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DE BERÇO, DE MINHA RAIZ PORTUGUÊS, QUE OUTRA

No documento A condição de ilhéu (páginas 170-200)

COISA NÃO SOU…

1

GERMANO DE SOUSA

Mais do que um lugar «de onde», os Açores foram-me sempre um lugar «onde».

(Onésimo Teotónio de Almeida in 1

Minima azorica. O meu mundo é deste reino)

Quando se nasce açoriano, ou desde pequeno se foi adoptado pelos Açores e aí se cresceu e viveu até à idade adulta, açoriano se fica toda a vida, mesmo quando, no disperso mundo da diáspora, se não regressa ao centro desse mundo, à ilha, ao arquipélago, tantas vezes quanto a nossa identidade o reclama. É um sentimento de pertença a um mundo que, português embora, é vivenciado de forma diferente do restante mundo português, vivência essa que é o substrato da nossa condição de açoria- nos. Esse sentir, essa marca indelével, esse estado de alma que Nemésio cunhou como açorianidade, esse «orgulho feito de singularidade e solidão que levava Antero a chamar aos portugueses da metrópole os seus «quási patrícios» essa «espécie de embriaguez do isolamento», esse «apego à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; – e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar»2 condiciona-nos e caracteriza-nos como açorianos.

Quem, como eu nasceu na Vila do Nordeste, a «décima ilha», com a cidade distante quase 5 horas de camionete do Caetano Raposo Pereira,

Desenho: S. Miguel, Vila de Nordeste.

1 «Pastiche» homenageando o poeta e ensaísta açoriano já desaparecido, Pedro da Silveira.

Do seu poema «Capitão Francisco Augusto»: «...Capitão Francisco Augusto, meio / Do Reino de Portugal; açoriano de berço, / De sua raiz, flamengo; / comandante de navios, / que outra coisa ele não era...»

2 NEMÉSIO, V. Açorianidade. In: Açorianidade e autonomia: páginas escolhidas. Ponta

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sabe bem o que é a sensação de isolamento e solidão própria da condição de açoriano. Nem ilha em frente havia. Quando muito tínhamos atrás, a Ilha de Sta. Maria visível da Tronqueira. De resto só a companhia do mar. Esse mar que separava os amigos e famílias como a minha, espalhada por Sta. Maria, S. Miguel, Terceira e Flores e que só o Terra Alta, o Santo Amaro, os Iates do Parece e os navios da Insulana, com os seus maríti- mos vagares, uniam (agora substituídos pela rápida SATA). Esse mar que nos fazia estar «preso na Ilha e condenado à prisão perpétua dos seus encantos»3. Estivéssemos no Nordeste, no Pátio da Alfândega em Angra,

em Santa Cruz das Flores ou da Graciosa, no Topo ou em Vila Nova do Corvo, o mar era o nosso cerco mas também a matéria de que se fazem os sonhos. Esse mar que desde quatrocentos molda as gentes do nosso arquipélago e os faz homens e mulheres de antes quebrar que torcer e nos foi sempre e simultaneamente prisão e infinito…, pois, como escreveu José Enes: «no meio do mar imenso que fascina… o açoriano, na conscien- cialização do isolamento, sucumbe a uma forte melancolia, uma espécie de saudades por longes nunca vistos, e cai no devaneio.»4

É também da condição de açoriano habituar-se desde a mais tenra idade à instabilidade das suas ilhas, aos vulcões e aos frequentes abalos de terra, tentar disso fazer «normalidade» para esconder e esconjurar o medo e resistir mesmo quando são demolidores terramotos. Como aconteceu no da Horta e cinquenta anos depois no de Angra, reconstruídas na integra para que nada alterasse a memória colectiva das cidades. Essa «normali- dade» aprende-se desde o berço. A minha recordação mais antiga, isto é, a primeira imagem que guardo na memória é ver-me ao colo de minha mãe, ao lado de meu pai e meus avós, todos na rua olhando para uma casa com uma racha na parede. O chão tinha pedaços de caliça e algumas telhas no chão. Mais tarde minha mãe explicou-me que tinha sido um abalo de terra muito forte e que a casa era a dos meus avós. Tinha então dois anos e alguns meses. Claro que não ficou por aí a minha aprendizagem. Na 3.ª classe por um triz que não era apanhado pelo esboroar de uma parede da minha velha escola primária na Vila do Nordeste. Para não falar claro nos inúmeros abalos de terra, de fraca intensidade que durante os anos de meninice e adolescência nos iam habituando à ideia de que faziam parte do nosso quotidiano, da nossa vida normal e aos quais pouco queríamos

³ AGUIAR, C. Raiz comovida. 2.ª ed. Lisboa: editorial caminho, 1987.

