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Da organização do processo pedagógico

No documento Práticas corporais - v. 3 (páginas 196-200)

a análise da experiência em questão

II. Da organização do processo pedagógico

O processo pedagógico foi outra categoria de análise que se constituiu, concretamente, em nossa investigação-ação, fundada em nossa intenção de re-significar os conteúdos das práticas corporais. Esta categoria, em nossa compreensão, está em muito relacionada com o não fechamento de um ideal de formação humana, categoria anterior que se mostrou no processo de pes- quisa, exigindo, assim, compreender o papel do professor e de sua mediação no processo pedagógico.

Um primeiro aspecto a destacar diz respeito a crítica importante feita pelos alunos-sujeitos em alguns dos Subprojetos acerca do trabalho com as práticas corporais desenvolvido nos programas de atividade física tradicionais. Sua avaliação é a de que estes programas caracterizam-se pelo “sempre igual”, aquilo que é repetitivo e que se faz porque se “deve fazer” e não porque se “gosta de fazer”. Estas suas observações nos remetem a analisar que há uma pressão e um repetição que não deveriam caracterizar este tempo mais livre do lazer. Estas características e exigências são constitutivas do mundo do tra- balho alienado e afastam as pessoas de novas experiências na vida. Em nosso projeto, observamos que estas características e exigências afastam as pessoas das práticas corporais, mesmo quando há uma recomendação médica para isso, inclusive porque as coloca numa situação de ambigüidade frente aquilo que deveria ser prazeroso.

Compreendendo esta importante avaliação desde o início do trabalho de campo, e atentos à importância das experiências com o movimento corpo- ral como constitutivas de uma formação mais ampliada, evitamos o uso de modelos estereotipados em cada uma das práticas corporais desenvolvidas. Mais do que isso, ao longo do Projeto, buscamos construir um ambiente de

descontração, o qual possibilitou uma exploração e uma ampliação do re- pertório de movimentos.

Este repertório foi e é fundamental no processo de re-significação de práticas corporais. Seu processo de ampliação foi possibilitando novas expe- riências a partir do movimento, novas percepções corporais, ampliando o hori- zonte de conhecimentos acerca de si mesmo, das pessoas e do mundo que nos cerca.

Sabemos que esta ampliação do repertório de movimentos pode desen- cadear uma sucessão de vivências de forma superficial, na qual os indivíduos passam a reagir por estímulos como meros espectadores. Nosso cuidado, po- rém, foi de construir um processo de experiências vividas em toda sua exten- são e profundidade, experiências que se caracterizassem pela reflexão e com- partilhamento, permitindo perceber a densidade do presente.

O repertório de movimentos traz consigo novas linguagens corporais, polissêmicas – como já nos reportamos anteriormente – decorrentes do ambi- ente, natural e social, que lhes confere inúmeros significados. O ambiente, mesmo, também vai sendo reconstruído a partir da experiência e por meio do compartilhamento, assumindo novos sentidos.

Estes aspectos foram nos ajudando a balizar o processo pedagógico a ser desenvolvido, construído, também, pela crítica feita pelos participantes da pesquisa aos programas tradicionais de atividades. Seus comentários desta- cavam a ausência de interação e a ênfase em atividades, mais do que indivi- duais, individualizantes. Esta é uma observação também indicativa para com- preender o alto grau de resistência que as pessoas apresentam aos programas tradicionais e que pode motivar a desistência destas atividades.

Organizamos o trabalho de forma a permitir e estimular a interação do grupo, possibilitando o contato e a descoberta de dificuldades e potenciali- dades mútuas. O processo pedagógico foi estruturado na maioria dos Subpro- jetos72, a partir das perspectivas da improvisação e da problematização, nos

72Um exemplo da não utilização desta perspectiva metodológica foi o Subprojeto “Artes Marciais no Caminho

do Guerreiro”, em função de algumas questões que foram determinantes para uma organização pedagógica diferenciada. Dentre estas, destacamos a necessidade de organizar um novo grupo diminuindo o tempo de tra- balho, as características deste grupo com muitos problemas de comportamento e necessidade de limites impos- ta pela instituição que acolheu o projeto, além da caracterização de uma arte marcial como o Karate-do, funda- da na disciplina e no autocontrole.

quais a resolução das tarefas de movimento incitava a dúvida e a troca, carac- terísticas de uma exploração coletiva.

