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2 DA HIPERCOMPLEXIDADE E CONTINGÊNCIA NA DINÂMICA TECNO-

2.3 Da Era Tecno-Humanista e a Temporalidade Prática

Para aquele que tivesse experimentado de perto os horrores da 2ª Grande Guerra Mundial, sobrevivido à dramática experiência para depois testemunhar os momentos trágicos que a Guerra Fria reservou e, na sequência, percebido a posição crescente da técnica e seus latentes perigos à civilização humana, qualquer prognóstico favorável pautado na ética social seria errático. Nessa perspectiva, Heidegger, entre poucos, enquadrou-se à descrição, e como tal, alertou para as intercorrências daquilo que chamava de era do átomo. Redigiu ainda sobre a progressiva dominação da técnica para as coisas da vida e para o homem assentado no pensar calculador que paulatinamente compromete a característica do

ser revelada na sua capacidade de pensar e de refletir. O resultado disso manifesta-

se no hiato entre a moral e a ciência e a irreversibilidade desse quadro.225

Mais que isso, para o filósofo alemão, as repercussões desfavoráveis advindas da técnica e suas tentativas de controle não podem se deparar com limites nas formulações próprias da ética social, a qual, na visão de Heidegger, constitui-se por propostas antropocêntricas - justamente por conceber a dualidade tecnologia- racionalidade como criação do homem sob seu domínio e submetida à observância de normas morais - e, portanto, falhas.226 A ideia concorda com o que sustenta Galimberti e sua Era da técnica, a caminho do absoluto técnico, a ponto de muitos questionarem se, nesse horizonte técnico que viabiliza o estado de exceção permanente em razão da vigilância onipresente, onipotente e onisciente da pessoa,

225 HEIDEGGER, Martin. Gelassenheit. Pfullingen: Neske, 1992. p. 24-25. HEIDEGGER, Martin. Unterwegs zur Sprache. Pfullingen: Neske, 1975. p. 210. Para maior aprofundamento ver os trabalhos de Gehlen, em especial GEHLEN, Arnold. L´uomo. La sua natura e il suo posto nel mondo. Milão: Feltrinelli, 1983. p. 60.

enfaticamente incidente quando na posição de consumidora, ainda há espaço para um complexo de Direitos Humanos.227

A releitura de Heidegger e de Galimberti, sob as luzes hodiernas, auxiliada pelo reexame da experiência humana no tempo, parece realçar um contexto alternativo que demanda descobrimento. Revela-se na dualidade de forças, numa clara disputa de prevalência de espaços entre o pensamento humanismo e o fazer da técnica - o último, em inegável ascendência sobre o primeiro, a contar da contemporaneidade, num incontestável desequilíbrio.228 Essa conjugação de forças exige a iniciativa em favor da periodização e das denominações mais apropriadas para a escala temporal como algo que contemporize o tempo regido por uma escala de sentimentos que acompanham a humanidade. Mais além das meras referências simbólicas, isso configuraria os fatos históricos positivados ou a dualidade de classes, sob a temporalidade prática que confere identidades peculiares para cada fase descrita em torno dos conceitos de era, de idade, de longo transacional e de curto transacional, como exibe a Figura 1.

227 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. p. 828-829.

228 Talvez tenha pesado no julgamento de realidade de Heidegger sua viva memória acerca da 2ª Grande Guerra Mundial e seus efeitos sombrios sobre si, seu país, seu continente e seus desalentos civilizatórios pautados pelo agir maquinal. Sem embargo, - e é bom dizer - memória não equivale à realidade histórica por sofrer de idealização e, por isso, graus diversos de comprometimento. PADRÓS, Enrique Serra. Tempos de barbárie e desmemória. In: FERNANDEZ, Érico Pinheiro et al. Contrapontos: ensaios de história imediata. Porto Alegre: Folha da História, Palmarinca, 1999. p. 30-31.

Figura 1 - Nova periodização histórica a partir da perspectiva tecno-humanista

Fonte: Elaborada pelo autor.

