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Da relação foco narrativo/narrador-enunciação/enunciado

CAPÍTULO SEGUNDO

1. Da relação foco narrativo/narrador-enunciação/enunciado

Ligia Chiappini (2002) observa que o desenvolvimento de toda a teoria do foco narrativo, tal qual modernamente a conhecemos, encontra suas raízes mais profundas nos modos da representação (o dramático e o épico). O romance, a epopeia da burguesia moderna, segundo Hegel, assimila as duas formas, trabalhando-as de modo variado, de acordo com o temperamento artístico do escritor.

A centralização, num primeiro momento, do pensamento crítico-teórico nas formas da representação inclui na pauta o debate acerca de particularidades que participam decisivamente no entendimento da dualidade apresentada. Por exemplo, a ideia de verossimilhança tem a sua parcela de contribuição, uma vez que o problema dos modos está, na moderna teoria da narrativa, intrinsecamente ligado à relação entre ficção e realidade (não mais necessariamente a objetiva). De fato, o debate aparece sob as reflexões tecidas em torno da necessidade de verossimilhança que, ainda segundo Chiappini (2002, p. 12-13), é “o pressuposto de boa parte da teoria do foco narrativo, desde que ela começa a se constituir mais sistematicamente”.

A “ilusão de realidade” é a consequência mais notável derivada das discussões sobre os modos de representação e seus aspectos constituintes, como é o caso da verossimilhança. A polêmica em torno do assunto, como sabemos, remonta ainda à Grécia Antiga, com os filósofos Platão e Aristóteles. Mas, será ainda a mesma polêmica, sobre outras roupagens, alvo dos principais debates literários travados no final do século XIX pelos realistas, alcançando o ponto máximo nos prefácios do romancista Henry James32.

O fundamento indispensável para se criar a “ilusão” é inversamente proporcional à presença das apreciações do autor; isto é, quanto menos intervier o autor, mais verossímil e convincente se torna a realidade da história contada.

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Por estes termos, como se percebe, a questão do fazer artístico do romancista mantém uma relação direta com postulados aristotélicos sobre a função narrativa do ser-que-enuncia33,

e o problema se estende também à postura da voz que fala na narrativa ou à sua posição ao enunciar.

Inicialmente confundido com o autor, o estatuto do narrador enquanto ser fictício parece ganhar os seus primeiros contornos nítidos, segundo nos informa Maria Lúcia Dal Farra (1978, p. 20), com Wolfgang Kayser, que entendia ser o narrador “um dos rostos do autor”, dotado de “poderes teleológicos de onisciência e onipresença”. Wayne Booth (apud DAL FARRA, 1978, p. 24) enxerga, por sua vez, uma instância tênue pairando entre a voz responsável pelo narrar e o autor enquanto ser físico e histórico. Tal instância é denominada de “autor implicado” ou “autor implícito”. Assim considerado, o autor implícito regula todo o mundo narrativo e a completa “visão de mundo” do narrador, construída através da soma dos pontos de vista a ele concedidos, restringindo-o, por outro lado, à explanação de toda a realidade do universo ficcional por ele narrado. Dele (autor implícito) provém a “ótica”, ou seja, o “conjunto de focos” presentes na narrativa, o “lugar de origem da emissão geradora do universo romanesco” (DAL FARRA, 1978, p. 24).

O entendimento de uma instância intermediária, como é o caso do autor implícito, abre caminhos para a exploração não somente do aspecto técnico do problema enunciação/enunciado, mas também daqueles que dizem respeito à sua ordem ideológica. Este último aspecto é fruto de uma característica, cuja força incoercível, segundo Dal Farra (1978, p. 20), não a permite se sujeitar a nenhuma forma de enunciação ‘neutra’: trata-se da apreciação, enquanto intervenção de juízos de valor ou de suas insinuações pela escolha de determinados elementos da fábula e o privilégio a eles concedidos (ou não).

Não é necessário dizer que, a esta altura, a ideia do desaparecimento do autor/narrador em favor da tão pretendida “ilusão de realidade” já havia caído por terra. Críticos do estruturalismo francês, como Gérard Genette, Roland Barthes e Tzvetan Todorov, começam um trabalho minucioso, orientados pelos postulados da linguística estrutural, em busca de elementos textuais que acusem a presença das apreciações do narrador e o modo como elas interferem na ‘diegese’. O último, por exemplo, afirma categoricamente: “toda frase comporta uma avaliação, mas em graus diferentes”, ou melhor: “Todo enunciado carrega consigo os

33 Aristóteles (1991, p. 279) exalta a grandeza poética de Homero por ele intervir minimamente em seus poemas,

deixando que os personagens falem por si, como ocorre no gênero dramático. E nisso, segundo o filósofo, o poeta grego excede os demais.

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traços de sua enunciação, do ato pontual e pessoal de sua produção; mas esses traços podem ser mais ou menos intensos” (TODOROV, 1976, p. 47-48, grifos nossos).

À dualidade antiga modo dramático/modo narrativo, base do debate sobre a questão dos pontos de vista, junta-se, agora, uma outra, que retira esse debate de um domínio meramente técnico e procedimental para o domínio mais abrangente da situação de enunciação, a saber, a dicotomia enunciação34/enunciado, envolvendo o primeiro membro da oposição todo o universo apreciativo que jaz atravessado na construção diegética (segundo membro). Não fugindo da discussão milenar em torno das formas de mimesis, poderíamos estabelecer a seguinte correlação, no que se refere estritamente ao poder de intervenção apreciativa: a enunciação estaria para o modo narrativo (que apresenta maior intervenção) assim como o enunciado estaria para o modo dramático (que apresenta menor intervenção).