A prática pedagógica visava constituir uma atitude pró-ativa nos su- jeitos envolvidos, incitando-os ao exercício da autonomia. Este incentivo visa- va a organização e encaminhamento de suas experiências com as práticas cor- porais para que estas pudessem fazer parte de suas vidas, para além do fun- cionamento deste Projeto. Opondo-nos a uma pedagogia de mera transmis- são de conteúdos e técnicas, buscamos re-significar desde os movimentos rea- lizados no cotidiano, até aqueles movimentos técnicos mais característicos das práticas corporais trabalhadas.

Consideramos neste processo, também, o espaço como sujeito, a partir das fundamentais considerações de Milton Santos e Maria Lucia Silveira (2001) sobre o “território vivo”. Compreendemos, juntamente com estes auto- res, que o espaço é portador de normas de ação, atuando ao criar regras de comportamento em seu interior, assumindo, assim, a condição de sujeito nes- te processo. A questão do espaço físico, que foi avaliada como um dos princi- pais problemas em boa parte dos Subprojetos, reforçou a importância de con- siderá-lo como normativo. A ausência de espaço adequado por vezes, ou as suas limitações73 por outras, para além daquelas que já haviam sido proje-

tadas, nos levaram a explorar o uso de espaços alternativos.

Trabalhamos, por vezes, ao ar livre, explorando ruas, praças, morros, bosques e escadarias. Mesmo em Subprojetos que não tinham uma inten- cionalidade voltada para as experiências da relação ser humano – natureza como central, as atividades mostraram aspectos interessantes. A avaliação des- te conjunto de atividades realizadas em espaços diferenciados foi bastante po- sitiva por parte dos participantes. Para eles, estas atividades marcaram uma maior integração com a vida, dado que podiam re-significar o uso de espaços que no cotidiano sequer eram percebidos, ou o eram apenas como uma paisa- gem de fundo a qual não se presta atenção. Destacaram, ainda, que as varia- ções também possibilitaram que o espaço, especialmente ao ar livre, se tor- nasse mais rico do que a sala de aula, na qual as pessoas tornam-se as princi- pais protagonistas.

73Durante certo período da pesquisa, houve dificuldade de acesso a alguns espaços utilizados por dois Subpro-

jetos, dada à greve dos servidores técnico-administrativos da UFSC. Em outros Subprojetos, o espaço não podia ser utilizado em dia chuvoso ou era pequeno e inadequado para a exploração de algumas práticas corporais.

A diversidade de espaços utilizados também interfere no andamento dos trabalhos do grupo, desestruturando comportamentos estereotipados que a rotina pode criar. Observamos que a variação dos espaços parece exigir uma outra qualidade de presença, em que o aqui e o agora vão impondo-se sobre as preocupações cotidianas, inclusive, com repercussões favoráveis sobre o bem-estar e a saúde. Estes aspectos destacados na análise sobre estas variações nos fazem lembrar que é possível desenvolver atividades com as práticas cor- porais em muitos e variados espaços, ainda que o melhor espaço seja um dire- ito do qual não devemos abrir mão.

A reflexão acerca do espaço proveniente de nossas análises de campo, leva-nos a avaliar que esta dimensão, assim como o tempo, tem sido relegada a um plano secundário pelos programas de atividade física tradicionais, assim como pela Educação Física de forma geral. O espaço tem sido considerado em uma condição de meio para as atividades a serem desenvolvidas, nos levando a uma redução pragmática desta dimensão. Esta concepção de meio está tam- bém expressa no termo meio ambiente, reforçando o equívoco de uma “acep- ção puramente técnica do viver”, como nos dizia Milton Santos (2003, p.2), e nos impedindo a constituição concreta de outras relações humanas e de uma consciência mais global sobre o mundo.