A Figura 1 ilustra a temporalidade aplicada que congloba a totalidade da trajetória humana no planeta, e por isso tem sua divisão em dois grandes momentos: a era natural e a era tecno-humanista entrecortadas por um longo transacional ora conhecido por Medievo. O homem, na primeira era, experimentou o sentimento revelado num estado de coisas em que a natureza servia de contraponto, com as religiões mais antigas a preceder a mitologia politeísta. Dividida entre a Pré-História e a Antiga, retrata a invenção da escrita como seu divisor interno definitivo. Não menos importante, no interlúdio entre as eras natural e tecno-humanista, desvenda- se um período de transição, para o qual se adota a conhecida expressão e fase do

Medievo. Absorvido pelas religiões monoteístas, Deus funcionava como parâmetro

para todas as coisas, cujo sentimento operava sobre as pessoas.

De seu lado, a era tecno-humanista abrange dois períodos temporais distintos: a Modernidade, com sua indelével marca assentada no progresso e na supremacia experimentada pelo humanismo, com o homem como parâmetro para todas as coisas, seguida da Contemporaneidade, então orientada pelo estado de

aceleração da vida e das coisas, com evidente preponderância da técnica e

crescente submissão humana ao agir maquinal.

Essa periodização em eras - fracionada em idades também chamadas de

períodos - comporta, nas palavras do historiador Le Goff, “[...] uma significação

particular [...]”, nem sempre coincidente com os pontos de viragem epocal aos séculos completos. Entretanto, a percepção de uma nova atmosfera captada em padrões de sentimentos de pertencimento a um tempo único é mais apropriada à classificação temporal do homem, muito próxima à ideia de temporalidade prática de Flusser229 como opção a romper com a periodização-padrão de correntes no

229 LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Editora Unesp, 2015. p. 7-14 e 29. De Flusser advém o trabalho de vanguarda a serviço de uma classificação temporal, principalmente da sua produção da década de 1980 - período de maior comprometimento para com o universo das imagens técnicas, dos objetos culturais da sociedade pós-industrial, do homem e da transformação provinda da informação imaterial (digital). O resultado se evidencia numa nova contextualização teórica dedicada a alcançar - em expressão hegeliana - a fenomenologia do espírito ocidental. FLUSSER, Vilém. Texto/imagem enquanto dinâmica do ocidente. Rio de Janeiro: Cadernos Rioarte, 1986. Ms., p. 6. Publicado em Cadernos Rioarte, ano 2, n. 5, p. 64-68. Manuscrito Arquivo Flusser, Berlim. Tem-se o registro da transição cultural operante nos tempos vigentes em decorrência das novas tecnologias. O ser humano, ainda preso ao pensamento imagético ou linear calcado num contexto peculiar à escrita, passa a existir num cenário distinto, no qual a cultura alicerçada na escrita sofre ab-rogação em favor de uma sociedade telemática a servir de inédita moldura antropológica para um novo homem. FLUSSER, Vilém. Lichtspiele: im wörtlichen und übertragenen wortsinn. Manuscrito não publicado, Arquivo Flusser, Berlim, p. 1. Assim como outros, o filósofo cosmopolita decreta o fim dos projetos humanistas e iluministas após Auschwitz e Hiroshima. Acontecimentos que, combinados as onipresentes tecnologias de meados do século XX para cá, o conduziram ao entendimento do derradeiro esgotamento da ideia de progresso num diagnóstico da “[...] futilidade da história [...]”, pelo que profetizou e antecipou a pós-história ainda em 1967. A posição peremptória flusseriana implica abandono e substituição das categorias históricas (idades ou sociedades) em reconhecimento de uma mudança revolucionária no sentido da vida e do sujeito da história ditados pela tecnologia. FLUSSER, Vilém. Vom subjekt zum projekt. Menschwerdung. Mannheim: Bollmann, 1994. p. 15. FLUSSER, Vilém. Nachgeschite. Eine korrigierte geschichtsschereibung. Mannheim: Bollmann, 1993. p. 28, 134, 137, 142, 180-181. Alerta para os perigos da tecnocracia e a reviravolta de valores nestes tempos de pós-história. Faz o aviso ao perceber a dominação do homem “[...] pelo complexo aparato-operador dos aparelhos [...]” e a necessária construção de uma imaginação compatível com a inversão dessa ordem da qual a sociedade, como o indivíduo, sequer logra perceber. FLUSSER, Vilém. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p. 9, 31 e 71. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Relume Dumará, 2002b. p. 24-25, 27, 37-38 e 105. FLUSSER, Vilém. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002. p. 85. Diferentemente de Lyotard na sua condição pós-moderna, o emprego conceitual de pós-história por Flusser não se limita a uma mudança de meios, mas assume também uma modificação na estrutura do conhecimento humano em que o centro do interesse científico irá recair no conceito de informação e não mais no conceito de objeto. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olymplio, 2013. p. 3-6 e 27-42. FLUSSER, Vilém. Êxodo das cifras. In: FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: Edusp, 1998. p. 6. Em que pese a discordância para com a posição terminativa de Flusser no que tange especificadamente ao projeto humanista – da qual ainda se pretende demonstrar no corpo desta investigação sua permanência e nova moldura quando da concorrência com a técnica no pós 2ª Grande Guerra Mundial –, provém do filósofo da avant-guarde a divisão do passado cultural em três fases de estar-no-mundo, exatamente em três longos transacionais. Trata-se de uma existência circular,

