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4.3 Reflexos narcísicos na lírica

4.3.1 De Curitiba à Roma

A associação à lírica narcisista na obra de Leminski nos faz refletir sobre as Metamorfoses de Ovídio, cujos livros narram os mitos que Leminski entrelaça em seu poema em prosa. Como fonte de referência para sua releitura, Leminski muito se inspira, também, nas técnicas literárias de Ovídio. Assim como o poeta clássico, o curitibano adequa uma sequenciação para os mitos narrados. Os mitos entrelaçam-se sempre dando a ideia de continuidade, como uma enorme teia de fábulas antigas. De forma muito mais próxima e perceptível do que na obra do poeta clássico, certamente. Já nas Metamorfoses de Ovídio, observamos uma tendência à sequenciação dos poemas que compõem a obra como um todo. Mesmo dividindo os mitos em cantos individuais, muitos deles possuem informações que são essenciais para a compreensão do próximo.

Como apontado anteriormente, na seção que contextualiza o poeta latino, Ovídio possuía certa autonomia em sua poesia que era incomum para o período vigente. Além do entrelaçamento de mitos distintos, propondo uma nova forma de narrativa, é perceptível a presença de traços pessoais do autor em uma poesia que deveria atender as exigências do Império, como a constante temática amorosa apontada anteriormente. O amor, como grande tema de suas obras, revela o gosto pessoal do autor, bem como, a vontade de expor sua vontade diante da sua produção, como é exemplificado com a presença do amor sensual, por vezes, erótico, em toda a sua produção. Pinto (1950, p. 21) aponta, também, a originalidade do autor em sua produção:

O capítulo 10º do livro XV das Metamorfoses, que traz a apoteose do Imperador, é excessivo e repugna aos sentimentos modernos; deve considerar-se, no entanto, que o poeta não fazia mais do que seguir a moda da qual tinham ditado as leis Horácio e Virgílio. Outras características, porém, denunciam o pendor do poeta: costurando com hexâmetros latinos, a velha mitologia grega, não tendo tido sequer o trabalho de recolher os mitos, pois tivera predecessores, ele se sente, no entanto, deslocado. Perde-se em anacronismos e fantasias, sacrificando a verdade histórica vertigem do verso. O anacronismo ressalta nas Heroídes, série de cartas que se

imaginam escritas pelas heroínas da Antiguidade aos seus maridos e amantes. O autor se vangloria de ter criado este gênero de literatura que é uma espécie de tentativa de rejuvenescimento da antiga mitologia, atribuindo-lhe sentimentos e usos dos tempos novos.

Como observa a autora, Ovídio mesclava tradições e inovações em sua poesia, caracterizando, assim, a ousadia de sua produção. Ao lado de autores como Catulo (84 a.C. – 54 a.C), por exemplo, Ovídio destacava sua poesia daqueles que não possuíam autonomia para criar além do que o Império exigia. Ovídio teria, assim, um viés narcisista refletido em sua obra que, por mais que seja ficcional, exibe o poeta por entre os versos.

A proximidade dessas duas obras de momentos tão distintos leva-nos à reflexão sobre a universalidade da forma lírica. É necessário um estudo mais aprofundado sobre o gênero lírico para constatarmos a existência obrigatória do narcisismo em tal forma poética. Neste momento, ratificamos a presença universal da subjetividade na lírica. Porém, essa subjetividade existe dentro de certos níveis, cujo índice mais alto transgride sua natureza e torna-se um aspecto psicológico do autor perante sua produção.

5 Considerações Finais

Ao propor o diálogo entre uma obra da literatura clássica e uma contemporânea, a partir de um aspecto comum, é preciso adaptar tal semelhança de acordo com a obra em estudo, de modo que a divergência cultural dos períodos literários distintos não seja esquecida.

Com a conceituação de mito como uma “fábula máxima”35, observamos que a mitologia surge como uma forma do homem explicar o mundo através do fantástico e do sobrenatural. Dessa forma, o mito de Narciso consiste em uma representação de um determinado comportamento humano. Narciso, enquanto um jovem que tem sua fragilidade atrelada ao excesso de paixão por si próprio, transmite perfeitamente a moral contida na fábula – a importância de valorizar a humildade.