4 ENES, J. «A açorianidade de Roberto Mesquita». In: Almeida, Onésimo Teotónio (org).

A questão da literatura açoriana – recolha de intervenções e revisitação, Angra do

ligar. Coisa que os continentais não entendiam e os faziam duvidar da nossa sanidade mental. Andava eu no 7.º ano do Liceu de Angra situado então no velho Convento de S. Francisco quando, num dia de ensaio do que seria a récita dos finalistas, a terra tremeu valentemente. Terminado o abalo continuámos a ensaiar como se nada fora. Por dentro o medo, por fora a bravata, a resistência. A assistir ao ensaio estava o chefe da secre- taria do Liceu, o Sr. Lança, lisboeta recém-chegado que aterrorizado se atirou para debaixo de uma mesa e aí ficou até bem para além do fim do tremor saindo depois a correr, mais branco do que a cal das paredes. No outro dia soubemos que pedira ao reitor para ser transferido com urgên- cia para qualquer lugar do continente. Razão: «Não era pelos abalos de terra. Acima de tudo porque não entendia os açorianos! Um perigosíssimo tremor de terra e eles ficam na mesma!! Era como se não fosse nada com eles!! São loucos!! São loucos!!»

Teve sorte o Sr. Lança. Se tem chegado uns três anos antes, fugia a nado da ilha quando em fins de Setembro de 1957 o dia se pôs escuro e uma fina fuligem começou a cair cobrindo de negro os homens e as coisas. Era o despontar do Vulcão dos Capelinhos. O que, não levantou muito pânico. Antes curiosidade. E assim poucos dias depois, em excur- são científica seguíamos, raparigas e rapazes do meu Liceu, no Iate Sto. Amaro, direitinhos ao Faial a ver ao vivo o inesquecível nascimento de um vulcão. Pânico porquê? Não é da nossa condição de açorianos o viver em vulcões mais ou menos adormecidos? Não estavam nas ilhas as fumarolas, as caldeiras e as furnas do enxofre para no-lo lembrar? A interiorização desta teluridade faz parte e é um das peças da açorianidade. Como escre- veu Nemésio:

«Estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar»5.

Porém, na construção da identidade e do sentimento de açorianidade, pesa também e muito a História. Que faz parte da nossa memória, do nosso orgulho, do nosso inconsciente colectivo, determina a nossa identi- 5 NEMÉSIO, V. Açorianidade. In: Açorianidade e autonomia: páginas escolhidas. Ponta

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dade e molda também a condição de açoriano. Não por ser mais presente porque mais curta, mas por ter sido exemplo e estímulo para a pátria original. Foi o aclamar de D. António I como Rei de Portugal e a resis- tência heróica durante cerca de dois anos e meio contra os espanhóis de Filipe II de Castela, aceite pacificamente pelos Continentais. Foi o esteio e apoio às arrancadas liberais contra o absolutista D. Miguel. Participa- ções fundamentais para o devir da história pátria mas pouco lembrados e sem o relevo devido nos actuais manuais escolares nacionais. Mas que o castelo de S. João Baptista, com as suas seteiras viradas contra a cidade, o obelisco da Memória e os títulos que foram outorgados a Angra e à Praia: Mui Nobre Leal e Sempre Constante Cidade de Angra do Heroísmo e Mui Notável Cidade da Praia da Vitória, não deixam os açorianos esque- cer. Como não esquecem a resposta de Cipião de Figueiredo a Filipe II «… As couzas que padecem os moradores desse afligido reyno, bastarão para vos desenganar que os que estão fora desse pezado jugo, quererião antes morrer livres, que em paz sujeitos» agora divisa da nossa Região. Porém, quando andava na escola primária na Vila do Nordeste e no Liceu em Angra nada constava nos manuais escolares, escritos e impressos no Continente, sobre a História das Ilhas ou sobre a Geografia dos Aço- res. Sabíamos de cor os cognomes de todos Reis portugueses (excepto D. António I de Portugal que ficava esquecido) e debitávamos de rajada o nome de todos os rios do continente, respectivos afluentes e efluentes, mas exceptuando os Nordestenses, ninguém saberia, por exemplo, onde raio ficava a Ribeira do Guilherme tal como, exceptuando os corvinos ninguém sonhava sequer com a existência da Ribeira da Lapa. Claro que nem uma nem outra tinham importância, mas que importância tinham para nós o Rio Caima ou o Rio Sul, afluentes do Vouga?! Acresce que, ao contrário, os portugueses do Continente nada sabiam sobre os Açores. Pouco tempo depois de ter chegado a Coimbra, um colega ao saber que eu era açoriano logo me perguntou se eu conhecia Fulano de Tal que morava no Funchal... Respondi-lhe que não. Que vivia do outro lado da ponte que unia o Funchal a Ponta Delgada... e o pior foi que ele nem deu pela ironia.

