cape, em 1959; foi traduzida por Gerard Hopkins e teve uma introdução de Robert Cruickshank.

Em 1895, Alexander Fleming enceta uma nova fase da existência com a sua ida para Londres, a capital, onde alguns dos seus irmãos já residiam. Um deles, Thomas, estudou medicina e enveredou pela oftalmologia12. Aos 16 anos de idade, Alexander Fleming completou os estudos

na Escola Técnica conseguindo de seguida emprego na companhia de navegação American Line, onde desempenhou funções administrativas (contabilidade, registo de carga de navios, registo de documentação diversa, etc.). Em 1900 Alexander Fleming e outro irmão, John, alistaram-se no London Scottish Regiment estando em causa a guerra com os Boers. Alexander permaneceu alistado no exército durante cerca de dois anos e embora não tenha sido chamado para a frente de combate notabilizou-se em actividades desportivas como a natação e o pólo aquático. Entretanto os irmãos Fleming receberam uma herança do tio John, irmão do Pai, o que permitiu que Alexander deixasse o emprego na companhia de navegação e preparasse a sua entrada no curso de medicina.

O curso de medicina dos vinte aos vinte e cinco anos

Em 1901, aos vinte anos, A. Fleming inicia a realização do seu sonho de ser médico. Fez os seus estudos de medicina em Londres, na Escola Médica afecta ao Hospital de St. Mary, tendo sido aluno brilhante e não demonstrando uma especial inclinação por alguma área em particular. Enquanto aluno de medicina participou em actividades culturais complementares como, por exemplo, o teatro e demonstrou especial interesse pelas actividades desportivas, tendo-se distinguido no pólo aquático e, também, no tiro.

O início da carreira científica em 1906

Em 1906, Fleming formou-se em medicina e começou a trabalhar no serviço do prestigiado bacteriologista e patologista Almroth Wright — o Serviço de Inoculação — o famoso “Inoculation Department” fundado em 1902. Recorde-se que este cientista britânico procurou encontrar, embora sem êxito, uma vacina contra a febre tifóide no exército britânico na Índia e na África do Sul. Fleming foi fortemente marcado pela figura e pelo trabalho de Wright. Deve lembrar-se, também, que a questão da inibição bacteriana e o tratamento de doenças infecciosas constituia uma preocupação de vários cientistas, desde a escola francesa liderada por Pasteur e continuada pelos seus discípulos, até à escola alemão tutelada por Koch e continuada pelos seus discípulos. Em 1909, Fleming fez provas para cirurgião tendo, desde essa data, a possibilidade de exercer cirurgia. Contudo, a motivação que sentia pelo trabalho de investigação laboratorial, e, em particular, pela bacteriologia, levou-o a continuar as pesquisas laboratoriais cujos resultados veio a publicar ao longo da sua vida na forma de livro e em revistas como Practitionner, The

Lancet, British Medical Journal, British Journal of Experimental Pathology, St Mary’s Hospital Gazette, American Journal of Clinical Pathology, Gazette des Hôpitaux, Annales de l’Institut Pasteur, The

12 Outros dois irmãos de Alexander Fleming, John e Robert entusiasmados por um médico que apoiou o seu irmão Thomas na formação oftalmológica enveredaram pela óptica e pelo fabrico de óculos. Cf. MAUROIS, 1959a: 19.

Biochemical Journal, etc.. Alguns dos trabalhos de Fleming foram realizados em colaboração,

sendo de sublinhar as publicações conjuntas com L. Colebrook, S.R. Douglas, A.E. Wright, A.B. Porteous, F.J. Clemenger, V.D. Allison, Ian H. Maclean, K.B. Rogers, C. Smith, J.R. May, A. Voureka, I.R.H. Kramer e W.H. Hughes.

De acordo com o seu perfil, Fleming continuou a desenvolver intensa actividade social tornando-se membro do Chelsea Arts Club, praticando com frequência tiro e natação e jogando vários jogos de cartas e ainda bilhar e xadrez.

Aquando da Primeira Guerra Mundial, Almroth Wright propôs ao governo britânico que o seu serviço fizesse a preparação de vacinas contra a febre tifóide e que estudasse as feridas de guerra para evitar as infecções. Assim, Fleming e outros colegas investigadores foram enviados para Boulogne-sur-Mer onde instalaram um laboratório, tendo estudado um leque variado de microorganismos. A sua presença e os seus trabalhos de pesquisa permitiram actuar de modo mais profundo e eficaz sobre, por exemplo, os ferimentos de guerra. Fleming torna-se, de facto, a maior autoridade mundial em matéria de feridas de guerra. Da sua investigação resultou a publicação de artigos científicos.

Em 1915, em plena Guerra Mundial, Alexander Fleming contraiu matrimónio com Sara MacElroy, jovem enfermeira irlandesa. Em 1919, regressou ao serviço de Almroth Wright dando continuidade aos seus trabalhos de investigação e, mais tarde, em 1921 assumiu o cargo de vice- director do Serviço de Inoculação.

A descoberta da penicilina em 1928

A destruição das bactérias, a inibição da sua proliferação, numa palavra, o combate às bactérias responsáveis por inúmeras patologias infecciosas humanas constituiu a paixão científica de sempre de Alexander Fleming. Nas palavras do próprio: “a destruição das bactérias pelos leucócitos tinha-me interessado profundamente”13. Fleming reportava-se às pesquisas anteriores

à descoberta da penicilina pois aquele problema motivou-o desde muito cedo. Durante a Primeira Guerra, Fleming avaliou o poder antibacteriano dos leucócitos contidos nos exsudatos de feridas. No período pós-Guerra continuou interessado no estudo dos antisépticos e leucócitos, sendo de sublinhar a descrição que fez da lisozima, em 1922. Segundo Fleming tratava-se de um “poderoso fermento anti-bacteriano que se produz naturalmente nos tecidos humanos e secreções”14. No

discurso que proferiu aquando da atribuição do Prémio Nobel, Fleming sublinhou isso mesmo dizendo que “a penicilina não foi o primeiro antibiótico que descobri. Em 1922 descrevi a lisozima, uma potente enzima antibacteriana possuidora de um efeito lítico extraordinário sobre algumas bactérias”15.

