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5. Análise de “O Inconsciente” (Freud, 1915/2010)

5.2. Análises

5.2.6. Das hipóteses às verdades: o lugar da clínica

Há uma particularidade nessa produção de conhecimento. Freud levanta hipóteses e produz conceitos, num âmbito estritamente teórico, e no mesmo ato observa e descreve casos clínicos e patologias. Coexistem em seu texto os conceitos de libido, de instinto, de repressão, de censura, de inconsciente e os sintomas, os sonhos, a linguagem, a fobia, a conversão, as obsessões. E quando se trata de apresentá-los pensados sob a luz de sua teoria, Freud utiliza termos como “descrição metapsicológica” e “observação”.

Vamos fazer uma acanhada tentativa de descrição metapsicológica do processo de repressão. (Freud, 1915/2010, p. 121)

Na histeria de angústia, uma primeira fase do processo de frequentemente não é notada, [...] mas a observação cuidadosa permite reconhecê-la. (Freud, 1915/2010, p. 11)

Os termos dão a pista sobre os procedimentos de produção de conhecimento em Freud, estes seriam uma espécie de observação teorizada, ou uma teoria observada. De qualquer forma, Freud estabelece uma cumplicidade entre hipótese e observação, ele aproxima os objetos de dois âmbitos discursivos distintos, o da teoria, que tem por objeto a reflexão conceitual e abstrata de um fenômeno, e o da “realidade”, que tem por objeto a observação/percepção do próprio fenômeno. Assim, apresenta um inconsciente ou uma repressão descritíveis por meio de uma observação. O “medo de um animal”, na histeria de angústia, seria a forma assumida pelo investimento deslocado de sua representação original, por ocasião da repressão. A paralisia muscular, na histeria de conversão (também por ocasião da repressão), seria o investimento de libido em uma inervação corporal depois dele ter sido

23 Na parte destinada à discussão final neste trabalho, voltaremos a esse ponto, no intuito de retomar o título e

separado de seu representante e ter sido deslocado para o corpo. O procedimento da observação ocupa assim um lugar central em seu texto, é dele que derivam suas hipóteses. E são estas que, discutidas, compõem o escopo do conhecimento psicanalítico.

A clínica vem compor esse procedimento de observação, ela é a ocasião de seu acontecimento. A essas observações clínicas, ou junto delas, seguem análises que apontam para o funcionamento do psiquismo em termos teóricos: “Somente a análise de uma das afecções que chamamos de psiconeuroses narcísicas pode nos trazer concepções que nos aproximem do enigmático Ics ou o tornem tangível, por assim dizer” (Freud, 1915/2010, p. 138).

Em Freud, a clínica é o campo onde a teoria se cria, mas também é o campo onde ela se legitima. Ela cumpre, portanto duas funções, a de instigar a teoria e a de confirmá-la. Lê-se em seu texto que desde um trabalho de Abraham, de 1908, se procura classificar a esquizofrenia como uma oposição entre Eu e objeto, segundo a hipótese de que nela a libido retirada do objeto não recuaria para outro objeto, na fantasia, mas seria investida no próprio Eu. A confirmação dessa hipótese é dada por ela ser condizente com certos comportamentos, sintomas e traços clínicos da esquizofrenia: a inacessibilidade à terapia, a rejeição do mundo externo, sinais de sobreinvestimento do próprio Eu, apatia e a inacessibilidade à transferência. Há uma espécie de sobreposição de registros na produção de conhecimento em Freud, o clínico e o teórico. Diz ainda: “Quanto à relação entre os dois sistemas psíquicos, todos os observadores notaram que na esquizofrenia se exprime conscientemente muita coisa que nas neuroses de transferência só podemos demonstrar que existem no Ics, mediante a psicanálise” (itálico nosso, Freud, 1915/2010, p. 140).

É como se a esquizofrenia fosse a patologia na qual o inconsciente está, por assim dizer, escancarado, à flor da pele, ou melhor, da consciência. Por isso, o estudo dessa patologia poderia familiarizar-nos com o “enigmático inconsciente”.

