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3.10 Coelhinhos do mato: diálogo texto-leitor

DA TEORIA À PRÁTICA

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4.1. Interação texto-leitor na sala de aula

Como propomos investigar a interação texto-leitor, sentimos necessidade de refletir sobre o tema, tendo em vista o papel da literatura em sala de aula. Sem dúvida, como propôs Zilberman (1991), a sala de aula é o “espaço para o trânsito de idéias”, onde a diversidade de sujeitos implica uma multiplicidade de opiniões e estas merecem ser valorizadas no processo ensino-aprendizagem.

Segundo Vera Teixeira de Aguiar (In: Evangelista e Brandão, 1999, p.240), a sala de aula é o:

“espaço de variedade de sujeitos, de objetos de leitura e de práticas culturais. Uma proposta pedagógica que dê conta dessa variedade de sujeitos e de objetos de leitura deve apoiar-se na Sociologia da leitura, enquanto recorte teórico que se debruça sobre as questões do livro e seus mediadores sociais e na Estética da Recepção, atenta às relações entre texto e leitor no cruzamento de horizonte de expectativas.”

No contexto de sala de aula, nem sempre a relação do leitor com a literatura se dá de forma coerente com as propostas teóricas que orientam os estudos literários contemporâneos. Como salientamos anteriormente, as contribuições da Teoria da Literatura ainda não têm uma penetração marcante na escola, o que dificulta o trabalho dos professores, os quais geralmente se acomodam às análises anacrônicas em face do objeto literário.

Se, por um lado, as discussões teóricas voltam-se para a noção de uma antropologia literária, como se pode notar nos estudos mais recentes de Iser (Prospecting: from Reader

Response to Literary Anthropology), ou também apontam para as mudanças de paradigmas da

leitura literária diante das novas ferramentas de comunicação (Cornis-Pope, 2002; Fadel, 2002, Chartier, 1999, Zilberman, 2001), por outro lado, a escola ainda aborda o texto literário à luz de enfoques predominantemente formalistas, estruturalistas, biográficos que não analisam dialogicamente a interação autor-obra-leitor.

163 Enquanto a escola não reconhecer os alunos como sujeitos-leitores responsáveis pela atualização do texto literário, ou seja, enquanto a relação leitor e literatura não for repensada em sala de aula, estaremos perpetuando uma visão mitificada do texto literário como algo complexo, difícil e distante da realidade do aluno. É por meio da literatura que o leitor descobre como entender dados históricos, geográficos, políticos e sociais que participam da enunciação e se encontram transfigurados nos enunciados. É preciso que o aluno entenda a relação entre enunciado-enunciação como processo indissociável e constitutivo do fenômeno literário.

A literatura deve ser discutida com o aluno, a fim de que este possa experienciá-la e entendê-la como uma forma de representação social, ou ainda como uma manifestação artística de cunho interdisciplinar intimamente atrelada à realidade.

Iser (1999, p.93) afirma que “a literatura oferece a oportunidade de formularmo-nos a nós mesmos, formulando o não–dito”, ou seja, experienciando o texto literário somos capazes de avaliar nossas próprias experiências e desenvolver uma atitude dinâmica em face da literatura.

O modo como a escola trabalha a leitura literária parece não valorizar essa concepção de literatura como meio de o leitor experienciar o texto e compreender melhor o seu próprio mundo, as suas experiências prévias. Os discursos escolares defendem o leitor como agente responsável pela atualização da significação textual, contudo, as práticas de ensino estão dissociadas dessa concepção teórica, uma vez que o ensino de literatura ainda está preso a uma tendência impositiva que defende:

“[...] o elenco de normas que compete representar: as de ordem estética, enquanto exemplo de períodos ou estilos literários, de utilização da língua nacional; as de ordem moral, nos casos em que a ficção, via de regra a destinada à infância, tem uma orientação pedagógica que precisa tornar-se visível para o leitor. Eleito o tipo preferencial de leitura na escola, a literatura assume uma significação que se confunde, muitas vezes, com um modelo de transmissão de valores de natureza autoritária e normativa.” (Zilberman, 1991, p.116).

Não se pode negar a escolarização da literatura em sala de aula, porque é na escola que se constituem os saberes por meio da didatização de conhecimentos. Também sabemos que a escola é um dos espaços de circulação e difusão da literatura nas práticas de leitura e

164 produção textual. No entanto, essa escolarização da literatura precisa ser adequada, como observa Soares (In: Evangelista e Brandão, 1999, p.47):

“Distinguimos entre uma escolarização adequada e uma escolarização inadequada da literatura: adequada seria aquela escolarização que conduzisse eficazmente às práticas de leitura literária que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se quer formar; inadequada é aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce a literatura, afastando, e não aproximando, o aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou aversão ao livro e ao ler.”

Considerando a escolarização adequada, o leitor deveria ser capaz de experienciar o texto literário, já que, como observa Iser (1999), a literatura funciona como um meio de reconstruir os indícios textuais, formulando o texto e a nós mesmos. Ao desenvolver uma

escolarização adequada do texto literário, a escola teria como meta ampliar o número de

leitores críticos, capazes de articular o dito ao não-dito, ler as linhas, as entrelinhas e para

além das linhas (cf. Silva, 1998), estabelecer conexões entre o texto e o contexto.