Em Setembro de 1928, Alexander Fleming trabalhava “sobre a variação das colónias estafilocócicas como consequência de uma comunicação do Professor Bigger, que tinha

13 Palavras do próprio FLEMING, 1944a: 5. 14 FLEMING, 1944: 5.

15 Alexander Fleming, “Penicilina. Discurso de (…) al recibir el premio Nobel de medicina y fisiologia, el 11 de diciembre de 1945”. In: ROJAS, 1994: 72.

demonstrado que podiam produzir-se colónias de aspecto sumamente diferente partindo da cultura pura de um estafilococo piogéneo ordinário”16, conforme referiu mais tarde a propósito

da descoberta da penicilina. Certo dia, de regresso ao laboratório, Fleming observou novamente umas caixas de Petri que havia deixado cultivadas com estafilococos e verificou que nelas se havia desenvolvido um fungo. Constatou que até uma distância relativamente afastada dos fungos não havia proliferação de estafilococos. Cerca de dezasseis anos mais tarde, Fleming reconstruia o momento inaugural da sua descoberta: “Verdade é que todo o bacteriologista tem visto, não uma mas muitas vezes, placas de cultura contaminadas com fungos, também é provável que alguns bacteriologistas tenham observado alterações semelhantes às apontadas mais acima, mas sem ter um interesse especial pelas substâncias anti-bacterianas de ocorrência normal, se tenham limitado a afastar as referidas culturas”17. Por um lado, Fleming reconhecia o papel do acaso na

descoberta científica e, por outro lado, implicitamente sublinhava que a observação genial do investigador marcava a diferença entre descobrir e não descobrir. Posteriormente, Fleming investigou e observou que outras bactérias patogénicas eram inibidas pela presença do fungo como, por exemplo, os estreptococos, os pneumococos, os gonococos, os meningococos e os bacilos da difteria e da gangrena gasosa. Solicitou, então, a colegas a caracterização do fungo que foi inicialmente designado por Penicillium rubrum e algum tempo depois Penicillium notatum. Em 1929 publicou um artigo intitulado “On the antibacterial action of cultures of a penicillium with special reference to their use in the isolation of B. influenzæ” na revista British Journal of

Experimental Pathology18, onde descrevia a sua investigação e publicava os seus resultados. Deste

modo, a penicilina entrava nos circuitos científicos. De tal modo se avaliavam os elevados benefícios da penicilina que em 1932 Fleming sublinhava que o fármaco podia ser utilizado nos seguintes casos: “i)Para o isolamento de bactérias não sensíveis de entre um grande número de organismos sensíveis; ii)Para a demonstração de certas inibições bacterianas; iii)para o tratamento de infecções por organismos sensíveis”19 sendo esta última aplicação a mais importante para a

saúde humana.

Para se poder avaliar o extraordinário da descoberta da penicilina, o Editorial do Jornal do Médico, dizia em 1950: “O Prof. Chain, também galardoado com o Prémio Nobel pelos seus estudos sobre a penicilina, juntamente com Fleming e Florey, fez notar que teria sido absolutamente impossível planificar uma investigação tendente a descobrir aquele antibiótico, porque ninguém tinha em vista a sua existência. O ‘Penicillium notatum’ apareceu por acaso numa das culturas que Fleming guardava no seu laboratório. Centenas de variedades de ‘Penicillium’ foram examinadas até hoje, mas só o ‘Penicillium notatum’ é capaz de dar penicilina. Mais ainda: há sessenta espécies deste bolor — e só uma delas, a que se deparou a Fleming, produz penicilina”20.

16 FLEMING, 1944a: 5. 17 FLEMING, 1944a: 5.

18 Cf. FLEMING, 1929: 226-236. Veja-se FLEMING, 1944b: 8-10.

19 Cf. FLEMING, 1944b: 8. O autor refere o artigo publicado em 1932 no Journal of Pathology and Bacteriology. 20 Cf. A.P., 1950: 367.

Um problema a resolver: a produção industrial da penicilina

A partir de 1929, a penicilina parecia ter caído no esquecimento. Ao receber o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia, em Dezembro de 1945, Alexander Fleming sublinhou esta questão dizendo: “Referi a penicilina em um ou dois artigos até 1936, mas poucos prestaram atenção à mesma. Somente dez anos depois, quando a introdução da sulfonamida modificou por completo o pensamento médico no que toca à quimioterapia das infecções bacterianas e desde que Dubos21 mostrou que um agente antibacteriano potente, a gramicidina, era produzida

por certas bactérias que os meus coparticipantes neste Prémio Nobel, o doutor Chain e Sir Howard Florey, decidiram estudá-la”22. Na verdade, a comunidade científica internacional fez

poucas referências à penicilina, embora Fleming tenha publicado sobre o assunto até finais dos anos 3023.

Todavia, a questão da inibição da proliferação microbiana constituia uma área de investigação relevante pois havia a consciência de que doenças infecciosas que faziam perigar a saúde privada

No documento Volume Completo (páginas 127-150)