providencialismo cristão ou derivado, na positivista de base política (e suas presilhas

em torno da racionalidade superficial, do mito do progresso e da ordem vigente) ou no finalismo marxista. Assim, a História de eventos e seu fetichismo de fatos a ser superada, mas sem o desprezo pela autenticidade documental, é resultante e cultuada nos exageros derivados da École des Annales, de 1930 em diante.230

A presente escolha por uma inédita periodização é inversa à usual busca de consenso. Ao contrário, pretende-se a crítica deste para emprestar um novo olhar à História a partir da tradição que se fundamenta em Herder, em Schopenhauer, em Nietzsche, em Gehlen e em Bergson, de modo a compreender a técnica como “[...] condição original da existência humana, a partir da qual se estruturou esse modo de conectar que se costuma chamar de ‘razão’”. Novamente, trata-se da necessidade de sentido para a existência humana.231

Esmorece então a ideia da técnica concebida como mera aplicação da ciência para realocação em seu verdadeiro papel na História da humanidade, amparado na constatação inescapável da linguagem como “[...] eixo central de reflexão para toda e qualquer prática cognitiva [...]”.

Em vista disso, pode-se vir a depreender as manifestações substancialmente humanas - o irracional num aparente racional e os fortuitos históricos daí ____________________

mítica ou imagética dentro de uma imagem pictórica (pré-alfabéticas) chamada de tempo pré- histórico; outra de história vinculada à escrita linear (fatos como processo) e à imagem de superfície (cenas); e, por fim, a pós-história no momento do surgimento de um terceiro tipo de mídia conhecida como imagem a decretar o fim da escrita e da qual o ser humano não está preparado para decifrá-la, mas somente as máquinas. Flusser divide o tempo passado nessas três etapas e utiliza-se das inovações culturais como fatores de quebra. São elas as primeiras imagens rupestres, os primeiros textos, os primeiros impressos e as primeiras fotografias. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Relume Dumará, 2002b. p. 7-8, 9-11, 13, 14-18, 33-34, 47-48, 55-58, 66-67 e 71-72. O filósofo também vai conferir atenção aos longos transacionais em outra obra. Para tanto ver: FLUSSER, Vilém. Pós- história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p. 34, 62-63, 98- 99, 101, 107, 121, 124-125, 153. Para o filósofo, talvez a característica predominante da pós- história ora em curso seria o fazimento da história por aparente seleção racional em vez da submissão do homem a ela, o que se possibilita pelas formas de comunicação de imagens técnicas e, mais recentemente, nas de códigos digitais que, por outro lado, inviabilizam a imaginação textual. Ibid., p. 98 e 101. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Relume Dumará, 2002b. p. 11 e 16-17. Os longos e curtos transacionais, por si só, servem de mecanismo e de inspiração para o ajustamento do tempo passado em compatibilidade com o tempo presente e a dualidade paradoxal experimentada que aqui se pretende: uma hodierna era técnica-humanista, antes declarada e ainda inconsciente para o imaginário humano, de modo a permitir a leitura pontual do atual contexto em que se insere a pessoa.

