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II. DA VIGILÂNCIA BIG DATA – O POLICIAMENTO PREDITIVO

1. Vigilância versus Privacidade

1.4. Da privacidade e da proteção de dados pessoais enquanto limites à

Na temática que nos ocupa, o equilíbrio conflitual entre as liberdades individuais e os poderes do Estado passa pela harmonização da autodeterminação informacional, daí a sua enunciação tão cerrada nos textos que supra apontamos. Neste desiderato, o TJUE já teve oportunidade de se pronunciar quanto à matéria em análise, reafirmando o relevo da privacidade numa era marcada por desenvolvimentos tecnológicos sem equiparação e que colocam novos desafios sobre a monitorização da sociedade.

O acórdão Promusicae, de 29 de janeiro de 2008 (C-275/06), relativo ao acesso à prova digital152, refere que o direito comunitário exige que os Estados zelem por uma

interpretação das normas que permita assegurar o justo equilíbrio entre os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária, pelo que, na “execução das medidas de transposição dessas diretivas, compete às autoridades e aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros não só interpretar o seu direito nacional em conformidade com essas mesmas diretivas mas também seguir uma interpretação destas que não entre em conflito com os referidos direitos fundamentais ou com outros princípios gerais do direito comunitário, como o princípio da proporcionalidade”.

No Acórdão de 8 de abril de 2014 (C-293/12 e C-594/12), Digital Rights Ireland e

Seitlinger e o.153, o Tribunal entende que os dados de tráfego, considerados no seu todo,

permitem retirar conclusões muito precisas relativamente à vida privada das pessoas cujos dados foram conservados, como os hábitos da vida quotidiana, os locais em que se encontram de forma permanente ou temporária, as deslocações diárias ou outras, as atividades exercidas, as relações sociais e os meios sociais frequentados. Por conseguinte, a ingerência nos direitos fundamentais garantidos pelos artigos 7.º (respeito pela vida privada e familiar) e 8.º (proteção de dados pessoais) da Carta “[…] é de grande amplitude e deve ser considerada particularmente grave […], pelo que, para o tribunal, essencial é “analisar a proporcionalidade da ingerência observada”. Até

152 [Consult. a 22 out. 2019]. Disponível em: https://bit.ly/2pacb3V. 153 [Consult. a 22 out. 2019]. Disponível em: https://bit.ly/2WaFbED.

porque, “no caso vertente, tendo em conta, por um lado, o importante papel desempenhado pela proteção de dados pessoais na perspetiva do direito fundamental ao respeito pela vida privada e, por outro, a amplitude e a gravidade da ingerência neste direito […], o poder de apreciação do legislador da União é reduzido, havendo que proceder a uma fiscalização estrita”. “No que respeita ao caráter necessário da conservação dos dados […], cabe observar que é verdade que a luta contra a criminalidade grave […] assume particular importância para garantir a segurança pública e a sua eficácia pode depender em larga medida da utilização das técnicas modernas de investigação. […] No entanto, tal objetivo de interesse geral, por mais fundamental que seja, não pode, por si só, justificar que uma medida de conservação […] seja considerada necessária para efeitos da referida luta”. “Impõe-se pois concluir que esta diretiva comporta uma ingerência nestes direitos fundamentais [os previstos nos artigos 7.º e 8.º da Carta] de grande amplitude e particular gravidade na ordem jurídica da União, sem que essa ingerência seja enquadrada com precisão por disposições que permitam garantir que a mesma se limita efetivamente ao estritamente necessário”:

Na mesma linha, no Acórdão Schrems, de 6 de outubro de 2015 (C-362/14)154, o

Tribunal reitera que: “[n]o que respeita ao nível de proteção das liberdades e direitos fundamentais garantido dentro da União, uma regulamentação dessa proteção que implique uma ingerência nos direitos fundamentais garantidos pelos artigos 7.º e 8.º da Carte deve, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, estabelecer regras claras e precisas que regulem o âmbito e a aplicação de uma medida e imponham exigências mínimas, de modo a que as pessoas cujos dados pessoais estejam em causa disponham de garantias suficientes que permitam proteger eficazmente os seus dados contra os riscos de abuso e contra qualquer acesso e qualquer utilização ilícita desses dados. A necessidade de dispor destas garantias é ainda mais importante quando os dados pessoais sejam sujeitos a tratamento automático e exista um risco significativo de acesso ilícito aos mesmos”. O mais importante a retirar deste caso é a confirmação de que o TJUE não exceciona a proporcionalidade, necessidade e adequação de ingerências a direitos fundamentais, como o respeito pela vida privada (art. 7.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, “CDFUE”), e o direito à proteção dos

dados pessoais, (art. 8º, da CDFUE), no que tange, designadamente, aos objetivos de investigação criminal, luta contra o terrorismo e de proteção da segurança nacional.

No referente a Portugal, a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, procedeu a uma transposição razoável, visto os limites constitucionais, designadamente as normas do n.º 2 do artigo 18.º, n.º 4 do artigo 34.º e n.º 2 do artigo 35.º, haverem sido enquadrados, tanto na definição de “crimes graves” (artigo 2.º, n.º 2, alínea g)), como nos prazos de conservação (artigo 6.º) e nas garantias processuais (artigo 9.º), orientação mantida na Lei do Cibercrime (artigo 11.º, n.º2).

In suma, tendo por leitmotif o princípio da proporcionalidade, o TJUE não poupou

esforços na consideração da proteção de dados pessoais, de todos, quer suspeitos, quer arguidos, pelo que as ações de prevenção, de investigação criminal e a atuação dos tribunais apenas estão legitimadas se tiverem como finalidade e decorrerem do quadro dos Direitos Fundamentais. Há, portanto, um reforço da ideia de que a tendência será o reforço da proteção e o reconhecimento da importância da privacidade, num tempo de progressiva digitalização das nossas vidas, em que o Estado dispõe de uma ampla gama de mecanismos tecnológicos para monitorizar os cidadãos, pressionado pelo combate à criminalidade organizada e ao terrorismo.