É neste sentido que propomos a re-significação de atividades desenvol- vidas em contato com a Natureza, possibilitando outro tipo de experiência no exercício desta relação ser humano – natureza. A Natureza, ao constituir-se como o não humano, possibilita o encontro com aquilo que existe indepen- dentemente da lógica e da criação humana, desestabilizando os estereótipos e formalismos que tendem a reproduzir-se nas relações sociais.

As mudanças de espaço, assim como outros procedimentos utilizados, tinham a intenção de provocar o estranhamento, a curiosidade, tornando estes sentimentos fortes motores para a ação pedagógica. Aquilo que é surpreen- dente causa uma perturbação, cria uma descontinuidade que desestrutura o conhecido; o estranho faz com que se perceba e se crie o novo no velho. Com- preender que o conhecido e o desconhecido podem ser simultâneos, podem conviver, ajuda a perceber a realidade de uma outra perspectiva, inclusive, a realidade que constitui a cada um de nós.

Aproximando-nos de um outro método de produção do conhecimen- to, fomos instigando os alunos a construírem outras técnicas de movimento.

Buscávamos nos encaminhar na direção de um auto-conhecimento com cria- tividade, numa poiesis de si, porém, não nos detendo na dimensão da interio- ridade deste processo. A reconstrução coletiva também ia se fazendo presente, na medida em que se possibilitava aos alunos-sujeitos que se apropriassem das técnicas corporais, do conhecimento sistematizado pela humanidade em cada uma destas práticas corporais. O processo pedagógico auxiliava a recons- trução histórica de cada uma destas práticas corporais, auxiliando cada pessoa a compreendê-las melhor em seus nexos e determinações.

Um dos elementos de maior dificuldade no trabalho com o corpo diz respeito ao conhecimento e as culturas que se materializam nas práticas cor- porais. Estas se expressam no próprio movimento, sobretudo, em sua forma de técnicas corporais, como Marcel Mauss (1974) há muito nos alertava. Assim, o corpo pode ser pensado como elemento mediador, articulador das práticas cor- porais, a partir das reflexões apresentadas por este autor em seu texto intitula- do “As Técnicas Corporais”. Busca ele mostrar, utilizando aspectos compara- tivos entre culturas distintas, como as técnicas corporais diferenciam-se de uma cultura para outra: são os “jeitos” de comer, de caminhar, de parir, de dormir, etc. Sua abordagem recai na visão natural, biológica que é atribuída ao corpo, considerando, mesmo assim, que ele é modelado e estabelecido pela vida so- cial. Com sua ajuda, pudemos compreender que ações e comportamentos, inclusive aqueles que se constituem no interior de manifestações culturais co- mo as danças e os jogos, são desdobramentos das representações sociais.

Ele chama a atenção que estas técnicas podem ser tratadas como um “fato social total”, isto é, como um fenômeno que envolve diferentes dimen- sões – sociais, psicológicas e biológicas – da experiência coletiva e individual. Para descrever tais experiências, ele parte do conceito de habitus, definindo-o como “produto da razão prática coletiva e individual, variando socialmente e historicamente” (idem, p.210). As técnicas corporais são, também, “maneiras como os homens sabem servir-se de seus corpos” (idem, p.211) e fazem parte das representações coletivas.

No contexto contemporâneo, é preciso considerar, ainda, que estas re- presentações são, em muito, constituídas a partir da indústria cultural. A lógi- ca do tratamento industrial para com as práticas corporais, assim como para as técnicas que lhe constituem, é lhes conferir um caráter de espetacularização. Seja como alta performance, seja como exploração do exotismo do diferente,

No documento Práticas corporais - v. 3 (páginas 196-200)