Numa escolarização inadequada da literatura, desenvolve-se o leitor reprodutor, aquele orientado para identificar as informações que estão no texto (idéias principais, personagens principais, secundárias...), mas incapaz de estabelecer um diálogo mais amplo com o texto, construindo, reconstruindo informações, inferindo, antecipando, rejeitando, abandonando sentidos previamente estabelecidos. Nessa perspectiva inadequada da escolarização, o sentido é buscado pelo receptor como algo inerente ao texto e não como resultado das operações que o leitor realiza em contato dinâmico com a obra.

Diante da escolarização da literatura, quais seriam as possíveis diretrizes capazes de diminuir a distância entre literatura e leitor que ainda parece persistir no espaço escolar? Vários autores sugerem orientações para o ensino de literatura no nível Médio. Malard (In: Zilberman, s/d, p.24), por exemplo, salienta os seguintes objetivos:

“compreender a literatura como fenômeno social integrado num contexto histórico-sócio-econômico; criar ou desenvolver o espírito crítico do estudante; transmitir conhecimentos; perceber o fenômeno literário como objeto de linguagem [...] desenvolver o uso da linguagem para as mais diversas situações sociais [...] comparar textos literários e não –literários” .

165 Dos objetivos propostos pela autora, compreender a literatura como fenômeno social atrelado às condições históricas, econômicas, políticas e sociais revela-se como uma premissa fundamental para o aluno perceber as relações entre o texto literário e o contexto em que está inserido. A literatura participa da sociedade e esta é representada por meio do fazer artístico que cria um universo ficcional, um mundo possível marcado por situações familiares, as quais convidam o leitor a participar do jogo interativo da leitura.

É preciso que o aluno entenda a relação literatura e sociedade, reconhecendo as fronteiras intransponíveis entre o mundo ficcional e a realidade, pois como afirma Bakhtin (1993, p.358):

“Apesar de toda inseparabilidade dos mundos representado e representante, apesar da irrevogável presença da fronteira rigorosa que os separa, eles estão indissoluvelmente ligados um ao outro e se encontram em constante interação. [...] A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no processo de sua criação como no processo subseqüente da vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos ouvintes-leitores.”

Salienta Bakhtin (1993) que o processo de criação e o de recepção apresentam-se interligados dialogicamente pela capacidade representativa da literatura. A obra literária “reflete e refrata a realidade” no processo de transfiguração das contradições sociais, tendo em vista as redes polissêmicas que constituem o fazer artístico .

Como revelam os dados coletados, os alunos não conseguem, de modo geral, perceber a literatura como uma representação da realidade. Encaram o texto literário como cópia do real, pois não reconhecem o poder de transfiguração do universo ficcional. No entanto, sabemos que a literatura transgride normas, convenções, desconstrói a própria linguagem e inaugura mundos possíveis, por meio da transfiguração do real. Essa visão dos alunos reforça a idéia de que a escola aborda a literatura como pura e simples imitação da realidade, sem considerar o processo de representação e transfiguração das convenções sociais.

A leitura de textos que rompem com as convenções e inauguram uma nova forma de representação, que refletem uma nova realidade, transfigurada e reinventada no mundo ficcional, textos que investem no fantástico e no realismo mágico, parece ainda não ter muita

166 penetração no contexto escolar. Isso pode gerar uma visão homogênea e mitificada da literatura, considerada apenas pela sua função mimética.

Ao investigar as relações entre a obra ficcional e a realidade, assinala Iser (In: Lima, 2002, p.107):

“[...] o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo. Essa dupla função de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações. [...] O texto ficcional automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor, indicador de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se fosse realidade.”

No caso da produção de Gilvan Lemos, pelo fato de seus textos representarem mimeticamente traços do cotidiano, a maioria dos alunos confundiu ficção e realidade, pois o processo de identificação com o mundo ficcional foi tal que eles não conseguiram distinguir onde começa e onde termina a ficção ou a realidade. O contexto familiar representado nos contos de Gilvan Lemos levou os alunos a experienciarem os textos como se estivessem vivenciando uma situação real e concreta do mundo empírico.

Uma possível solução para atenuar essa dificuldade seria intensificar o trabalho com textos literários dos mais diversos tipos, dando oportunidade de os alunos entrarem em contato com textos não só realistas, naturalistas, mas também fantásticos ou com histórias construídas com base no realismo mágico, a fim de que o aluno desenvolvesse uma compreensão variada do fenômeno literário. É preciso entender a literatura não apenas como fenômeno de representação social, mas também como meio de transgressão das normas preestabelecidas socialmente, um instrumento político-social de luta, de combate à alienação, por exemplo.

Outra atitude importante é promover atividades com textos literários e não-literários, discutindo as diferenças e semelhanças no processo de interação do leitor com o texto em situações diversificadas de comunicação. Segundo Iser (In: Lima, 1979), a interação texto- leitor na comunicação literária difere consideravelmente das situações em que a interação ocorre face a face, como nos diálogos cotidianos, por exemplo.

