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De Instrumento a Método de Investigação em Psicologia Clínica

4. Modelo de Investigação

5.1. De Instrumento a Método de Investigação em Psicologia Clínica

“O que é que isto poderia ser?...” – esta expressão encerra uma instrução que determina o início de todo o processo Rorschach, pois prefigura no sujeito a solicitação duma viagem ao seu mundo interno.

Em tom metafórico, o Rorschach poderia ser visualizado como um mineral facetado, cujas faces representariam o resultado de um longo e exigente percurso de adaptações teóricas.

Como refere Chabert (1997/1998), a dificuldade de estabelecer uma descrição pura do Rorschach, começa pela natureza do material manifesto, cujas características são muito singulares.

O instrumento é constituído por um total de dez pranchas, contendo cada uma delas uma mancha de tinta, que se organiza de forma simétrica em torno de um eixo vertical central. As características destas manchas são dadas por elementos perceptivos concretos, como forma, cor e esbatimento.

No entanto, ainda que dotado de qualidades perceptivas, o material é ambíguo e destituído de significado preciso. Porém, verifica-se que a apresentação das pranchas e as suas características mais proeminentes, permitem organizá-las consoante a temática a que apelam; algumas reenviam para a problemática da identidade e da diferenciação sexual, outras para a fantasmática associada à imago parental.

A conjugação da instrução e do estímulo Rorschach incita a emergência da palavra, que expressa um processo interno desencadeado no sujeito, movimentando-o da percepção para a projecção. Os cartões enquanto realidade material solicitam, num primeiro plano, o recurso à percepção, que revela a inscrição no meio, através do apego ao real. Contudo, o objecto potencial imaginado promove uma elaboração da percepção, sob a influência das preocupações fundamentais do sujeito, da dinâmica relacional que estabelece com os objectos e dos afectos e fantasmas presentes nas palavras-imagens (Chabert, 1997/1998).

Traubenberg (ref. por Marques, 2001) concebe o Rorschach como um espaço interaccional, onde todos os elementos constituintes da situação apresentada ao sujeito, (características do estímulo, valor simbólico da mancha, solicitação, mecanismos inerentes ao processo-resposta e componentes da mesma), promovem uma articulação entre a actividade perceptiva e a actividade fantasmática, isto é, movem o sujeito da realidade para

a vivência subjectiva. O reconhecimento deste movimento no indivíduo, permite aceder à relação que estabelece entre o mundo externo e o mundo interno.

Esta relação pode ser abstraída, através de uma análise estruturada em dois eixos que aludem à representação de si e à representação do Outro, tal como proposto por Chabert (1997/1998). Incidindo na representação do Outro, torna-se visível o registo conflitual e o nível de desenvolvimento libidinal, inerente ao tipo de relação que é estabelecida; mas também, a economia pulsional que é mobilizada pelo arranjo do cartão e pelo impacto que a prancha inflige no sujeito.

Mencionadas as qualidades do instrumento, que potenciam o acesso a um nível mais profundo do funcionamento mental do sujeito, não pode ser descurada a sua dimensão interaccional activa, que lhe confere um estatuto singular na metodologia projectiva.

A organização das manchas pode provocar um impacto no sujeito, do qual resultem emoções que necessitem ser expressas num movimento transferencial, ou seja, dirigidas ao clínico. Por outro lado, como receptora da transferência, encontra-se a estrutura mental do clínico que devolve o movimento, através da modulação de expectativas e da orientação da prova, valorizando aspectos pertinentes ao contexto – emerge a contra-transferência Chabert (1997/1998).

A introdução do referencial psicodinâmico na leitura do Rorschach tem permitido orientar a sua aplicação para uma dimensão mais compreensiva, assim como amplificar a sua concepção clássica de teste a uma nova vertente que o projecta ao estatuto de método (Lerner, 1991).

Assumindo um enquadramento psicanalítico e toda a articulação entre resposta e situação projectiva inerente a essa opção teórica, Marques (2001) concebe o Rorschach como um agente mobilizador de movimentos conscientes, pré-conscientes e inconscientes. Esta mobilização promove o trabalho criativo, a partir do qual se acede à natureza do sujeito, das representações de si e do Outro, que revelam a dinâmica pulsão-defesas- adaptação, logo o balanceamento entre processo primário e secundário. Sucintamente, o Rorschach é definido como um mobilizador de representações e afectos.

O aspecto relacional impera na globalidade do método, aliás, segundo a perspectiva focada, assume-se como a matriz que serve de palco a todos os processos e interacções. Do mesmo modo que as respostas constituem objectos resultantes da construção intersubjectiva, invertendo o prisma de análise, constata-se que a relação se reflecte na criação da resposta. A elaboração de novos significados ocorre, através e com base na intersubjectividade, bem como em novas relações continente-conteúdo, avançando aqui uma analogia com a lógica bioniana.

A análise do processo-resposta, condicionado pelas noções de relação-ligação- transformação, denuncia um suporte teórico psicanalítico, que privilegia o conhecimento do

sujeito a um nível mais profundo. Deste modo, o processo-resposta reenvia para a actividade de pensar, que é abstraída através da simbolização.

Ainda que de forma não tão explícita, a questão relacional reenvia para a revisão do estatuto dos intervenientes, anteriormente assinalada no contexto do paradigma qualitativo, assumindo aqui contornos mais definidos por associação concreta a este método. Segundo Marques, o “universo” Rorschach pode ser definido como uma experiência emocional, na qual “o psicólogo não é o intérprete do que lá está, o psicólogo é o que pensa com e sobre o outro, o que sonha com e sobre o outro” (Marques, 2001, p.203).

Neste enquadramento, o saber em Psicologia Clínica prima pela atribuição de sentido isento de qualquer julgamento, pela identificação do comum e do particular; no fundo “é o expressar do que de mais íntimo rege a lógica de cada ser” (Marques e Aleixo, 1994, p.461).

O objectivo primordial é rumar no sentido da individualidade, é procurar o valor adaptativo dos seus mecanismos, para aceder ao sentido que assumem no seu funcionamento. No fundo, é perceber quem é aquele sujeito particular; aceder ao que partilha com o Outro e ao que o torna único, num determinado contexto e momento do seu percurso.