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Da relação de dominação à autonomia

IV. Novos tempos, novas lutas

4.2. Da relação de dominação à autonomia

Os fatos narrados pela entrevistada ao longo do livro permitem afirmar que entre os fundamentos da sua relação com o marido se destacava a intenção de conseguir um matrimônio estável, de tipo tradicional, única forma de organização familiar que, segundo parecia, poderia garantir a ela e aos seus futuros descendentes o desenvolvimento pessoal, a proteção e a estabilidade que sempre almejou desde sua mais tenra infância.

Esse tipo de vínculo entre o homem e a mulher, assim como a organização familiar tradicional, estava baseado numa relação de poder patriarcal que só podia funcionar mediante o acatamento, por parte dos membros da família, daqueles papeis determinados socialmente para cada um deles. Na reprodução da prática dessas funções não estava alheio o “hábitus” de que falamos no primeiro capítulo. Vale a pena analisar a descrição que ela faz dos rituais praticados nos primeiros 15 anos de sua relação conjugal:

Recém casada eu obedecia muito a meu marido. Ele era caprichoso para comer: tinha que levantar-me muito mais cedo, porque seu café da manhã era com arroz branco, ovos fritos e um copo de vinho Sansón. Alem disso, quando eu o acordava, punha-lhe as meias, a cueca e a calça, de tal maneira que, quando se levantava, somente tinha que meter os pés nos sapatos e acabar de subir-se a cueca, a calça e amarrar os sapatos. Ele não me exigia isso, eu o fiz durante muito tempo com prazer212.

Que como foi nossa vida amorosa? A normal entre um casal que se queria. Ele costumava, quando vinha do trabalho, assobiar quando estava chegando à casa e eu o esperava na porta, limpinha, perfumada. Abraçávamos, e nos beijávamos. Sempre foi assim nos primeiros 10 ou 15 anos do nosso matrimônio. Disse-te que eu era muito romântica, que tinha lido muitos romances de amor e gostava que ele fosse audaz nas relações sexuais213.

212

Rubiera, p. 133.

144 Trata-se de um casal que têm uma sexualidade desinibida. Ambos desfrutam com prazer dos jogos sexuais que criam (tais como vestir o homem) e os rituais de recepção do marido, os quais solidificam o seu relacionamento. Mas, uma observação atenta dos jogos e afagos relatados por ela permite entender que neles se juntam prazer sexual, sensualidade e elementos patriarcais (como acordar cedo para preparar e servir o café da manhã), uma mistura que aponta para o fortalecimento da posição dominante do homem na relação de poder patriarcal.

O romantismo da jovem esposa - cujas expressões são aceitas pelo marido -, manifestado no contexto de uma relação patriarcal contribui, objetivamente, para o embelezamento e a ocultação da força dominadora presente no interior desse tipo de relação.

Nas relações do casal têm um papel importante fatores tais como a atração sexual, a obtenção da estabilidade material e/ou emocional, a manutenção ou aquisição do prestígio social, e a relação psicológica entre dois indivíduos. Todos eles operam, quase sempre, em acordo com as características da época e da realidade nacional.

No caso de Reyita, negra e pobre, a necessidade de avançar num meio social adverso caracterizado pelo racismo, lhe faz incluir entre as suas expectativas a mudança de vida através do casamento com um homem branco. Por tal motivo, entre os baseamentos da sua relação estava o agradecimento ao marido “por ter-se casado com ela”214

. Esse agradecimento, na sua circunstância racial e social, provoca a necessidade imperiosa de aceitar as “cláusulas gerais” do matrimônio patriarcal e algumas outras que fossem criadas pelo poder dirigente (o marido) para reafirmar seu domínio sobre ela.