Não fossem alguns professores açorianos que extraprograma nos falavam sobre alguns aspectos mais fundamentais da História dos Açores (ouvir a descrição da batalha da Salga, contada ao pormenor e exuberân- cia pelo Dr. Corte-Real era melhor que ir às «fitas» na Recreio dos Artistas) e muitos de nós nunca saberíamos quem fora Cipião de Figueiredo. Não fossem esses professores e não fosse, no meu caso, a Pátria Açoreana e o Breviário Açoreano. Da autoria, entre muitas outras obras, do tercei-

rense Gervásio Lima que fora o Director da Biblioteca Municipal de Angra, estes dois livros honravam as estantes de várias famílias da alta, média e pequena burguesia açoriana. Na Pátria Açoreana, ilustrado com gravu- ras representando cidades e vilas, paisagens, tipos e costumes das nove ilhas dos Açores, eram recordados todos os açorianos ilustres que, desde a descoberta do arquipélago até ao primeiro quartel do século XX, se tinham notabilizado nas várias áreas da actividade humana. No Breviário

Açoreano, um diário histórico, cada uma das 366 páginas era consagrada a

um facto histórico, ocupando os 366 dias dum ano bissexto. Ambos serão hoje velharias bibliográficas (que mereciam reedição) mas para mim e por certo para muitos outros foram importantes para alimentar o orgulho de ser açoriano. E sem orgulho na nossa História comum não haveria identi- dade açoriana que resistisse ou açorianidade que se sentisse.

Claro que a década de 30 do século passado já vai longe e feliz- mente muitos outros ilustríssimos açorianos se vão acrescentando à lista de referências que gostamos de citar quando é preciso mostrar os nossos pergaminhos açóricos. Destes, muitos se notabilizaram na cultura em geral e na literatura açoriana que, queiram alguns ou não, felizmente existe e é pujante, não deixando por esse facto de ser portuguesa e que quando é boa é universal. Com todos eles aprendemos, reaprendemos e reforçamos a nossa identidade açoriana, compreendemos melhor a nossa condição de açorianos e sentimos mais profundamente a nossa açorianidade. Quental, Nemésio, Roberto de Mesquita, Natália Correia, Cortes Rodrigues, Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus, Emanuel Felix, Mário Fraião, Álamo de Oli- veira, Vasco Pereira da Costa, Onésimo Teotónio de Almeida, Dias de Melo, João de Melo, Cristovão de Aguiar, Daniel de Sá, Fernando Aires, Álamo de Oliveira, José de Almeida Pavão, Adelaide de Freitas, Martins Garcia, Santos Barros, Carlos Enes, Joel Neto, Luis Ribeiro, Ruy Galvão de Carvalho, José Enes, Machado Pires, Vamberto de Freitas e muitos mais, na poesia, na prosa e como ensaístas, foram e são para mim muitas dessas referências. E, antes que alguns escritores açorianos se zanguem porque acham que esse rótulo é redutor ou alguns críticos me acusem de naciona- lismo bacoco refugio-me em Mestre Onésimo, mestre de cultura e mestre de açorianidade que, melhor do que ninguém na Minima Azorica. O meu

mundo é deste reino6 e no ensaio Em busca de clarificação do conceito

6 ALMEIDA, O. T. Mínima Azorica. O meu mundo é deste reino. Lages do Pico. Compa-

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de identidade cultural – o caso açoriano como cobaia7 pôs o assunto em

pratos limpos e resolveu de vez esta questão.

