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Dama como homem: questionando padrões de gênero

3 HOMOAFETIVIDADE E DEMOCRACIA NOS CONTOS

3.2 CATEGORIAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE EM “DAMA DA NOITE”

3.2.2 Dama como homem: questionando padrões de gênero

Um primeiro ponto a ser ressaltado é que, na literalidade do conto, todas as falas da narradora se dão na voz feminina, o que nos levaria, numa primeira leitura, a atribuir- lhe esta identidade de gênero. Entretanto, como explanamos anteriormente, podemos inferir também uma identidade masculina para a Dama da noite a partir do contexto de produção da obra de Caio Fernando Abreu, uma vez que suas narrativas são repletas de personagens que não se enquadram na binaridade masculino/feminino ou na oposição hetero/homossexual. Por exemplo, temos, como narrado no conto Caçada, lançado em Pedras de Calcutá, a bichinha de “gogó saliente mal disfarçado pela fita de veludo” (ABREU, 2007c, p. 70), ou a personagem Saul que se traveste de Dulce Veiga no romance Onde andará Dulce Veiga?:

Entre os pontos pretos de barba, por trás da camada de maquiagem realçando as maçãs do rosto e a linha orgulhosa, quase dura do maxilar, para tornar a face falsa ainda mais semelhante à dela, sem muita dificuldade reconheci aquela pele morena e os olhos de pânico de vinte anos atrás. As pupilas dilatadas estavam ficas em mim. Em voz baixa, chamei seu nome: - Saul. (ABREU, 2007b, p. 173)

Outro traço da narrativa de Caio que nos permite inferir a identidade da Dama como masculina são as constantes elipses do gênero de suas personagens. Se, no conto em análise, a personagem não se nomeia homem ou mulher, mas fala sempre na voz feminina, em outros contos do autor são suprimidas da narrativa marcas mais claras de gênero, como o nome das personagens no breve conto “Diálogo” de Morangos mofados, chamadas apenas de A e B. Ou, no mesmo volume, o conto Luz e sombra em que o narrador se dirige a seu interlocutor apenas como você, sem explicitar se fala com um homem ou uma mulher.

Partindo dessa abertura dada pelo conjunto da narrativa de Caio, podemos alicerçar nossa hipótese em dois excertos do conto. No primeiro deles, a narradora afirma: “Se eu tô tesuda e você anda duro e eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu. Quanto custa? Me diz que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda também se for preciso” (ABREU, 1988, p. 92). No segundo, ela afirma temer a AIDS: “Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei para meia cidade e ainda por cima adoro veado.” (ABREU, 1988, p. 95).

No primeiro trecho, vemos uma referência ao sexo pago. Segundo Parker (2002, p. 122), um grande número de espaços destinados à sociabilidade e realização do desejo gay surge a partir do fim dos anos 1970, no Brasil (o conto foi lançado em 1988). Dentre estes espaços, destacam-se as saunas especificamente voltadas para este público, locais em que tanto se pode praticar sexo espontaneamente como pode se pagar por ele. A perspectiva do sexo pago permite aproximarmos a imagem da Dama à de um homem homossexual, já que o fenômeno de proliferação de locais para sexo pago entre homens não encontra espelho no campo feminino. Em outras palavras, em nossa sociedade, o desejo feminino não encontra espaços estabelecidos para a realização de sexo pago da mesma forma como os homens, sejam eles hetero ou homossexuais, encontram para a realização de seu desejo.

Esse enquadramento da narradora como homem homossexual também a aproxima de um campo de exclusão em relação à sexualidade dominante. Assim, se podemos supor que a Dama mulher é heterossexual, ao trazermos a personagem para o campo do masculino, sua identidade necessariamente passa a ser homossexual, especialmente quando ela revela ter dado para meia cidade e adorar veado.

pela cultura brasileira aos homossexuais. Carrara; Simões (2007) refletem sobre o sistema indicado por Peter Fry30 de uma tradicional hierarquia sexual brasileira que se estabelece por meio da oposição entre gêneros. Nesta regra tradicional, dividem-se homens que fazem sexo com outros homens como ativos e passivos (ou bofes e bichas, segundo Posso, 2009), associando estes últimos ao campo do feminino, e reservando a eles o desejo pelos sujeitos ativos/masculinos. Porém a postura do homem Dama da noite é subversiva o suficiente para que, ao mesmo tempo em que reivindica a identidade feminina, se permita desejar veados, ou seja, desejar outros homens que, como ele(a) se aproximam do campo do feminino.

A narrativa, ao legitimar essa postura, desestabiliza a noção de identidade social como algo estanque, à qual os indivíduos apenas aderiram ao se integrarem nos espaços coletivos. Heilborn conceitua que a identidade social “constitui-se na atualização de princípios de classificação social ordenados por valores que fabricam e situam os sujeitos” (2006, p. 137). No conto em tela, a Dama não apenas refuta a identidade sexual heteronormativa, como também refuta a exceção que esta lhe permite de poder ser um homem identificado com o passivo/feminino e que deseja outros homens identificados com o ativo/masculino. Assim, a fabricação da identidade social homossexual pela heteronorma, que rotularia homens passivos/femininos como desejantes de homens ativos/masculinos, é desestabilizada na narrativa.

O outro trecho citado no inicio dessa seção faz referência à epidemia da AIDS desencadeada a partir dos anos 1980. À época da publicação do conto, a doença era marcada por uma série de estigmas, entre eles, o que a associava aos homens gays como alvo específico do vírus. Assim, a preocupação da personagem em estar ou não contaminada era, à época, mais um medo dos homens gays que das mulheres heterossexuais, o outro perfil que estipulamos em nossa análise. Ressaltemos que na hipótese da mulher Dama, o fato de desejar homens gays também a poria no campo dos infectáveis, já que o estigma da doença os acompanharia em suas eventuais relações heterossexuais.

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Carrara se baseia na ideia de Fry de que haveria três sistemas disseminados no Brasil, surgidos em momentos distintos, mas hoje coexistentes. Além da regra tradicional citada acima, teríamos um segundo modelo, formulado por médicos e psiquiatras, em que se consideraria homossexual todo indivíduo que mantivesse relações com outro do mesmo sexo independente do papel ativo ou passivo. E um terceiro modelo, chamado igualitário, derivado do segundo, mas contrário ao espectro de anormalidade e doença dado à homossexualidade. Ressalte-se o papel secundário que as mulheres lésbicas têm dentro do modelo tradicional, já que centraria sua hierarquização na oposição ativo/passivo.

Um último aspecto que podemos ressaltar trata da expectativa social em torno de casamento e filhos. Se na hipótese de uma personagem feminina, a ausência dos dois itens se revela como uma frustração a uma característica que a sociedade veria como natural no corpo da mulher, para a hipótese da personagem masculina também vemos uma frustração, na medida em que o casamento e a procriação seriam uma confirmação da masculinidade e heterossexualidade das quais a personagem abriu mão. Numa sociedade com uma clara hierarquização entre masculino e feminino, escolher transitar do degrau mais alto (abrindo mão da masculinidade representada no casamento e na procriação) para o campo socialmente tratado como inferior (o feminino) se revela uma afronta à identidade social pré-estabelecida.

Em retaliação, esse indivíduo seria repelido para os espaços marginais como os bares e casas noturnas frequentadas por estereótipos negativos tanto do masculino quanto do feminino, como as travestis ou prostitutas. Assim, a alternativa para esses sujeitos seria se esconder durante o dia e rastejar pela noite, nos lugares marginalizados que a convenção social lhes legou.