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4.3 PERSONAGENS SAGRADOS DO MARACATU RURAL

4.3.2 A DAMA DO PAÇO E A CALUNGA

A Dama do Paço é muitas vezes, no momento que recebe a Calunga, uma mulher “pura”50 e iniciada na umbanda, além de ser responsável pelos cuidados da Calunga e só ela

o urucum tem sua origem na América Tropical e seu nome cientifico é Bixa Orellana. Disponível em: www.redetec.org.br, acessado em 27/06/2011.

50“Pura”, termo utilizado por membros do Maracatu em sinônimo de virgindade, pois no ano em que ela é escolhida para ser Dama-do-Paço, a mesma deve ser uma jovem que nunca tenha mantido relações sexuais. Esse estereótipo de pureza de mulher “virgem” é uma forma de impedir que as “impurezas” trazidas pelo pecado intramundano não “contaminem” o devir sagrado de seus rituais, representando ainda um tabu, interdito

tem acesso à boneca até os períodos de apresentação. Também conhecida como dama de boneca e ela é responsável por carregar a defesa do Maracatu, por livrá-lo dos riscos e maus olhos. Nos meses prévios, inicia-se um trabalho de preparação, onde são oferecidos trabalhos aos espíritos e a calunga recebe todas as energias, passando a ser o elemento central da simbologia ritualística do Maracatu. Ela impede as “malquerenças” e “maus olhos”, como eles dizem. Nos meses prévios, inicia-se um trabalho de preparação, onde são oferecidas “obrigações” aos espíritos e a calunga recebe todo o Axé por ser o centro dos rituais, como já foi indicado. Estas obrigações, também preparadas por dona Neta e seus ogãs,51 são colocadas

previamente, no Peji e a boneca é “calçada”52, absorvendo os “bons fluidos”.

“Pra gente que somos, eu que sou rainha e as meninas, dama do paço, que sai com a boneca, tem que tomar um banho de limpeza. Tá entendendo? Não ter relação com os homens durante os três dias do carnaval. As bonecas têm que ser tudo defumada. Antes do Maracatu sair tem que despejar o que? Cerveja pras moça e pitú pro homem da rua. Tem que deixar uma farofa com bastante pimenta que é pro homem da rua, que é pra gente sair e durante os três dias de carnaval, nada de mal acontecer, porque meu preparo é feito todo ano pra esse Maracatu sair. Ceiça também se prepara, que ela também não vai de boca aberta. Eu agora esse mês de agosto também tenho que fazer minha limpeza, por que vai chegar o carnaval né? Eu tenho que ir pra minha Mãe de Santo fazer minhas obrigações, com esse negócio de... galinha, pinto e cada qual faça sua limpeza, pra quando a gente chegar o carnaval já tá com o corpo limpo e sair bem bonita, linda e maravilhosa e vou brincar o carnaval e nada de mal vai acontecer com a gente. Durante esses anos que eu saio nesse Cruzeiro do Forte, nunca aconteceu nada, desde de oito anos que saio nesse Maracatu e sete anos que sou rainha” [...].

Neste depoimento da Dona Neta percebe-se as negociações com o sagrado, que se referem a uma tentativa de comunicação transcendente entre o mundo físico e o metafísico, uma relação de “troca” entre os homens e seus deuses (orixás e entidades), a fim de obter ganhos terrenos53.

proibitivo de respeito às entidades veneradas. De acordo com Douglas (1976), os rituais de pureza e impureza fazem parte de sistemas simbólicos de todas as sociedades e não podem ser explicadas apenas pelo viés da higiene ou ainda da estética, mas sim pela ideia de santidade, da hierofania que dali ou por meio de pode surgir. O contrário seria um entrave à manifestação plena do sagrado.

51 Filhos de Santo ou pessoas de confiança que ajudam na organização de um terreiro. 52 Purificada e protegida espiritualmente.

