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4.1 LÉXICO REGIONAL E MÚSICA DE FRONTEIRA

4.1.3 Das volteadas de uma estância

A canção Das volteadas de uma estância aborda a vida e as atividades campeiras rotineiras da fronteira, fazendo alusão ao local onde o peão21 geralmente mora e trabalha, como pode ser contemplado na letra (Fig. 9):

21 Segundo o Dicionário Gaúcho Brasileiro, peão é “trabalhador assalariado que, nas estâncias, executa diversos

FIGURA 9: Letra de Das volteadas de uma estância Das volteadas de uma estância

Ainda nem rompeu a aurora Nos confins do firmamento E já se vê o movimento Da indiada arrastando espora Então parece que as horas Passam mais desapercebidas E as ansiedades da vida Pedem boca de algum jeito Quando um piazito abre o peito Na volta da recolhida

É onde se agarra um quebra Que tenha sangue nos olhos Pois um covarde se achica Quando um malo se embodoca Aos gritos de vir à frente A cavalhada entra em forma E o índio que sabe as normas Não refuga o que lhe toca Um par de roseta grande Um sombreiro requintado Um tirador de vaqueta E uma gana por semblante Morrer, mas morrer peleando Jamais frouxá o garrão Com a pampa no coração E as inquietudes por diante Refrão

Nas recorridas de campo Até mesmo num aparte Balanceando nos fiadores Ou amadrinhando um potro Porque o flerte é o companheiro Parceiro dia após dia

Sempre que o galo anuncia Que veio no rastro do outro

Assim desponta no passo A novilhada dos fundo Pedindo boca pro mundo O ponteiro ganha espaço Se agranda num "cavallaço" No rodeio bate guampa Na culatra outra estampa Estrala um relho de braça E a cuscada se adelgaça Quando atropela nas pampa As volteadas de uma estância Castigam a alma de um guapo Pois o lombo do cavalo Não é bem o que se acha Mas um taura que se anima Terceia por essas léguas Virando a boca da égua Num grito de vai ou racha Um par de roseta grande Um sombreiro requintado Um tirador de vaqueta E uma gana por semblante Morrer, mas morrer peleando Jamais frouxá o garrão Com a pampa no coração E as inquietudes por diante Refrão

Nas recorridas de campo Até mesmo num aparte Balanceando nos fiadores Ou amadrinhando um potro Porque o flerte é o companheiro Parceiro dia após dia

Sempre que o galo anuncia Que veio no rastro do outro Sempre que o galo anuncia Que veio no rastro do outro

Logo nos primeiros versos, o eu lírico traça um paralelo entre a vida na estância e os diferentes momentos de sua vida. É relatado o cotidiano do homem da fronteira (e do pampa), que acorda cedo e sai para as lidas na estância, como pode ser visto nos versos seguintes:

Ainda nem rompeu a aurora Nos confins do firmamento E já se vê o movimento Da indiada arrastando espora Então parece que as horas Passam mais desapercebidas E as ansiedades da vida Pedem boca de algum jeito

A partir dessas lidas diárias, das adversidades, da doma de animais selvagens, no contato com o cavalo e com o gado é que esse homem se constrói valente, bravo e destemido, como apresentado nos versos:

Morrer, mas morrer peleando Jamais frouxá o garrão Com a pampa no coração E as inquietudes por diante

O eu lírico revela que é capaz de “morrer peleando”, ou seja, de lutar até o fim sem desistir, que equivale a outra expressão empregada na canção, “jamais frouxá o garrão”. Ambas servem como uma forma de encorajamento, em situações de dificuldades, para manter-se persistente, insistir nas lutas diárias, jamais desistir.

Também esta canção carrega itens lexicais que marcam a interferência da LE no espaço de fronteira, vista em vocábulos como cuscada, guapo, peleando, taura e sombreiro. No Quadro 9 a seguir estão expostos os registros de guapo e taura.

Quadro 9 - Guapo, taura Itens

lexicais

HOUAISS AURÉLIO BOSSLE OLIVEIRA DRAE

Guapo 1 Que denota ousadia, coragem; ousado, valente. 2 Dotado de elegância e beleza física; bonito, airoso, elegante (do esp. Guapo –

„rufião‟).

1 Animoso, corajoso, ousado,

valente. 2 Bonito, airoso (do

esp. guapo).

