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CAPÍTULO 2 O DISCURSO DE ÓDIO E SEUS DESDOBRAMENTOS

3.2. DAS TEORIAS: PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Esta tese edifica-se em zona fronteiriça, porque é tecida por fios interdisciplinares, por dizeres de diferentes teorias, por vozes outras que colaboram, cada uma em sua especificidade, com o objeto de análise contemplado neste texto. Investigação de base dialógica, esta tese busca complemento em teorias das humanidades, sob a forma de diálogo benevolente, de cooperação – como diz Bakhtin ([1970-71] 2011, p. 372). Com suas demarcações claras, as áreas são postas em relação a fim de se contemplar as charges em análise. Tudo para deixar ver os discursos visuais e verbo-visuais reverberando seus aspectos culturais, históricos e dialógicos. Para tanto, as charges sempre são apresentadas meio a seu contexto social, recuperando fatos históricos via discursos que circularam na mídia, de modo geral. Isso porque os fenômenos são explicados a partir de uma época, o pesquisador julga desde uma teoria (ou várias), e a partir dela(s) pode ver possibilidades de realização, justamente porque está ancorando-se nos elementos repetíveis e irrepetíveis (BAKHTIN, ([1970-71] 2011, p. 375).

Essa recuperação contextual é importante porque, no entendimento das bases fundamentais desta tese, compreender um discurso implica o estabelecimento de seus limites: quem é o autor; qual o contexto de produção; com quais discursos está em diálogo. Tudo porque, segundo Bakhtin ([1960] 2011), o problema da compreensão de um discurso circunscreve seus limites precisos e essenciais, tais como a alternância dos sujeitos, a capacidade de definição de respostas, a eleição dos estilos e a observação do que eles promovem – desde um ponto de vista linguístico-discursivo-social, haja vista que esse tripé marca a inter-relação semântica provedora de sentidos em uma esfera específica, frente a um autor definido, real e único.

Essas questões se produzem em mim suscitadas pela teoria dialógica do discurso, uma base que me permite entender os discursos escolhidos a partir de sua relação social, no interior de uma cultura específica, frente a fatos pontuais e a certos interlocutores e não outros. Como explica Brait (2012, p. 11-12), na apresentação do livro de Medviédev ([1928] 2012), O método formal nos estudos literários, o conhecimento produzido em diálogo intelectual por esses “[...] cientistas/literatos, filólogos, filósofos/professores/artistas” tem como marca o oferecimento de “[...] elementos, em confluência interdisciplinar, para a reflexão sui generis sobre a linguagem em uso, artístico ou cotidiano, sobre as relações constitutivas entre linguagem, sujeitos, sociedades, culturas”.

Dentre as possibilidades de referenciais teóricos para contemplar a linguagem em uso, justamente a teoria dialógica do discurso chama-me à análise porque viabiliza entender a linguagem em relação dialético-dialógica com elementos internos e externos à linguística. Dialética porque permite olhar a unidade e a multiplicidade, a singularidade e o genérico, o individual e o coletivo, a parte e o todo, perseguindo a tensão existente nesses contrastes. Dialógica porque obsidia os já-ditos e as projeções na cadeia de discursos sociais a fim de encontrar os sentidos oriundos das relações eu- outro.

Essa possibilidade teórico-metodológica oferecida pelos pressupostos do Círculo abre precedentes para relações de diálogo entre áreas das humanidades. O que me parece muito oportuno em razão de que a atmosfera de questionamentos motivados pela relação charge e discurso intolerante semelha-se nebulosa quando percebo que, para dar seguimento a seus desdobramentos, faz-se necessário um aporte que contemple um olhar linguístico, via teorias do discurso – minha área de formação e atuação –; filosófico, porque o recorte escolhido suscita uma abordagem ontológica, que entenda o

sujeito (do discurso) no escopo de suas questões existenciais; e desde o ponto de vista do direito, de base hermenêutica – portanto filosófico –, a fim de entender os pressupostos legais que versam sobre os limites entre liberdade de expressão e discurso intolerante. Questionando se esses limites estão tipificados, recorro ao direito para entender como foram construídas socialmente as noções do que é liberdade de expressão e discurso de ódio.

Procurando localizar a discussão liberdade de expressão versus discurso intolerante nas bases da filosofia e do direito, o método é a revisão bibliográfica. A partir dessas duas palavras-chave foram campeados autores que abordem o tema, especificamente dentro da perspectiva do direito de base hermenêutica, justamente o ramo do direito que dialoga com a filosofia, por entender que todo julgamento que se incide sobre algo deve conter elementos textuais e extratextuais a fim de que seja possível formar uma compreensão. O método hermenêutico no direito aporta para a área uma visão mais humanística, associada aos fenômenos sociais, contrária ao entendimento do direito como área autônoma e independente de outras ciências – visão essa que não é consonante com o aporte linguístico-sociológico-filosófico desta tese.