53Utilizamos aqui o referencial teórico de (STARK; BAINBRIDGE, 2008), em sua teoria da religião, os autores

consideram que o fenômeno religioso se processa por meio de duas ações fundamentais, são ações da “economia do sagrado” denominadas de: Recompensas que são as aquisições intramundanas, conquistadas pelas relações materiais e “profanas” da vida, enquanto os compensadores são instrumentos simbólicos acessados nos momentos em que as recompensas não são atingidas, recorrendo-se à transcendência. Quando os indivíduos e os grupos não obtêm explicações e sentidos da vida por meio da recompensa, buscam através dos compensadores, aliviarem as crises anômicas, atribuindo sentido e compreendendo a existência por meio de forças extra- humanas.

Nesse contexto cabe refletir sobre a teoria do sacrifício de Mauss e Humbert (2005, p. 106, apud MARTIN e ANDRADE, 2010, p. 118), na qual afirmam: “Em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que o sacrificante se priva e dá”. Identifica-se aí dois mecanismos, um dos deuses exige o sacrifício, ou o seu culto, e em outro a abnegação do sacrificante não é desinteressada, mas, egoísta por esperar uma retribuição.

Para Roger Callois (1988), o sacrifício é um fator que contribui para a manutenção da ordem cósmica e é por meio dele que o individuo “deseja ser bem sucedido nos seus empreendimentos ou adquirir as virtudes que lhe permitirão o êxito”, evitando, dessa maneira os “infortúnios que o espreitam”. Pelo sacrifício, o fiel objetiva ofertar aos deuses passando a ser seu credor que espera a liquidação da divida por parte das potencias sagradas que ele venera. Essas, por sua vez, tornam-se devedoras do donatário, ficam a ele ligadas pelo que receberam e, para não permanecerem na condição de devedor, pagam suas faturas concedendo os benefícios pedidos. Com o êxito dessa negociação, o equilíbrio cósmico é reestabelecido.

Sobre a boneca Calunga, o totem dos Maracatus, Dona Neta descreve:

A Dama de Paço sai com as bonecas, duas Dama de Paço, uma é minha irmã, outra é uma amiga. As bonecas também, antes de sair, tem que fazer as limpeza pra botar as boneca na rua porque quem comanda o Maracatu é as duas bonecas. Muitas pessoas não sabem disso, mas a coisa forte é as duas boneca do Maracatu, é porque é a entidade que toma conta do Maracatu é as duas bonecas de frente, pode ver, as dama tão tudo de frente, porque as duas boneca carrega as forças de dentro do Maracatu.

Ilustrações 4 e 5 - Damas de Paço e as Calungas do

Maracatu Cruzeiro do Forte. Foto: José Roberto Feitosa de Sena (2011)

Mário de Andrade (1930) revela que o termo Calunga tem múltiplas origens e sentidos, muitos de caráter profano. No entanto este autor deixa claro que a Calunga dos Maracatus (em referência aos Maracatus-Nação) é fundamentalmente um elemento sagrado das manifestações que as utiliza, exercendo um papel que, como nos informou D. Neta, é da maior importância simbólica dentro do Maracatu Rural.

A meu ver a Calunga é tudo isso e mais alguma coisa... Ídolo, feitiço, e apenas objeto de excitação mystica, e ainda symbolo político-religioso de reis-deuses: como a sua nomenclatura, o seu conceito não está nem talvez nunca esteve perfeitamente delimitado dentro da mentalidade negra (ANDRADE, 1930, p. 46).

A Calunga dos Maracatus Rurais é um empréstimo cultural dos Maracatus-Nação, no momento em que os primeiros deveriam adaptar sua manifestação às características da segunda. Como já foi abordado, na questão das interferências para sua aceitação no carnaval do Recife, a “Catita” (como se refere o Sr. Nazaré) é apropriada e imbuída de elementos simbólicos do Maracatu de Baque Virado e das experiências religiosas do Maracatu de procedência rural. A fertilidade do imaginário popular ressignifica e dá à Calunga um sentido poderoso e totêmico dentro do Maracatu de Baque Solto, que reforça a identidade desse grupo de acordo com Lima (1979). O totem das religiões afro-brasileiras é um fator de aglutinação, elemento de confraternização, ressaltando sua importância como mecanismo de formação do

grupo em torno de um elemento denominador comum, de um fator de comunhão. Portanto, é possuidor do poder simbólico segundo Bourdieu (1989). Sobre o “poder” existente na Calunga, argumenta dona Neta:

