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3 DOS DIREITOS DE AUTOR EM ESPÉCIE

3.3 DA INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS

Lidou-se, oportunamente, com importantes temas da área do direito autoral, como a natureza jurídica e o conteúdo dos direitos do autor. Neste momento, importa discutir a interação existente entre essas duas “classes” de direitos. Formam as diferentes prerrogativas verdadeiro amálgama e constituem direito unitário? Ou trata-se de poderes de ordens e naturezas distintas, não devendo uns ser confundidos com os outros?

Essa discussão diz respeito à estrutura do direito do autor, que não se confunde com a questão da natureza jurídica117. Possível, dessarte, falar em monismo e dualismo tanto dentro de uma teoria sobre a natureza do direito de autor, como a do direito pessoal-patrimonial, quanto fora dela118. Essas conflitantes teorias – monista e dualista – foram desenvolvidas com maior ênfase na Alemanha e na França, respectivamente.

Para os monistas, todas as prerrogativas que correspondem ao criador, sejam de caráter pessoal ou patrimonial, constituem manifestações de um só direito, unitário, o qual garante, em seu conjunto, tanto interesses ideais quanto econômicos119.

Eugen Ulmer explicitou esta perspectiva através da sua didática “Baumtheorie” (Teoria da Árvore). Segundo ele, o Direito de Autor é como o tronco de uma árvore: uno. Abaixo do tronco, têm-se as raízes, que corresponderiam aos direitos morais e patrimoniais. Do tronco,

115 RAJAN, op. cit., p. 15. 116 LIPSZYC, op. cit., pos. 2508. 117

ASCENSÃO, op. cit., p. 579. 118 ZANINI, op. cit., p. 111. 119 LIPSZYC, op. cit., pos. 2172.

crescem ramos e galhos, representativos das diferentes prerrogativas do autor. Tais prerrogativas sugam, por vezes, sua força de ambas as raízes. Outras vezes, sugam mais de uma em relação à outra ou apenas de uma delas120.

Tal construção teórica é elucidada e concretizada por Adolf Dietz: o interesse moral de preservar a integridade da obra, protegendo-a de interferências negativas, satisfaz também o interesse patrimonial de introduzi-la no mercado tal como se pretendia, livre de modificações e eventuais pioramentos (Verschlechterung). Por raciocínio inverso, uma exploração econômica bem sucedida da obra que, através de reproduções e representações, torna ela e o seu idealizador famosos, satisfaz o interesse extrapatrimonial do autor de divulgar as suas ideias e adquirir renome em determinada esfera social121.

Na doutrina brasileira, pode-se citar Carlos Alberto Bittar como um dos seguidores da proposta monista, conforme se extrai de trecho do seu livro:

No entanto, são partes de um mesmo conjunto final, integrantes de mesmo complexo jurídico, intimamente ligados em qualquer utilização da obra, imprimindo, pois, essa noção a condição especial de que desfrutam os direitos autorais no âmbito dos direitos privados. [...] Tem-se, portanto, que as duas facetas apontadas interpenetram-se, mesclam-se, completam-se, exatamente para constituir o conteúdo, uno e incindível, dos direitos autorais. O direito moral é a base e o limite do direito patrimonial que, por sua vez, é a tradução da expressão econômica do direito moral122.

Já segundo a concepção dualista, os droits moraux e os droits pécuniaires independem uns dos outros e podem ter destinos jurídicos diversos. Enquanto os direitos patrimoniais podem ser objeto de alienação e são limitados no tempo, os pessoais são inalienáveis, perpétuos e imprescritíveis123.

Desbois, adepto da teoria dualista, ressalta que referidos direitos não nascem no mesmo tempo e não se extinguem juntos. Enquanto, antes da conclusão e publicação da obra, os direitos patrimoniais permanecem em estado de mera virtualidade, os direitos morais já existem desde as primeiras linhas, quando a obra é mero rascunho. Ainda depois de transcorrido todo o período de monopólio, o direito moral continua vivo, até que a obra caia no esquecimento. Quem quer que queira, muito tempo depois, independentemente de quantos

120 ULMER, op. cit., p. 116.

121 DIETZ, Adolf. Das Urheberrecht in der Europäischen Gemeinschaft. 1. ed. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1978, p. 105-106.

122 BITTAR, op. cit., p. 68-69. 123 DIETZ, A., op. cit., p. 106.

anos se passaram, desenterrá-la, deverá fazê-lo respeitando sempre a forma em que foi inicialmente elaborada e publicada pelo autor124.

O presente trabalho adotará a visão dualista, por entender que confere o devido prestígio ao direito de matriz não-econômica. Embora seja possível aventar inúmeras ocasiões de complementariedade e inter-relação entre os direitos, haverá casos de existência autônoma, de um ou de outro. O indivíduo que escreve determinada obra, sendo ela original, torna-se automaticamente autor, pelo próprio ato da criação, como visto. O vínculo nasce naquele exato momento. Se, todavia, arrepende-se do quanto criado e destina-o às chamas, antes de qualquer comercialização, sem que ninguém sequer dela tome conhecimento, extingue-se toda potencialidade econômica eventualmente existente. Não houve propriamente direito pecuniário, mas mera possibilidade, que não se materializou.

Clara resta, portanto, a existência concreta de um e a inexistência do outro. Se se quisesse aprofundar o raciocínio, poder-se-ia dizer que o vínculo espiritual sequer foi rompido com as chamas. A obra, como tantas vezes já se sustentou, não se confunde com o seu suporte. Ainda que se rasgue, se destrua ou se queime o suporte, continua a obra viva dentro daquele que a projetou. Nada impede o autor de rever a sua decisão e reconstituir a obra.

Aqueles que se filiam à teoria dualista comumente o fazem para enaltecer o direito moral. Daí porque se fala em uma primazia em relação ao direito patrimonial, devendo-se estar sempre a ela atenta diante de casos concretos e quando da interpretação de negócios jurídicos. Para descrever essa primazia, fala-se, no inglês, em “pre-eminence” e, no francês, em “prééminence”125. Aquele que atentamente ler este trabalho perceberá que se tratou primeiramente dos direitos morais, antes de se adentrar a questão dos direitos patrimoniais. Tal escolha não foi aleatória e buscou justamente enfatizar a preeminência ora proposta.

Essa ordenação encontra respaldo em alguns textos normativos. Ao se analisar o “Code

de la propriété intellectuelle” francês, nota-se que os “droits moraux” antecedem os “droits patrimoniaux”126. A mesma escolha fora feita pelo legislador pátrio. No título III (“Dos Direitos do Autor”) da lei vigente, tem-se que o capítulo II trata dos “Direitos Morais do Autor” e o capítulo III, “Dos Direitos Patrimoniais do Autor e de sua Duração”.

124 LIPSZYC, op. cit., pos. 2198-2204. 125 RAJAN, op. cit., p. 60.

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FRANÇA. Code de la propriété intellectuelle, version consolidée au 1 octobre 2017. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006069414>. Acesso em: 29 nov. 2017.