230 SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2012. p. 312-319.

231 GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. p. 78-79.

decorrentes - a ditar o caminhar tecnológico desvencilhado de qualquer determinismo operante.232 Essa percepção muito particular acerca da periodização construída pela interação entre homem e técnica encontra farto suporte teórico e fático nos episódios históricos notórios, com origens diagnosticadas e efeitos estudados há muito, mas que ora sofrem releitura para uma inédita compreensão baseada num pensamento tecnológico, e não mais analítico. Para facilitar a visualização e a compreensão, recapitula-se a Figura 1, que comporta as eras e o longo transacional, com as idades e a identificação temporal dos curtos transacionais. 233

Principia-se pela era natural, em brevíssimos apanhados que visavam priorizar os demais tempos por vir. A Pré-História, período inicial da era natural, envolve o aparecimento do hominídeo até por volta de 3.500 a.C, com o surgimento da escrita cuneiforme. Tematiza sobre a origem da espécie humana e seu processo de povoamento pelo globo, como também a leitura dos primeiros registros da passagem do ser humano nos desenhos, nas esculturas e nas gravuras rupestres, nos escassos vestígios de um passado longínquo à compreensão da primitiva vida nômade.234 Congloba um tempo que não pode ser menosprezado em importância, já que em seu decorrer dominou-se o fogo, desenvolveu-se o poder de confecção de utensílios pela metalurgia e pela cerâmica, originaram-se a agricultura primeva e a domesticação dos animais.

Na Revolução Agrícola ou Neolítica - por volta dos 11.000 anos a. C. - surgiram então os primeiros assentamentos estáveis designados por cidades.235 Mas antes mesmo das primeiras formações, ainda quando em simples agrupamentos tribais, duas crenças antigas se ampliaram nas ideias primitivas para o mistério da vida e da morte: uma primeira religião de antepassados praticada no lar, a dotar os deuses de alma humana, e uma segunda, a escolhê-los nas manifestações da natureza física. 236

232 SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2012. p. 320-322.

233 Convém lembrar que qualquer periodização nunca é constituída de total imparcialidade.

234 BOOKS, Parragon. História da arte: arquitetura, pintura, escultura, artes gráficas e design. Tradução de Andreia Mendonça et al. Bath: Parragon Books, 2012. p. 24-35.

235 BOOKS, Parragon. História da arte: arquitetura, pintura, escultura, artes gráficas e design. Tradução de Andreia Mendonça et al. Bath: Parragon Books, 2012p. 8-9. PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo, Contexto, 2005. p. 42-52.

236 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. Tradução de Fernando de Aguiar. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 7-26, 127-151, 156-167 e 202-216.

Na medida em que as aglomerações humanas se intensificaram ao final do Neolítico e rotularam-se como primeiras civilizações, o primeiro altar doméstico foi gradualmente substituído pelo culto público em padrões mitológicos de ligação indissolúvel à religião cuja forma de leitura predominante do mundo perdurou por toda a Antiguidade, na segunda idade da era natural.237

O mito por excelência, na prática consistente na descrição sobrenatural do real em coerência com a concepção mágica de mundo, atuava como uma “[...] intuição compreensiva da realidade [...]” para a mitigação da grandeza da imensidão de tudo o que cerca e testa o homem, na melhor confissão do sentimento dos pré- históricos e antigos238 cuja vida, mesmo nas cidades e nos impérios surgidos, tinha como pano de fundo o ambiente que os cercava, com o céu e a terra como limites.

A inventividade humana não ousava ultrapassar a ordem da natureza, a qual permanecia como horizonte definitivo, numa dependência cíclica para a vida. Mesmo com as invenções da moeda, do comércio, dos adubos, das barragens e de outras diversas, a vida dependia da terra e da economia que dela se gerava. Nas palavras de Fustel de Coulanges,