Segundo Streck (2010; 2015), aproximar o direito da hermenêutica é uma alternativa ao problema da interpretação subjetiva oriunda de um aporte positivista, em que quem julga baliza seu julgamento no reflexo de suas vontades, agindo, como ele mesmo diz em distintas oportunidades, em uma espécie de “decido conforme minha consciência”. Isso constitui um fazer que chama de solipsismo judiciário, isto é, o eu e suas emoções são suficientes para julgar.

De acordo com Streck (2010; 2015), é necessário pensar no impacto de entender a interpretação como expressão da vontade, bem como os problemas de conceituar o direito como autônomo, sem um aporte filosófico ou sociológico que viabilize o entendimento de casos concretos. Assim, suas explicitações são contrárias ao direito de matriz positivista, kelsiseniana, que construiu um sistema autônomo e fechado em si mesmo. Com a hermenêutica, “[...] não há mais espaço para qualquer tipo de raciocínios que levam à discricionariedade judicial, justamente pelo fato de ter superado o problema filosófico que aí se instaura, o solipsismo” (STRECK, 2015. p. 109-110).

Com base hermenêutica, a positivação do direito e a preocupação em fundar uma teoria da interpretação surgem para tentar acompanhar a dinâmica social. Trata-se, pois, de uma tentativa porque o social é um movimento vivo, portanto, oscilante, cuja flutuação a positivação do direito não é capaz de acompanhar ou prever – a menos que o

tempo inteiro fossem criadas leis, ementas e formas de inserir novos valores aos dispositivos já criados para a organização social. Assim sendo, é importante saber que a lógica do direito não é a mesma lógica social, ele está sempre aquém, ele é sempre capaz de cobrir uma parte, uma pequena parcela da realidade social que a cada vez percebe. Em todo o caso, o direito de base hermenêutica oferece um panorama do que é entendido socialmente: quais valorações são mais recorrentes; quais foram os acordos valorativos para a análise de casos concretos e assim por diante.

A base hermenêutica no direito relaciona o momento em que uma norma, por exemplo, foi criada, qual o princípio dessa criação e como pode ser transposta aos tempos em que a ela se recorre para algo decidir. No direito, a hermenêutica é um conjunto de métodos para a interpretação de algo que se está julgando. Há modelos cuja regência é a letra da lei, isto é, uma interpretação baseada nas construções gramaticais. Sampaio (2003) explica que a ordem das palavras e suas relações gramaticais são relevantes para a construção dos sentidos, por exemplo. Esse procedimento é entendido como o início de um conjunto de métodos que podem ser aplicados: holístico, histórico, social, teleológico.

Se o direito de base hermenêutica é chamado nesta tese é para que seja possível a compreensão do que pode ou não ser liberdade de expressão e o que caracteriza judicialmente um discurso intolerante ou de ódio. A filosofia e a sociologia são evocadas para averiguar 1) o que é o ódio? Quais seus desdobramentos? Como ele se edifica e o que significa em termos sociais? Essas noções sociológicas e filosóficas são solicitadas para entender o sujeito enquanto partícipe de uma comunidade. O método de revisão bibliográfica também é oportuno para averiguar os autores-mestres e como se encontra o estado da arte no caso do assunto que se busca.

Assim sendo, para o aprofundamento das análises, visa-se a uma proposta de diálogo entre áreas das humanidades, no que concerne à busca de noções que auxiliem no esclarecimento de temas como intolerância e liberdade de expressão, que certamente perpassam a arquitetônica de charges que veiculam discursos com contornos intolerantes – e conversam com a noção bakhtiniana responsividade. Buscam-se, nesses parâmetros, disciplinas que discorram sobre o discurso de ódio travestido de opinião; autores que pesquisem sobre a linha tênue entre liberdade de expressão e a promoção de discursos de intolerância; o que diz a Constituição brasileira sobre direitos de expressão e quais seus limites, se é que eles estão estabelecidos. Nesses termos, recorre-se ao direito, à filosofia, à sociologia para integrar as análises das charges selecionadas. É

oportuno pontuar que se parte da teoria dialógica – porque ela é a espinha dorsal deste trabalho – e se convidam as referidas áreas ao diálogo de modo a ganhar profundidade nas análises.

A figura 7 apresenta o referencial teórico colocado em diálogo. Nela a teoria base do trabalho parece centralizada e com a coloração preenchida, para representar o núcleo duro, que funciona como pilar da tese.

Figura 7: Diálogo teórico proposto

Fonte: a autora

Na sequência, para complementar a visualização do diálogo teórico, apresenta-se um quadro no qual se pode ver um resumo dos aspectos teórico-metodológicos propostos na tese. Nele se lê o quadro de referência, uma descrição sumária do que se entende pelo paradigma escolhido, indica-se o conceito usado e menciona-se o autor- referência.