«Sair da Ilha é a pior maneira de ficar nela» escreveu Daniel de Sá8

e quem partiu para a diáspora sabe-o bem. Empurrados pela busca de uma vida melhor os açorianos de todas as ilhas emigram desde o século XVIII. Nestas rochas da Macaronésia a vida foi dura e difícil muitas vezes. Demasiadas vezes! Somos um povo de emigrantes. Poucos de nós não tem um parente mais ou menos chegado, mais ou menos distante no Brasil, nos Estados Unidos, nas Bermudas ou no Canadá e muitos de nós foram e são emigrantes nesses países. A emigração faz parte do código genético açoriano e marcou a sua maneira de ser, a sua condição de ilhéu e a sua cultura. Desde a contaminação da linguagem popular (os alvarozes, a pana, a suera, o monim, etc.) até aos temas das nossas canções populares que tomaram a saudade dos que partem como tema: «Ó meu bem se tu te fores / como dizem que te vais / deixa-me o teu nome escrito / numa pedrinha do cais», da Terceira e «A saudade é um luto / Uma dor uma afli- ção / É um cortinado roxo / Que me cobre o coração», de S. Miguel. Ou o «São Macaio», canção originária da Terceira, que alude a um naufrágio de um navio chamado S. Macário que levava emigrantes dos Açores para o Brasil: «S. Macaio, S. Macaio deu à costa / Ai deu à costa nos baixos do Maranhão». Tal como acontece com os «Bravos», também da Terceira que, na minha interpretação, contém uma referência clara à emigração para os Estados Unidos, «the land of the free and the home of the brave»9: «Eu fui

à Terra do Bravo, eu fui à Terra do Bravo / Bravo meu bem, para ver se embravecia». Ou como, dando asas aos sonhos se cantava em S. Miguel a riqueza que a emigração traria: «Inda não fui ao Brasil / Já me cha- mam Brasileiro / Que fará quando eu vier / Cheio de muito dinheiro» «Eu inda não fui à América / Já me chamam americano / Que fará quando eu vier / Co’as minhas botas de cano».

Quando chegado à terra de emigração o coração e a alma do açoriano, continua nos Açores. Sentimento muitas vezes transmitido à segunda gera- ção. «Todos estão aqui, mas continuam nesse tempo da Ilha. Trouxeram- -na, mantém-na intacta dentro de si»10 escrevia João de Melo. As suas

comunidades são uma réplica do viver de cada ilha, transplantado para 7 ALMEIDA, O. T. «Em busca de clarificação do conceito de identidade cultural – o caso

açoriano como cobaia». In Actas do Congresso do I Centenário da Autonomia dos Açores. Ponta Delgada, 1995.

8 SÁ, D. Ilha Grande Fechada. Lisboa, Edições Salamandra. 1992.

9 KEY, F. S. The Star spangled banner. National Anthem of the United States. 1814. 10 MELO, J. Gente Feliz com Lágrimas. Lisboa. Publicações D. Quixote. 1988.

o país de destino, em especial quando nesse país não se fala português como é o caso dos Estados Unidos ou do Canadá. Estar ou viver nas suas comunidades é também estar ou viver nos Açores. Pude verificar essa vivência. Graças a sugestão amiga do Professor Onésimo Teotónio de Almeida11 tive a alegria de, em Novembro de 2008, ter sido convidado

pela comunidade de emigrantes de origem Nordestense, a visitá-los na Nova Inglaterra região onde, em relação ao resto dos Estados Unidos, percentualmente mais se fixam. Com regularidade homenageiam filhos da Vila natal, que por boas razões se tenham destacado em qualquer área. Nesse ano coube-me a mim essa honra, o que me permitiu conhecer mais de perto não apenas os Nordestenses mas a comunidade dos açorianos que para aí emigraram, i.e. a L(USA)landia como tão bem a crismou Oné- simo Almeida12. Verifiquei in loco que, em boa verdade, essa comunidade