Segundo Freud, nos estágios iniciais da doença, os pacientes apresentariam mudanças na linguagem:

frequentemente o modo de expressão é objeto de um cuidado especial, torna-se ‘rebuscado’, afetado’. As frases são formadas com uma peculiar ausência de organização que as torna ininteligíveis para nós de maneira que consideramos absurdas as manifestações dos doentes. Com frequência, uma relação com órgãos do corpo ou inervações assume o primeiro plano. (Freud, 1915/2010, p. 140)

Acrescenta um exemplo: uma paciente apresentaria a fala de que “seus olhos estariam virados, não estariam direitos”, e ela mesma teria explicado que seu namorado não a

compreende, ele é um hipócrita, um virador de olhos, ele virou os olhos dela, agora ela não tem mais os olhos direitos. Freud reconhece, na fala da paciente, o sentido dela, em princípio incompreensível. Esse sentido está na história de vida dela, no entanto, é por meio de uma junção de procedimentos que ele é erigido como tal. Junção de uma observação que atenta para uma fala estranha, curiosa, sem sentido, de uma hipótese teórica sobre o processo de repressão, de outra hipótese sobre o inconsciente, junção ainda de observações clínicas dos traços e sintomas da doença. “As declarações da doente sobre sua frase ininteligível têm o valor de uma análise, pois contêm o equivalente da frase em linguagem compreendida por todos” (Freud, 1915/2010, p. 141).

Ao passo que esclarece a fala enigmática, “os olhos estão virados”, esclarece igualmente, para o leitor, o que é uma análise. E é o inconsciente que vem assumir o lugar do sentido na análise, quando se trata da clínica. É ele que, como hipótese, resgata na loucura a sanidade perdida; é ele que vem dar lugar e sentido ao medo irracional da fobia, à paralisia de causas não orgânicas da histeria, aos rituais repetidos e intermináveis da neurose obsessiva. Na história reprimida, Freud posiciona a gênese dessas patologias e a possibilidade de cura pela reapresentação e elaboração do reprimido. Para que essa formulação chegasse a tais termos, no entanto, uma série de procedimentos se juntou e se reforçou (observação, estranhamento, teoria e “cura”).

O capítulo final sela o texto com a análise de uma patologia, ou seja, com uma análise clínica. Freud apresenta o que já se sabe sobre essa patologia, a oposição entre Eu e objeto, acrescenta algumas observações referentes à linguagem e, por fim, analisando a linguagem formula conclusões sobre a patologia. A clínica aparece (re)afirmando as hipóteses sobre o inconsciente, também aparece acrescentando ideias à hipótese inicial, e até refutando outras. O que permanece, afirmando ou refutando, é a legitimação de uma teoria, de uma metapsicologia, de um conhecimento “profundo” sobre o psiquismo. Legitima-se não propriamente o inconsciente, tal e qual, mas, um lugar de fala, de uma fala teórica, um lugar do qual se fala. Fala-se da cadeira de analista, fala-se do lugar de clínico, do lugar de psicanalista, de um lugar que se constitui enquanto produz suas verdades, seus saberes. Por fim, o que se legitima é esse lugar de uma fala ao mesmo tempo clínica e teórica.

O movimento de “pôr-se em outra posição”, observa Tausk, é um modo de representar o termo

verstellen [pôr no lugar errado] e a identificação com o namorado.

[...] Na esquizofrenia, as palavras são submetidas ao mesmo processo que forma as imagens oníricas a partir dos pensamentos oníricos latentes, que chamamos de processo psíquico primário. (Freud, 1915/2010, p. 142-143)

Na histeria de angústia, uma primeira fase do processo [...] consiste no surgimento da angústia sem que se perceba o que a desperta. É de supor que no Ics havia um impulso de amor que demandava transposição para o sistema Pcs; mas o investimento a ele dirigido, vindo desse sistema, recolheu-se como numa tentativa de fuga, e o investimento libidinal da ideia inconsciente foi descarregado como angústia. (Freud, 1915/2010, p. 121)

De que forma podemos chegar ao conhecimento do inconsciente? É claro que o conhecemos apenas enquanto consciente, depois que experimentou uma transposição ou tradução em algo consciente. Diariamente o trabalho psicanalítico nos traz a experiência de que é possível uma tal tradução. (Freud, 1915/2010, p. 100-101)

Se nos perguntamos o que empresta à formação substitutiva e ao sintoma esquizofrênico esse caráter estranho, compreenderemos enfim que é a predominância da referência à palavra sobre a referência à coisa. [...]

Vamos relacionar essa percepção à hipótese de que na esquizofrenia os investimentos de objeto são abandonados. (Freud, 1915/2010, p. 145)

Na clínica, a teoria torna-se o conhecimento da psicanálise, por meio da suposição feita a respeito do dado clínico.