Como visto neste trabalho, os mitos possuem a habilidade de atravessar os séculos através da literatura e, muitas vezes, são utilizados como objeto de estudo de ciências sociais, devido à enorme carga psicológica que eles possuem. É devido a este fato que a psicologia clínica apropriou-se do mito de narciso para explicar o narcisismo, a condição psicológica marcada pela atração sexual por si mesmo.

Sendo uma condição voltada totalmente para o “eu” do indivíduo, o narcisismo é refletido em todo o redor do sujeito narcisista; desde ações cotidianas até, principalmente, a arte produzida por tal. A partir dessa colocação, é possível procurar traços dessa personalidade peculiar na produção artística dos indivíduos, como foi feito nas análises de Ovídio e Leminski, nas sesções anteriores.

Pode-se afirmar que, dos três principais poetas do período imperial de Augusto – Ovídio, Virgílio e Horácio –, Ovídio foi o que menos cumpriu com sua obrigação literária. A poesia de Ovídio sempre foi considerada inferior à dos outros poetas em relação à adequação obrigatória diante do Império. Menos exemplar que os demais versos elegíacos do período, Ovídio valorizava, primeiramente, seus gostos e preferências diante de sua produção. É notória, em toda sua literatura, a transgressão ao formalismo clássico e às exigências do Império. O poeta adequava, primeiramente, o tema amoroso e/ou erótico em qualquer produção, mesmo que esta tratasse de um tema político, como visto anteriormente.

Foi o que ocorreu com as Metamorfoses, onde o poema que pressupunha uma narrativa sobre a origem do mundo, desde a criação do universo até a sua época atual, teve como

destaque os versos que narram histórias de amor dos deuses, em vez da valorização do Império.

Devido a essa e as outras observações da originalidade de Ovídio perante a sua obra é que conseguimos enxergar o poeta através da poesia. O subjetivismo existente na obra de Ovídio é diferente do subjetivismo característico da poesia lírica. A necessidade de exposição do “eu” do autor em sua produção é o que o lhe atribui o aspecto narcisista, aproximando-o de Leminski.

Séculos após a publicação de Metamorfoses, Leminski utiliza toda a sua paixão pela literatura latina para propor a sua releitura da obra, intitulada Metaformose. O trocadilho com o título da obra original adianta a dissemelhança existente na forma; aqui, Leminski une a prosa e a poesia para narrar alguns dos mitos de Ovídio. Compondo versos em prosa, carregados de referências às diversas influências culturais que o autor traz para sua poesia, Leminski elege o mito de Narciso como o tema central de sua obra.

Diante do seu reflexo no espelho, o Narciso de Leminski conta alguns dos mitos das Metamorfoses de Ovídio, unindo-os em uma continuidade já apresentada pelo poeta clássico, porém, de maneira muito próxima. Entre as fábulas observadas por Narciso no rio, encontramos o sofrimento do jovem diante da busca por sua identidade, perdida diante de tantas metamorfoses que passam pelo rio.

A presença do autor em Metaformose é muito mais forte do que na obra clássica; Encontramos Leminski em toda a filosofia sobre a constituição do “eu” que o personagem Narciso nos propõe. A alternância de narradores no poema não nos permite ter clareza da voz que fala; Leminski e Narciso metamorfoseiam-se em um só em diversos momentos. A evidência excessiva do poeta através da obra é o que caracteriza o seu narcisismo, ultrapassando o subjetivismo comum do gênero literário.

Assim, analisando Metaformose,, é notável que a releitura que Leminski faz de Ovídio não é apenas uma viagem pelo imaginário grego, é também uma espécie de desabafo da necessidade de Leminski olhar-se no reflexo do rio.

É possível observar a característica do narcisismo nas obras estudadas, que configuram- se como uma variação da poesia lírica. Como visto neste estudo, o narcisismo manifesta-se como uma necessidade de auto-publicidade, na qual o autor reflete intencionalmente a sua personalidade através da obra. O autor, nesta condição, faz-se mais evidente que o poema. Pode-se dizer, então, que entre a autobiografia e a lírica, encontra-se a lírica narcisista.

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