167 “falta-lhe a situação face a face, em que se originam todas as formas de interação social. Pois o texto não pode sintonizar, ao contrário do parceiro na relação diádica, com o leitor concreto que o acompanha. Na relação diádica, os parceiros podem mutuamente se perguntar, de forma a saber se controlam a contingência ou se suas imagens da situação transpõem a inapreensibilidade da experiência alheia. O leitor, contudo, nunca retirará do texto a certeza explícita de que a sua compreensão é justa.” (Iser, In: Lima, 1979, p.87).

Em nosso entender, cabe à escola ampliar leituras comparativas entre textos literários e não–literários, considerando fatores mais amplos inter-relacionados à concepção do literário (contexto de produção, editoração, circulação do livro/texto, contexto de recepção etc...) e não apenas investindo na apreensão das marcas de literariedade inerentes ao texto. 40

Conforme Bordini e Aguiar (1993, p.16-17):

“A fruição plena do texto literário se dá na concretização estética das significações. À medida que o sujeito lê uma obra literária, vai construindo imagens que se interligam e se completam – e também se modificam – apoiado nas pistas verbais fornecidas pelo escritor e nos conteúdos de sua consciência, não só intelectuais, mas também emocionais e volitivos, que sua experiência vital determinou. A educação do leitor de literatura não pode ser, em vista da polissemia que é própria do discurso literário, impositiva e meramente formal.”

Tendo como meta o desenvolvimento de uma educação para o leitor de literatura, como comentam as autoras, é preciso também que a escola articule a interpretação semântica e a interpretação crítica, entendidas aqui na acepção que lhes confere Eco (1999, p.12):

“A interpretação semântica ou semiósica é o resultado do processo pelo qual o destinatário, diante da manifestação linear do texto, preenche-a de significado. A interpretação crítica ou semiótica é, ao contrário, aquela por meio da qual

40 Conforme Gonçalves Filho (2000, p.93- 109): “circunscrever a literatura ao gueto da literariedade é limitá-la mais em sombras e, já que estamos falando de juízos de valor, é um modo cruel ― porque silencioso ― de vandalismo cultural. [...] O discurso literário não é um desvio, uma rebelião das normas estéticas que se isola do mundo, mas um componente cultural cuja função é cumprir com o papel de transcendência do humano, expressa no ideal de procura em horizontes que se abrem e se registram em palavras e, de um modo geral, na arte.”

168 procuramos explicar por quais razões estruturais pode o texto produzir aquelas (ou outras alternativas) interpretações semânticas.”

Nesse sentido, o leitor que decide fazer uma leitura por prazer, buscando preencher o significado do texto, assume o papel, na perspectiva de Eco, de um leitor semântico, o qual visa ao conteúdo do texto. Ao passo que o leitor crítico, instrumentalizado, é aquele que busca analisar de que modo a estrutura do texto pode revelar potencialidades significativas. Nesse último nível, ocorre o ato de interpretação crítica ou semiótica. 41

É claro que às vezes assumimos, dependendo de nossa intenção no ato da leitura, tanto o papel do leitor comum, ingênuo, interessado apenas no prazer da leitura, quanto a postura do leitor crítico, instrumentalizado, a fim de descortinar os meios pelos quais a obra se organiza.

A escola tenta contribuir para a formação de leitores críticos, no entanto, esse objetivo é frustrado, já que as leituras desenvolvidas pelos alunos são previamente dirigidas, cerceadas pelas interpretações instituídas pelos professores e livros didáticos. Sendo assim, se a escola não consegue formar leitores comuns, muito menos conseguirá formar leitores críticos, capazes de perceber a obra literária sob o aspecto simbólico/lúdico.

O trabalho com o texto literário em sala de aula deve centrar-se no aluno-leitor como agente dinâmico capaz de interagir com o texto e desvendar os sentidos que a literatura sugere no ato da leitura.

É com o objetivo de valorizar as respostas dos alunos-leitores que propomos uma análise global dos dados coletados na pesquisa de campo, como veremos na seção a seguir.

41 Reis (1981, p.23) traça uma distinção entre o leitor comum e o leitor crítico. Retomando as palavras de Reis : “são precisamente os atributos específicos de um certo tipo de leitor [...] que em parte justificam a definição que aqui propomos para a leitura crítica do texto literário: uma atividade sistemática que, partindo do nível da expressão lingüística, se assume como processo de decodificação e avaliação estética do discurso literário. Distinta da leitura de certo modo superficial própria do leitor comum que encara a obra de arte literária fundamentalmente como objeto lúdico, a leitura do crítico enriquece-se e especializa-se em função das qualidades inerentes ao seu sujeito; dotado, antes de mais, de um perfeito domínio do código lingüístico, o leitor instrumentado que é o crítico deve completar esse domínio com o conhecimento, tanto quanto possível exaustivo, dos códigos retóricos, estilísticos, temáticos, ideológicos e estruturais do texto literário”.

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