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DAS (IM) POSSIBILIDADES DE UM DISPOSITIVO DE ANÁLISE

POR UM DISPOSITIVO GENEALÓGICO

2.2. DAS (IM) POSSIBILIDADES DE UM DISPOSITIVO DE ANÁLISE

Ao analisar, diria Orlandi, “trata-se da teoria, no sentido de que não há análise de discurso sem a mediação teórica permanente” (ORLANDI, 2005, p. 62). Tomando esse fato como premissa de funcionamento de análise, ver-se-á que, o acontecimento de análise, será determinado pela singularidade de confluência teórica, instaurada pelo analista. Vê-se então que a análise, no campo da AD, tem um caráter de unicidade e o fazer do analista comporta e suporta26 – assim como o seu objeto de análise – as movências e deslocamentos do dizer.

Desse modo, vemos a impossibilidade de se apregoar a um sentido a denotação de verdadeiro. O sentido será, pois, uma construção do analista frente ao objeto de estudo. Não se procurará só vislumbrar as relações sintagmáticas, porque cremos que essas relações são a ponta para o fio da história. Daremos singular relevância para possíveis relações verticais, na medida em que, assim, poderemos vislumbrar o não- dito. Queremos ver aquilo que é silenciado, (de) negado, apagado, esquecido, queremos ver o sentido em sua materialidade histórica.

Vemos que o procedimento de análise, numa complexidade acontecimental, se dá pela e na teoria. Por conseguinte, vemos a possibilidade de se pensar em um dispositivo de análise. Um dispositivo que terá como funcionamento balizar, por um não-dito, aquilo que é dito; tomar o dizer, levando em consideração aquilo que fora dito em outro lugar; tomar o dizer na singularidade de sua volta e na sua possibilidade de se tornar outro. Ou seja, o ato de análise deve propiciar um dispositivo a partir do qual se possa vislumbrar a historicidade que é constituinte, constituída e constitutiva do dizer.

É relevante destacar que, conforme já mencionamos, um dispositivo revela as subjetividades do sujeito-analista, mostrando assim suas interpelações, identificações, desindentificações, etc. Não nos esqueçamos de que “não há descrição sem interpretação, então o próprio analista está envolvido na interpretação” (ORLANDI, 2005, p. 61), desse modo, o sentido, no campo da AD, será sempre construções de sujeitos-analistas a partir de uma materialidade linguística/discursiva, sendo, por conseguinte, passível de se tornar outro. É na relação dialética entre “sujeito-sentidos

que emergem as manifestações discursivas e suas circunscrições socioideológicas” (SANTOS, 2004).

Desse modo, “é necessário introduzir-se um dispositivo teórico que possa intervir na relação do analista com os objetos simbólicos que analisa, produzindo um deslocamento em sua relação de sujeitos com a interpretação” (ORLANDI, 2005, p. 61). O dispositivo é responsável por atribuir um caráter de cientificidade à análise, escamoteado a subjetividade – que, a contragosto da ciência positivista, pulsa, exalando um odor autoral no fazer – do analista.

Ao pensar um dispositivo de análise, é relevante, também, pensar na questão do corpus e do recorte, uma vez que “decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas” (ORLANDI, 2005, p. 63). A análise e o corpus estão em uma intimidade de relação e, apesar de poderem ser caracterizadas separadamente, uma influencia diretamente no outro e vice-versa. Uma vez que pensar num corpus é pensar em um recorte, recorte esse que não é aleatório, pelo contrário, segue regras de recorrência e dispersão. Recortar o corpus já é, pois, uma primeira análise, e o que fica de fora da análise também significa, tudo o que está além ou aquém do recorde incidi sobre a análise na forma de um não-escolhido constitutivo ao corpus.