O homem dos primeiros tempos achava-se continuamente em presença da natureza; os costumes da vida civilizada ainda não haviam estabelecido uma separação entre a natureza e o homem. O seu olhar deliciava-se perante todas essas belezas ou mostrava o seu deslumbramento perante as suas grandezas. Gostava da luz, receava a noite e, ao ver reaparecer, ´a santa claridade dos céus`, reconhecidamente se recolhia. A sua vida estava inteiramente nas mãos da natureza; esperava a nuvem benfazeja de que dependia sua colheita; temia a borrasca porque esta lhe destruía o trabalho e as esperanças de todo o ano. Sentia a cada momento a sua fraqueza e a força incomparável de tudo quanto o rodeava. O homem

237 Há fundamental exceção representada nas múltiplas manifestações enquadradas num certo lapso de tempo designado como axial. Como leciona Comparato, a época designada por axial engloba os séculos VIII e II a. C., quando formado o eixo histórico da humanidade. Já a fase em que grandes pensadores de visões do mundo coexistiram sem comunicação entre si: Zaratustra, Buda, Lao-Tsé, Confúcio, Péricles, Pitágoras, Homero, Dêutero-Isaías e Maomé. Trata-se de uma grande linha divisória em virtude do abandono das explicações mitológicas para dar lugar ao desdobramento de ideias e de princípios. Nessa etapa, as religiões assumem conotação ética no lugar dos rituais fantásticos e, precisamente, no século V. a. C., tem-se o nascimento da filosofia, no exercício reflexivo do indivíduo em faculdades assentadas na crítica racional da realidade a contemplar o homem como objeto de análise e de reflexão e como critério supremo das ações humanas. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 37-39.

238 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003. p. 71-76.

experimentava em si, perpetuamente, um misto de veneração, de amor e de terror, perante a poderosa natureza. 239

Não obstante e em consonância com o avanço das tecnologias durante a

Antiguidade, a antes inalterável natureza começava a adquirir contornos flexíveis

frente aos novos instrumentos que se apresentavam com definitivo impulso ocasionado pelo surgimento do pensamento axial e racional proveniente dos primeiros pensadores religiosos monoteístas do século VIII a. C. e dos filósofos gregos dos séculos VI e V a. C. O momento de minoração da dependência do homem para com seu meio natural representara um interlúdio singular na História humana. 240

A própria gênese da emancipação humana frente à natureza em função da técnica - ora explicitada na forma de violação - simbolizava a peculiaridade retratada nos mitos, precisamente nos de Prometeu e de Pandora. Demonstrava ainda a genialidade da concepção mística da realidade para a época e a acusação que o tempo parecia comprovar.241

O que a mitologia grega aqui põe em cena, com uma clarividência e profundidade impressionantes, é a definição totalmente moderna de uma espécie humana cuja liberdade e criatividade são fundamentalmente antinaturais e anticósmicas. O homem prometeico é o homem da técnica, capaz de criar, inventar de maneira

239 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. Tradução de Fernando de Aguiar. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 127-128.

240 A ideia de progresso dos modernos, ainda viva nos contemporâneos, faz perceber a cultura dos povos pré-históricos e antigos em dimensões etnocêntricas. Porém, o mito traz uma riqueza expressiva muito maior que o simples relato de lendas, abarcando o cerne da sabedoria antiga que se formou dentro de uma tradição oral. A própria passagem da mentalidade mítica para o pensamento racional crítico inaugurado nos primeiros filósofos gregos, revelado dentro da quebra axial, tem dívida para com esse passado mítico, num processo lentíssimo que vem a culminar na racionalidade constitutiva do Universo. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003. p. 71-76.

241 FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 160-183. A narrativa mística em torno de Prometeu e Pandora data de dois períodos gregos distintos: um ligado ao poema de Hesíodo, e outro, posterior, dos escritos de Platão. Ambos objetivavam explicar os motivos da passagem da idade de ouro para a do ferro (equivalente à expulsão do paraíso nas passagens bíblicas); a descrição do cosmos (ou ecossistemas na acepção atual); a simbologia do fogo que alude à técnica, agora em poder dos homens; o nascimento do trabalho; a criação de Pandora e com esta a ambição insaciável aos homens dissimulado de promessa de felicidade. Platão, porém, três séculos depois e regido pela filosofia, traça um ângulo esclarecedor e plausível, ao dizer que ao lado do fogo também foram repassados ao homem as artes e a técnica de Atena. Ao traçar a impulsividade de Epimeteu

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