Exemplo disso último é o acatamento da vontade impositiva do esposo durante os primeiros anos da sua vida em comum, impondo-lhe práticas serviçais, talvez consideradas por ele como típicas do senhorio escravista e que, pela sua origem pobre, nunca conhecera; a obrigatoriedade imposta aos filhos de abaná-lo enquanto descansava na casa215, que ainda que fosse uma prática patriarcalista muita estendida nas famílias cubanas, inspirava-se nos costumes impostos pelas famílias escravistas, em cujas casas senhoriais os pequenos escravos estavam obrigados a abanar os amos enquanto

214 Ibidem, p. 159.

215

“Parecia um colonizador na sua fazenda, rodeado de escravos, como os que eu via nas películas”. Diria sua filha Daisy. Rubiera, p. 163.

145 jantavam ou descansavam216, o que se transformou em símbolo de status; a proibição de vê-la conversando com as vizinhas no horário de retorno dele do trabalho; a imposição de relações sexuais sem levar em conta o cansaço dela provocado pelo trabalho na fonda; a recusa a passear com ela e com seus filhos, coisa que Reyita sempre almejou217; a negativa a levá-la à casa dos seus colegas de empresa brancos218 ou de convidar estes a conhecer sua família.

Essas e outras proibições aceitas tacitamente por Reyita eram expressões de poder conjugal, que se bem se manteve rodeada de expressões carinhosas e românticas, na prática e na sua simbologia contribuíam para a conservação do poder do patriarca, exercido sobre a esposa e os filhos de maneira rigorosa. As práticas que caracterizavam sua forma de dominação caseira incluíam os “elementos básicos” que aplica o homem em diferentes épocas e lugares do mundo, e outros que apontam para a imposição do poder racial branco no núcleo familiar.

A violência é uma das formas através das quais se implementa o poder masculino nos casais e nas famílias regidas pelas relações de dominação patriarcais. Segundo Saffioti e Almeida:

A organização social de gênero, que se traduz por relações hierarquizadas e desiguais, modeladas a partir da diferenciação social dos sexos, embora mutáveis e reatualizadas continuamente, encerra em si mesma uma dimensão de violência. Sua expressão sob a forma de agressão física representa o ápice, a exacerbação do exercício do poder do qual se revestem tais relações. Assim, não é preciso que cada mulher de per si tenha sofrido esta forma de violência. A existência do fenômeno em larga escala, bem como os mecanismos modeladores da identidade de gênero hegemônicos, amplamente difundidos por toda a

216 Esteban Montejo conta acerca dessas crianças e dos maus tratos que sofriam. “Quando um

negrinho era lindo e gracioso o mandavam para a casa dos amos. O negrinho tinha que passar a vida espantando moscas, porque os amos comiam muito. E ao negrinho o paravam num canto da mesa enquanto eles comiam. Davam-lhe uns abanos grandes e longos, feitos de folhas de palmas. E lhe diziam: „Pega. Para que não caiam moscas na comida!‟. Se alguma mosca caia num prato davam bronca nele e até o chicotavam. Eu nunca fiz isso porque eu não gostava de ficar próximo dos amos. Eu era cimarrón de nascimento”.In: Barnet, p. 29.

217 “Nunca passei fome, mas tive, sim, muita falta de afeto, de estímulo. Não pude conseguir algo

que sempre desejei: sair a passear com meu marido e com meus filhos. E tivesse sido tão lindo!”. Rubiera, p. 134.

218 Franz Fanon analisou o viso alienante presente num caso similar acontecido com uma escritora

martiniquense que, paradoxalmente, apoiava a atitude do seu companheiro francês. Reyita acatava, mas não aceitava essa atitude depreciativa do marido. Ver: Fanon, p.57.

146 sociedade, exercem pressão virtual sobre o conjunto das mulheres - em que pesem as possibilidades e as ocorrências, de fato, de transgressões219.

O livro de Saffiotti e Almeida, se bem está dedicado ao estudo da violência presente nas relações de gênero, parte da premissa de que existe um tipo de relações de poder entre os gêneros que determina a existência de hierarquia e funções independentes das criadas pelo sistema de poder classista, embora este perpasse as relações de gênero, as raciais assim como outras relações de poder220. Para o entendimento das relações familiares estabelecidas por Reyita e Rubiera essa interpretação é de grande utilidade.

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