nunca saiu dos Açores, mesmo que os nomes gravados nas igrejas de madeira de New Bedford (a Betefete dos baleeiros açorianos), afirmem o contrário e testemunhem que aí estão desde a década de trinta do século XIX. Essa comunidade que, através das diversas Irmandades do Senhor Espírito Santo (The Holy Ghost Societies) mantém intocado, nas diversas cidades da Nova Inglaterra, o culto do Paráclito, com procissões anuais, «funções», bodo de carne e bodo de pão, recreando assim o casulo origi- nal. Ou, como acontece em Fall River, com 50% da sua população nascida ou descendente de açorianos, na sua maioria micaelenses, em que uma reprodução fidelíssima das Portas da Cidade de Ponta Delgada reforça a sua açorianidade, relembra a sua condição de ilhéus e mitiga a saudade da Ilha-mãe. Como escreveu Álamo de Oliveira: «Quando se nasce numa ilha, é como se a gente nunca saísse da barriga da mãe.»13

Também nos filhos e netos de açorianos emigrados, a açorianidade não desaparece. Exemplo disso é a poetisa brasileira Cecília Meireles. Nas- cida poucos anos após a chegada da mãe ao Brasil, vinda de S. Miguel foi por morte precoce dos pais educada pela avó, Jacinta Garcia Benevides 11 O Professor Doutor Onésimo Teotónio de Almeida, Catedrático na Brown University é

Mestre de açorianidade. Intelectual português do maior prestígio sabe, como ninguém, usar a ironia para lutar contra os moinhos da estupidez e da pernosticidade. Vide, p.e., o seu livro Despenteando Parágrafos no qual, sempre com um pronunciado sorriso, descasca nos despautérios dos post-modernistas. Sendo como eu bi-ilhéu (S. Miguel e Terceira) e muito me honrando com a sua amizade, tem a suprema virtude da gene- rosidade intelectual e a fantástica qualidade de conseguir aproximar as margens do Atlântico fazendo dele um Rio (Onésimo dixit).

12 ALMEIDA, O. T. Da Vida Quotidiana na L(USA)lândia. Coimbra. Atlântida Editora, 1975. 13 OLIVEIRA, A. Já não gosto de chocolates. Lisboa, Edições Salamandra. 1999.

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também emigrante, natural da Fajã de Cima. Considera sua a Ilha de São Miguel. «Apenas uma vez visitei a minha Ilha… porém, é totalmente minha, por um direito mais decisivo e profundo que o das fórmulas jurídicas.»14

Sob o nome de Ilha do Nanja surge em poemas, como «Pastoral V»:

Na Ilha que eu amo,

na Ilha do Nanja, que eu tenho no meio do Atlântico, há veredas de hortênsias,

lagos de duas cores,

nascentes de água fria, morna e quente. Doce Ilha que foi de laranjas

E hoje é de ananases!

Robustos homens, que devem ser meus parentes, levam seus carros de vime

pela tarde de chuva e sol, de vento e névoa,

porque a Ilha tem todos os tempos em cada instante. Por uns caminhos chamados canadas,

os homens de carapuça olham a tarde, como quem não sabe se amanhã está vivo. Porque a Ilha está pousada em fogo, cercada de oceano,

e seu limite mais firme é o inconstante céu. E os homens detêm-se a ouvir vozes de vulcões, vozes de sereias,

vozes da lua, na Ilha do Nanja. Na Ilha que eu amo,

na Ilha que eu tenho no meio do Atlântico, todos são muito pobres,

mas já nem pensam nisso.

14 MEIRELLES, C. «A Ilha de Nanja». In: Ilusões do mundo. Rio de Janeiro Nova Fronteira,

As mulheres tecem panos, enrolam novelos,

enquanto os maridos estão lutando com as chamas dos fornos onde cozinham sua louça,

ou tangendo ao longo dos muros carros e carros de solidão, com cestos e cestos de silêncio.

Mesmo quando se partiu para mais perto, para a diáspora do Portugal Continental, fica-se com a ilha, com as ilhas (no meu caso, S. Miguel e Terceira), com os Açores entranhados até aos ossos. Inconscientemente sentimo-nos estranhos, estrangeiros. Quase diria que nos falta o ar pátrio,

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