Forte, vigoroso, bravo, valente, peleador, ousado, corajoso (do cast.

guapo). Corajoso, valente, ativo, intrépido, vigoroso. 1 Bien parecido. 2 Animoso, bizarro y resuelto, que desprecia los peligros y los acomete. 3 Ostentoso, galán y lucido en el modo de vestir y presentarse. Taura 1 Que ou quem é

perito em qualquer assunto. 2 Que ou aquele que

é forte, destemido,

Valentão (do esp. plat. tauro). 1Diz-se de, ou indivíduo valente,arrojado, destemido, guapo, temido, resistente, Guapo, valente, arrojado, destemido. ---

valente. 3 Que ou quem é desembaraçado, expansivo, folgazão (Provavelmente adaptado do plat. Tauro ou toro – „astuto, sabido‟). forte enérgico, valoroso. 2 Folgazão; expansivo. 3 Especialista em algum assunto (do cast. plat. Tauro). Fonte: elaborado pelo autor

Os vocábulos guapo e taura estão em dicionários de língua portuguesa com registros de origem na LE. Essas ocorrências pertencem a um mesmo campo lexical, que lembram a representação da lealdade do sujeito fronteiro para com seus ideais, que supostamente não teme e não desiste diante dos desafios e disputas.

O adjetivo guapo, que pode ser visto ainda como sinônimo de taura, pode ser visto como a representação no imaginário social do sujeito valente, que não tem medo de nada.

O verbo pelear é registrado no BOSSLE, no OLIVEIRA e no DRAE, conforme podemos ver no Quadro 10:

Quadro 10 - Pelear

Item BOSSLE OLIVEIRA DRAE

Pelear 1 Entrar numa briga corporal; brigar, lutar, batalhar, combater, pelejar;

disputar discutir, insistir, teimar.

Batalhar, lutar, combater. Variação de

pelejar.

1 Batallar (combatir o contender con armas). 3 Dicho de los animales: Luchar entre sí. 4 Dicho de las cosas, especialmente de los elementos: Combatir entre sí u oponerse unas

a otras. Fonte: elaborado pelo autor

No verso “morrer, mas morrer peleando”, o uso o verbo no gerúndio, peleando, refere- se às batalhas comuns diárias, às dificuldades que são enfrentadas em diferentes situações, no caso do eu lírico, é a lida diária no campo e no mundo selvagem deste.

O substantivo cuscada, presente na canção, também está registrado nos dicionários regionalistas (BOSSLE e OLIVEIRA). No DRAE, há o registro para cuzco. O Quadro 11 apresenta esses registros:

Quadro 11 - Cuscada

Item BOSSLE OLIVEIRA DRAE

Cuscada 1 Porção de cuscos; 2 Os cuscos. 3 Gente ordinária, inútil.

1 Porção de cuscos. 3 Gente reles, inútil, imprestável.

Fonte: elaborado pelo autor

O vocábulo cuscada pode ser visto como uma variação de cuzco, com a grafia alterada e acrescido do sufixo derivacional –ada. Cuzco também é geralmente utilizado na fronteira para nomear o cachorro e companheiro das lidas diárias, que geralmente é conhecido popularmente como vira-lata; cuscada é o conjunto (ou grupo) desses cachorros.

Por outro lado, o vocábulo sombrero (chapéu) pode ser visto como item da LE que é frequentemente utilizado nessa região. Observa-se que os dicionários de língua geral e os regionalistas incluem o verbete, mas registrando sua origem do espanhol da região do Prata.

A seguir, no Quadro 12, são apresentados os registros de malo:

Quadro 12 - Malo

Item BOSSLE OLIVEIRA DRAE

Malo Mau, rancoroso, violento, irascível, brigão, impetuoso.

(Do cast. plat. malo).

Mau, violento, irascível, colérico, impetuoso.

1. adj. Que carece de la bondad que debe tener según su naturaleza o

destino.

2. adj. Dañoso o nocivo a la salud. 3. adj. Que se opone a la razón o a la

ley.

4. adj. De mala vida y costumbres. Fonte: elaborado pelo autor

O adjetivo malo, registrado nos dicionários BOSSLE, OLIVEIRA e DRAE, ao ser citado na canção, é usado com o mesmo significado dos dicionários consultados: pessoa ruim, perversa, malvada.

Além disso, os itens piazito e cavallaço possivelmente têm também marcas gramaticais da LE. No caso de piazito, há o sufixo derivacional de diminutivo -ito que apesar de constar no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (CUNHA, 2010) é usado com maior frequência em LE. Dessa forma, levanta-se aqui, como abordado anteriormente, a hipótese da possibilidade do uso desse diminutivo pelo constante contato que os falantes brasileiros mantêm com argentinos e uruguaios nos espaços de fronteira. Ainda nesse contexto, observamos o vocábulo cavallaço como formado a partir do radical espanhol caball- 22

adicionado ao sufixo derivacional de intensidade -aço da língua portuguesa (CUNHA, 2010, p. 09).

22

Possivelmente houve a troca de caball- por cavall- pela proximidade fonética entre /b/ oclusiva bilabial vozeada e /v/ fricativa labiodental vozeada.

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