Na deixa das dicotomias e correlações acima mencionadas, relembramos neste ponto aquelas que havíamos apresentado ainda no primeiro capítulo deste trabalho: a primeira, que trata da relação instância narrativa/enredo (preconizado por Secchin na oposição superficial narrador X cronistas); e a segunda, que trata da relação instância narrativa/domínios implícitos.

O primeiro caso, por se tratar das considerações traçadas em torno dos ângulos e pontos de vista possíveis através dos quais o narrador enquadra a história, abrange todas as manifestações de ordem técnica a que nos referimos rapidamente em alguns parágrafos atrás. O que está em jogo, portanto, são os procedimentos formais utilizados pelo narrador em função da história, que ocupa o centro de sua atenção.

Já o segundo caso, por envolver uma análise mais cuidadosa dos elementos textuais que manifestam a riqueza cultural-ideológica da voz que enuncia, abrange as preocupações teóricas com o conceito de discurso-narração-enunciação e a relação de privilégio concedido ao enredo em narrativas que apresentam um alto grau de intervenção ‘extradiegética’. Neste lance, pressupomos que um dos aspectos capitais destas narrativas é o deslocamento da função dos procedimentos técnicos que, em lugar de trabalharem em função da história (enunciado), passam a trabalhar em função dos aspectos sócio-ideológicos (enunciação) inferidos do discurso, transformando, às vezes, a própria história num pretexto de apreciação35.

34 Em Genette (1995, p. 212), o que chamamos aqui de enunciação equivale a narração, bem como em Lefebve

(1975). Mera diferença terminológica que em nada altera o entendimento geral da ideia. Posteriormente, entretanto, adotaremos a terminologia genettiana a fim de evitar confusões no momento de análise.

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Como se pode perceber, a autoridade da verossimilhança dos romancistas do final do século XIX (geradora, como se disse, da “ilusão de realidade”), passa a ser questionada enquanto condição para a criação de uma obra que convença o leitor. Forster, mesmo contemporâneo das tendências tecnicistas de inspiração jamesiana, já adianta que a obtenção da “ilusão” por meio do total desaparecimento do autor (e, por consequência, do desaparecimento total das suas apreciações) não é “tão importante como uma mistura adequada de personagens”. O que, de fato, convence o leitor não está necessariamente ligado a um método técnico destinado a alcançar a absoluta neutralidade, mas ao poder do romancista em levá-lo “à aceitação do que ele diz”, seja a sua visão restrita ou ampliada (FORSTER, 1969, p. 62-63).

O realismo machadiano parece demonstrar perfeitamente bem esse poder de convencimento, mesmo fora do “modelo flaubertiano” 36 de realismo, que dominava em seu

tempo. A história/fábula, em Machado de Assis, convence-nos mais por outros meios (os personagens, por exemplo) do que pela almejada neutralidade dos romancistas do realismo francês. O escritor brasileiro sabe transformar sua ficção num meio funcional que veicula toda uma carga ideológica inferida a partir do discurso, sem, entretanto, deixar de ser convincente, em termos de fabulação37. Essa característica da narrativa machadiana certamente agradaria

Lúkacs (2010, p. 179), para quem “não há composição sem concepção do mundo” e, por conta disso, o escritor precisaria ter “uma concepção do mundo sólida e profunda”, abrangendo o “caráter contraditório” do mundo a fim de exprimir essa dialética dos contrários por meio de seus protagonistas. Quem mais habilitado neste “mister”, na literatura brasileira, do que Machado de Assis? Na narrativa de O alienista, isso nos aparece claramente por meio da multiplicidade estrutural que envolve a composição do início ao fim. Não é possível definir uma temática com precisão sem recorrer constantemente ao auxílio de outras que se coadunam ao longo da história e interagem entre si, imbricadas que estão à semelhança de uma realidade sociocultural heterogênea e complexa. Adicione-se a isso um humor com as tonalidades de um pessimismo schopenhaueriano, uma ironia afiada, em muito semelhante à de Voltaire, e, então, as apreciações camufladas na própria seleção e estruturação da história transparecem ao nível discursivo.

A relação instância narrativa/universo implícito, mencionada há pouco, está fundamentada nas fissuras resultantes da interação entre a enunciação e o enunciado. A

36Arrigucci (1998, p. 25) diz, retomando um pensamento de Antonio Candido, que Machado “fazia uma figura

arcaizante no seu tempo”. E a conclusão mais óbvia, para nós, de tal fato se encontra no elevado grau de intervenção extradiegética dos narradores machadianos.

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alusão, enquanto processo base de uma análise que chamaremos inferencial, está intrinsecamente ligada à maneira como ocorre tal interação. Tanto esse conceito chave em nossa análise do conto O alienista, quanto o próprio método de análise inferencial (desenvolvido a partir da complexidade da referida narrativa) serão expostos de forma mais detalhada ainda neste capítulo, tal como havíamos prometido no término do capítulo anterior. A sequência a que nos propomos seguir após essas notas introdutórias obedece aos seguintes critérios: primeiramente, faremos uma reflexão sobre os postulados dos principais teóricos da técnica da ficção – em que procuraremos identificar como o problema dos modos de representação aparece na base dos corolários técnicos; num segundo momento, passaremos a considerar as contribuições que versam diretamente sobre as relações entre enunciado e enunciação38; por fim, exporemos a nossa proposta de análise do conto, a partir do que selecionarmos de todo o aparato teórico precedente. Vamos, então, aos problemas do foco narrativo do ponto de vista da técnica.

2. Dos postulados teóricos da técnica da ficção e de sua relação com o problema dos