“Muita gente que num sabe pensa que essas bonecas num vale nada, diz assim: isso é uma bruxa, isso é umas bruxas de pano, isso serve pra nada, mai o que? O poder dos maracatu está nas bonecas, tanto na parte dos Orixás como na parte da Jurema porque essas bonecas tem que ser calçadas, as Calunga são as parte mais forte desse Maracatu, eu mesmo quando saio com essas Calunga, as duas bonecas era Flora e Florita, foi pro peji passou três dias”.

As obrigações “assentadas” no Peji correspondem a um legado muito comum em várias culturas e buscam agradar aos deuses para que afastem todo o mal e para a realização de objetivos particulares ou coletivos. São feitas geralmente no terreiro, nas encruzilhadas e matas. Para os dois últimos ambientes são feitos, principalmente, os trabalhos de “despacho”.

Sobre a dádiva, ato de trocar e receber entre os homens e os deuses Marcel Mauss (2001) esclarece:

“As dádivas aos homens e aos deuses tem também por finalidade comprar a paz com uns e outros. Afastam-se assim os maus espíritos, mais geralmente as más influências, mesmo as não personalizadas: por que uma maldição de homem permite aos espíritos ciumentos penetrar em vós, matar-vos, permite a ação das más influências, e as faltas contra os homens tornam o culpado fraco em relação aos espíritos e às coisas sinistras” (MAUSS, 2001, p. 75).

Segundo este último autor, nas sociedades, sejam elas “primitivas” ou contemporâneas, dar, receber e retribuir são obrigações recíprocas em que o recebido deve ser em semelhança retribuído, e os presentes retribuídos devem ser semelhantes aos recebidos. A teoria da reciprocidade explica que as trocas muitas vezes ocorrem não apenas entre os sujeitos, mas também entre coletividades que permutam bens, serviços, banquetes, gentilezas, ritos e palavras, e, por isso, constituem assim, sistemas de prestação.

Sobre o “banquete” ofertado aos mestres e demais divindades das religiões afro- brasileiras, assinala Fonseca (1997, p. 197):

No terreiro, os diversos pratos que compõem a mesa sagrada têm por finalidade agradar os deuses, dentro dos rigores do culto. Assim sendo, os gostos, as preferências e os diversos modos de preparar os banquetes sagrados aumentam os laços entre a comunidade e seus deuses, e este agrado às divindades certamente se reverterá em benefícios para comunidade.

As oferendas contribuem para o fortalecimento dos laços sócio-religiosos e éticos que os unem reforçando os elos mágicos entre os adeptos e os deuses. A culinária afro-brasileira amplia as concepções mitológicas, sendo reinterpretadas subjetiva e regionalmente, segundo Lody (1979). Desse modo, segundo esta última fonte, pode-se entender a religiosidade praticada por parte dos participantes do Maracatu rural, não como se tratando de uma modalidade religiosa padronizada, constituída por dogmas comuns a uns e outros terreiros, e sim de um verdadeiro mosaico caleidoscópio formado por bricolagens em constantes reinterpretações e (des)continuidades.

A diferença com outras formas de religião reside, sobretudo, em não se tratar de uma religião “ética” (no sentido weberiano do termo), ou seja, é uma religião que preza pela espontaneidade e liberação comportamental, ao contrário das religiões que preconizam a “boa conduta” segundo seus preceitos. Neste exemplo pode-se colocar a espiritualidade dos Maracatus em oposição ao pentecostalismo, ao catolicismo conservador, etc. Já as diferenças encontradas com outras religiões também de Matriz africana observa-se a suposta “falta de pureza” do culto, que navega no mar confluente de elementos simbólicos que tramitam ao sabor dos interesses de cada grupo ou mesmo de cada indivíduo. É uma modalidade de religiosidade54 cada vez mais aberta aos processos sincréticos, à valorização da subjetividade e às interações de sociabilidade55.

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