Quadro de referência (paradigmas)

Descrição sumária Conceitos Autores de referência

Discurso

Perspectiva que

oportuniza observar os fenômenos da linguagem (verbais e não verbais) desde um ponto de vista social.

Discurso Círculo de Bakhtin Autor Círculo de Bakhtin Signo ideológico Círculo de Bakhtin

Responsividade Círculo de Bakhtin Exotopia e empatia Círculo de Bakhtin Valoração Círculo de Bakhtin Arquitetônica Círculo de Bakhtin

Gêneros do discurso

Círculo de Bakhtin

Identidade social Charaudeau Identidade discursiva Charaudeau Discurso intimidatório López-Muñoz e Capponi

Filosofia Perspectiva que

oportuniza o

entendimento de questões gerais relativas à natureza humana.

Ódio Mira y López

Viana Intolerância Droit Mira y López Souza Direito de base hermenêutica Perspectiva que oportuniza o entendimento de questões jurídicas, com o apoio de um olhar multidisciplinar na aplicação do caso concreto. Liberdade de expressão Constituição brasileira de 1988

Crime de ódio Constituição brasileira de 1988 Código Penal

Fonte: a autora

A separação das áreas deu-se metodologicamente em termos didáticos. Assim, na organização da tese, o capítulo um foi destinado à teoria dialógica do discurso. O capítulo dois apresentou o discurso de ódio e seus desdobramentos. É, portanto, nesse capítulo que aparecem em diálogo: o direito de base hermenêutica, a filosofia e a sociologia. Tudo para se entender o que constitui um discurso de ódio e o que é intolerância, tanto em termos sociais quanto jurídicos. As teorias se cruzam propriamente no capítulo quatro, quando as análises são arroladas.

Nas palavras de Bakhtin ([1960] 2011, 319), “[...] o texto é o dado (realidade) primário e o ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências humanas”. Nesses

termos, o gênero discursivo charge é a materialidade que se analisa nesta tese, é o dado sobre o qual se incide a interface teórica proposta. Sob o mosaico de referências aqui desenhado, a “[...] investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo”. Interroga-se a si mesmo para organizar a observação e a experiência de obter respostas, de ver as potencialidades, as possibilidades daquilo que se está investigando. Bakhtin ([1970-71] 2011) explica que sob essa perspectiva se está interessado nas formas concretas do texto, o que de fato marca a vida dessa materialidade: sua inter-relação e interação.

No desenvolvimento da análise, são utilizadas noções bakhtinianas, como gênero do discurso, enunciado, palavra, valoração e vozes sociais, que respaldam a apreciação sobre os discursos selecionados. É oportuno mencionar também que servem de base para edificar a análise as orientações metodológicas apresentadas em Marxismo e filosofia da linguagem ([1929] 2017, p. 110), a saber: (a) não separar a ideologia da realidade material do signo; (b) não dissociar o signo das formas concretas de comunicação; (c) não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infraestrutura). Assim, o discurso é considerado a partir do vínculo com seu contexto sócio-histórico, o que remete à necessidade de as análises serem desenvolvidas a partir dos limites de determinada cultura, de modo a compreender as questões discursivas engendradas às esferas sociais de onde emergem.

Nessa perspectiva, no desenvolvimento da análise, os discursos são considerados a partir da situação de produção e do horizonte social em que se inscrevem. Para tanto, apresentam-se os discursos que deram origem a cada uma das charges, visando não só a analisar o funcionamento da produção de sentidos, mas também a levantar possibilidades de compreensão do conflito de vozes que delineiam intolerância ou ódio. Ao final das análises, faz-se um comentário geral acerca dos discursos apresentados. Isso porque, nas palavras de Bakhtin ([1920-24] 2012, p. 58),

Todas as tentativas de alcançar a existência-evento real a partir do interior do mundo teórico são sem esperança; não é possível do interior da cognição em si abrir um caminho no mundo conhecido teoricamente para alcançar o mundo real em sua singularidade e irrepetibilidade. Mas, partindo da ação-ato e não de sua transcrição teórica, há uma abertura voltada para seu conteúdo-sentido, que é inteiramente admitido e incluído desde o interior de tal ato, já que o ato se desenvolve realmente no existir. O mundo como conteúdo do pensamento científico é um mundo particular, autônomo, mas não separado, e sim integrado no evento singular e único do existir através de uma consciência responsável em um ato-ação real.

Apresentados a contextualização e os procedimentos metodológicos, no capítulo seguinte, são realizadas as análises do material selecionado, a partir dos pressupostos que fundamentam esta tese.

CAPÍTULO 4 - CHARGES COM CONTORNOS INTOLERANTES:

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