Contudo, se o sentido é movediço e sempre passível de se tornar outro, não seria contraditório em se pensar em um dispositivo? De nossa parte, acreditamos que não. Para embasar essa linha de pensamento, gostaríamos de citar Foucault (apud ARAUJO, 2001, p. 60) em um de seus comentários concernentes ao enunciado:

entre todos aqueles [os enunciados] que os homens produzem, manipulam, utilizam, transformam, trocam, decompõem e recompõem, eventualmente destroem. Ao invés de uma coisa dita de um vez por todas – e perdida no passado como a decisão de uma batalha, uma catástrofe geológica ou a morte de um rei – o enunciado, ao mesmo tempo que surge em sua materialidade, aparece com um estatuto, entra em tramas, coloca-se no campo de utilização, oferece-se a transferências e a modificações possíveis, integra-se em operações e estratégias em que sua identidade se mantém ou se apaga. Assim o enunciado circula, serve, desnuda-se, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou rivalidade. (Foucault, apud Araujo, 2001, p. 60)

Como Foucault nos chama a atenção, o enunciado está inscrito em uma formação discursiva27 que determina o retorno do enunciado. O enunciado, por estar intimamente ligado à formação discursiva, possui a dispersão como aspecto fundante, ou seja, é pela dispersão que marca a sua possibilidade de retorno, assim como os seus rearranjos. Um enunciado, portanto, presentifica-se no acaso da enunciação de outros enunciados. Entretanto, o enunciado, ao retornar na e pela enunciação, se insere em tramas, “coloca-se no campo de utilização, oferece-se a transferências e a modificações possíveis, integra-se em operações e estratégias em que sua identidade se mantém ou se apaga” (FOUCAULT, apud ARAUJO, 2001, p. 60), ou seja, a enunciação faz o enunciado entrar em uma rede de regularidades. E são justamente essas regularidades que permitem, ao analista, proceder às análises. É por haver uma dada regularidade perceptível na materialidade do corpus que podemos propor um dispositivo de análise.

Sabemos que se pensar um dispositivo no campo da AD francesa se torna uma tarefa arriscada e complexa, na medida em que ele não pode adquirir status de categorias de análise, uma vez que há a impossibilidade de uma análise essencialmente estruturalista-descritivista. Um dispositivo, na verdade, deve partir da regularidade com vistas, sobretudo, à dispersão. Pois é nos lançando à dispersão que podemos vislumbrar e tocar o não dito, o não enunciável, o jamais dito, desse modo, ao nos lançar à dispersão, entramos no campo do enunciável.

Desse modo, um dispositivo não é aplicável a todos os corpora, mas somente àqueles que possuírem uma natureza de dispersão semelhante e/ou similar. Semelhantes por se configurarem um o espelho do outro. Teremos, pois, um acontecimento enunciativo que transpassa um outro, desta feita, configurando uma imagem rarefeita do acontecimento antecedente. Podemos citar como exemplo o caso do acontecimento bíblico e sua re-significação por Zaratustra de Nietzsche, em que, no primeiro, ter-se-á a imagem da divindade, pregando a moral de um céu prometido aos resignados, enquanto

27 Foucault (2004, p.43) faz o seguinte comentário sobre formação discursiva:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. Chamaremos de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidades de enunciação, conceitos, escolhas temáticas).

que Zaratustra será o seu inverso, subvertendo os dizeres bíblicos e pregando uma moral da vida e do hoje. Nessa similaridade, notar-se-á que haverá coincidências nas características de constituição, como notamos em Os contos da Cantuária, de Chaucer (1988), e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, em que ambos são constituídos e constituintes de uma crítica social voraz, instaurando deslocamentos similares no caso, por exemplo, da (re)significação da moral religiosa.

Em resumo, vimos que será a materialidade do corpus e do recorte que possibilitará pensar em um dispositivo. Que esse dispositivo será uma inter-mediação entre o sujeito-analista, a teoria, o corpus e a análise. O dispositivo é de uma natureza interpretativista, não podendo ser tomado como categorias, regras de entrada na materialidade linguística. O dispositivo, no campo da AD, deve ser capaz de suportar a dialética da unidade e da dispersão no acontecimento enunciativo/discursivo. É relevante dizer que um dispositivo também é afetado pela história, sendo passível de movências e deslocamentos. Desse modo, pode-se dizer que uma pessoa nunca empregará um dispositivo de forma igual à outra. E até o mesmo pesquisador se quiser reaplicar o dispositivo, ele não verá as mesmas coisas, dado que as condições de produção da análise serão outras.

Contudo, há a (im) possibilidade de se pensar um dispositivo com o objetivo de analisar o poder na esfera do discurso?